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Refugiado húngaro criou as maiores obras da Igreja São Sebastião
Em Paranavaí, Bálint Fehérkúti criou as mais importantes obras da Igreja São Sebastião
Entre os anos de 1966 e 1971, depois de escapar de um gúlag, campo de trabalho forçado na União Soviética, o artista plástico húngaro Bálint Fehérkúti viveu em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, e produziu as mais importantes obras da Igreja São Sebastião. Com uma sublime capacidade de transmitir sentimentos pessoais por meio da arte, Fehérkúti despertou admiração e repulsa.
“Na via-crúcis tradicional a cena é muito restrita a cruz e mais duas ou três pessoas. Bálint preferiu fazer diferente. Incluiu mais personagens, alguns como se estivessem dialogando. Foi realmente inovador”, conta frei Filomeno dos Santos após analisar a obra de caráter estético arcaico produzida em argila pelo artista húngaro em 1966.
Em essência, a Via-Sacra de Fehérkúti foi pouco compreendida. Com o passar dos anos, os fiéis se dividiram entre favoráveis e contrários à exposição da obra. Alguns alegavam que mesmo muito bonita não despertava piedade. Outros foram mais intolerantes e intransigentes nas críticas. Em 1990, quando a Via-Sacra começou a se deteriorar, o frei Gentil Lima alegou que não encontraram restauradores habilitados para conservar a estética original, então decidiu substituí-la.
De 1966 a 1971, Fehérkúti produziu as populares esculturas de quatro grandes estátuas de São José, São Sebastião, Maria do Monte Carmelo e Santa Teresa de Lisieux. As estátuas foram finalizadas pelo escultor austríaco Conrado Moser. Para a Ordem do Carmo de Paranavaí, o artista húngaro criou também uma pintura do batismo de Jesus e outra da ressurreição de Cristo. A primeira pode ser vista na capela do batismo e a segunda na cripta embaixo do altar-mor.
Em 2006, durante visita à Paróquia São Sebastião, atual Santuário do Carmo, me surpreendi com a intrigante pintura de “A Última Ceia”, inspirada no afresco de Leonardo da Vinci. A imagem que ocupa uma parede inteira do refeitório foi idealizada pelo húngaro em 1970. Quem observa a pintura com atenção percebe que pouco acima da cabeça de Jesus Cristo há um par de olhos, chifres e um focinho. A primeira pessoa que notou a suposta figuração do demônio foi um padre franciscano que visitou a paróquia em 1990.
Ninguém sabe se a representação foi intencional ou não, já que é muito comum o inconsciente se revelar durante uma prática artística. “Acredito que simboliza a tentação que Judas sofreu em trair Jesus”, interpreta frei Filomeno. Na “Última Ceia” de Bálint, a aparência clássica e hermética dos apóstolos foi substituída por feições mais familiares dos padres alemães que viviam em Paranavaí.
“Na sala de recreação, uma grande pintura com uma vista de Bamberg [cidade de origem de muitos padres que viveram em Paranavaí] testemunha a sua capacidade, assim como a pintura que está no altar da Igreja Nossa Senhora das Graças [situada em Graciosa, distrito de Paranavaí]”, escreveu o frei alemão Alberto Föerst no livro Erinnerungen eines Brasilienmissionars, lançado na Alemanha em 2012.
Ultrapassando estilos, técnicas e formas, Fehérkúti encontrou na subjetividade da arte um meio de tentar se reencontrar, dialogar consigo mesmo e registrar a própria história, além de materializar em desenhos, pinturas e esculturas as impressões e cicatrizes deixadas pelo passado.
Escultor, pintor e desenhista, Bálint era acima de tudo um artista múltiplo, apto a enfrentar qualquer desafio. Ousado, sabia como se lançar em cada obra de forma implícita e explícita. Não hesitava em apresentar uma perspectiva mais contemporânea e pessoal de tudo. Manipulava os mais diferentes materiais com uma facilidade impressionante.
Surpreendia trabalhando com pinturas em aquarela e têmpera, lápis sobre papel, vitrais, mosaicos e esculturas em pedra, cerâmica e madeira. Padres que conviveram com o artista em Paranavaí confidenciaram que possivelmente as obras retratam o sofrimento de Fehérkúti antes de chegar ao Brasil.
De acordo com o frei Tiago Correia, da Ordem do Carmo, o húngaro fez muitos trabalhos de temática religiosa, envolvendo passagens das sagradas escrituras, imagens de Jesus Cristo e da Virgem Maria. No entanto, há também projetos de mobiliários e muitas pinturas de paisagens e rostos de pessoas comuns. “Sim, Bálint era um artista realmente distinto e polivalente”, registrou Föerst na obra Erinnerungen eines Brasilienmissionars.
Somando-se as obras de grande expressão que podem ser vistas em Paranavaí, Graciosa e no Museu da Abadia de São Geraldo, no Jardim Colombo, em São Paulo, na capital paulista, Bálint deixou um legado de mais de 50 criações históricas e inovadoras. São trabalhos que foram catalogados pela Ordem dos Carmelitas. Em 1951, Fehérkúti participou e se destacou na 1ª Bienal Internacional de São Paulo. Em 1968, atraiu muita atenção no XXXIII Salão Paulista de Belas Artes.
Embora tenha passado quase despercebido pela população de Paranavaí, Bálint está entre os maiores nomes da arte húngara contemporânea. Em Budapeste, na Hungria, algumas de suas obras fazem parte dos acervos do Museu de Artes Aplicadas (Iparművészeti Múzeum) e Universidade Húngara de Belas Artes (Magyar Képzőművészeti Egyetem). O trabalho do artista também integra a Biblioteca Europeana, fundada pela União Europeia em 2008.
Fehérkúti foi considerado um inimigo da União Soviética
Bálint Fehérkúti nasceu na Hungria em 5 de novembro de 1923. Nos anos 1940, já atuava como artista plástico, designer de objetos e arquiteto. Com a iminente derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) invadiu a Hungria, aliada dos alemães, e assumiu o controle da capital Budapeste em 13 de fevereiro de 1945.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a União Soviética começou a perseguir e prender nazistas e simpatizantes até que surgiu um problema operacional. Para a manutenção de cada gulag (campo de concentração), os soviéticos precisavam de pelo menos dois mil prisioneiros. Então muitas vezes a cota não era atingida. Para alcançar a meta, o Exército Vermelho decidiu prender alemães étnicos não nazistas e húngaros nativos, de origem magyar.
“A serviço dos vencedores da Segunda Guerra Mundial, a imprensa mundial virou as costas para os fatos e concordou em divulgar apenas que o Exército Vermelho era formado por libertadores. Nos países ocupados pela União Soviética, quem ousasse dizer o contrário era punido”, garante o pesquisador e professor universitário húngaro Károly Szerencsés, doutor em história da Hungria no século XX pela Universidade Eötvös Loránd, de Budapeste.
Ao longo de anos pesquisando sobre o assunto, o historiador descobriu que a interferência econômica e a destruição patrimonial provocada pelos soviéticos custaram 40% das riquezas da Hungria. “Foi um longo período de pobreza, privação e terror. Temos uma estimativa de que entre 1945 e 1948 até 200 mil mulheres húngaras foram estupradas pelo Exército Vermelho”, revela o professor e escritor estadunidense Peter Kenez, autor do livro Hungary From The Nazis To The Soviets e doutor em história da Rússia e do Leste Europeu pela Universidade Harvard.
Em pouco tempo, a vida de Bálint Fehérkúti mudou. Ainda muito jovem, o artista foi considerado um inimigo da União Soviética. Perseguido e condenado com base em provas forjadas, o deportaram para um gulag na Sibéria por volta de 1946. “Cidadãos húngaros foram enviados a dois mil campos de prisioneiros. Do total, 64 ficavam na Sibéria. Muitos morreram antes de chegarem ao destino. O número de pessoas que jamais retornaram à Hungria ultrapassa 380 mil”, explica Szerencsés. Os gulags eram considerados colônias corretivas em que os prisioneiros eram escravizados 14 horas por dia em minas, derrubadas de árvores e projetos de construções de canais e ferrovias.
“Tinham de trabalhar sob constante ameaça de fome e execução. As árvores eram cortadas com serrotes ruins e o solo congelado era escavado com picaretas primitivas. Os homens que trabalhavam extraindo carvão ou cobre só podiam usar as mãos. Quem inalava o pó de minério com frequência, logo contraía doenças pulmonares dolorosas”, enfatiza o pesquisador e professor universitário estadunidense Roy Rosenzweig, doutor em história pela Universidade Harvard e autor do projeto Gulag: Many Days, Many Lives, considerado um dos mais ricos trabalhos de pesquisa sobre os campos de concentração da União Soviética.
Inúmeros historiadores defendem que é mais fácil uma pessoa ganhar na loteria hoje do que um prisioneiro escapar de um gulag siberiano. “Eram mal alimentados, espancados e executados por motivos diversos. A cada ano havia uma queda de 10% do total de prisioneiros. Estimamos que de 15 a 30 milhões de pessoas morreram nesses campos de concentração entre 1918 e 1956”, declara Rosenzweig.
Provavelmente, Fehérkúti vivenciou as piores experiências de sua vida em um gulag siberiano. A região tinha a fama de ter as prisões mais aterrorizantes da União Soviética. Era preciso suportar um inverno com duração de nove meses e temperatura média de 50 graus Celsius negativos, chegando a ultrapassar 60 entre os meses de dezembro e janeiro. “Os presos viajavam até lá de trem, mas havia uma época do ano em que o frio era tão intenso que os serviços de transporte eram interrompidos”, frisa Roy Rosenzweig.
Artista fugiu de um gulag na Sibéria e veio para o Brasil
Segundo o pesquisador Károly Szerencsés, aos olhos das autoridades soviéticas, a vida dos prisioneiros não tinha valor algum. “A substituição era rápida porque o sistema podia encontrar mais pessoas para reposição nos campos de trabalho”, comenta. Entre 1949 e 1950, ciente de que não continuaria vivo por muito tempo, Bálint Fehérkúti preparou um plano de fuga e decidiu se arriscar pela primeira vez, mesmo sabendo que caso fosse capturado a pena seria aumentada em pelo menos dez anos.
Supostamente, por sorte ou artifício do destino, conseguiu fugir carregando apenas uma corda. A usou para se amarrar embaixo do trem que o levou até a Sibéria como prisioneiro. Sem poder retornar para casa, vagou pela Europa e se distanciou de países ocupados pelos soviéticos até chegar a Portugal. “De lá, embarcou em um navio com destino ao Brasil. Em São Paulo, Bálint foi acolhido pela comunidade húngara”, relata frei Filomeno dos Santos.
Na capital paulista, Fehérkúti recebeu ajuda e voltou a trabalhar como artista, arquiteto e designer de objetos. Mais tarde, fez amizade com o arquiteto Eugênio Szilágyi e o engenheiro Karl Kögl, imigrantes que deixaram a Hungria no final da Segunda Guerra Mundial, fugindo das perseguições, e vieram para o Brasil.
Em 1960, a convite da Ordem dos Carmelitas, Szilágyi e Kögl aceitaram o desafio de construir em Paranavaí a Igreja São Sebastião. “A pedra fundamental foi colocada no mês de outubro. Demorou cinco anos até que pudéssemos mudar para a nova casa de Deus, projetada de forma ampla e útil”, narra o frei alemão Joaquim Knoblauch no livro “Os 25 Anos dos Carmelitas da Província Germaniae Superioris no Brasil”, escrito em 1976.
Os húngaros projetaram e construíram também o convento. Um ano após a inauguração, padres alemães da Ordem dos Carmelitas de Paranavaí conheceram o trabalho de Bálint Fehérkúti e pediram a Eugênio Szilágyi e Karl Kögl que o trouxessem a Paranavaí. O artista foi além das expectativas, tanto que criou obras para a paróquia local ao longo de cinco anos. Alberto Föerst, que conviveu com Fehérkúti por meses, registrou muitos elogios ao húngaro no livro Erinnerungen eines Brasilienmissionars.
O advogado e escritor paranavaiense Paulo Campos ainda se recorda das poucas vezes em que escalou um muro nas imediações da Igreja São Sebastião para observar Fehérkúti. “Eu era menino e muito curioso. Para mim, aquele artista foi uma figura enigmática e intrigante, ainda mais porque não sabíamos quase nada sobre ele”, confidencia Campos.
Introspectivo e praticamente ostracista, o húngaro passava a maior parte do tempo trabalhando. Raramente era visto fora da Igreja São Sebastião ou do convento. Föerst escreveu que a única fraqueza de Bálint Fehérkúti era o alcoolismo. Bebia para tentar esquecer os traumas da perseguição na Hungria e da vida desumana em um gulag. “Após o fim da Guerra [Segunda Guerra Mundial], ele teve de suportar muitas dificuldades. Isto o marcou a longo prazo”, pondera frei Alberto na obra Erinnerungen eines Brasilienmissionars.
Com o tempo, a dependência alcoólica se tornou o maior obstáculo na vida de Fehérkúti. No dia 30 de março de 1977, em São Paulo, o artista que escapou de um campo de trabalho forçado na Sibéria faleceu com apenas 53 anos em decorrência de problemas de saúde causados pelo alcoolismo.
Saiba Mais
O arquiteto Eugênio Szilágyi e o engenheiro Karl Kögl foram os responsáveis pela construção da Embaixada da Hungria no Brasil. Situada em Brasília, foi inaugurada em 21 de agosto de 1972.
A ocupação soviética da Hungria chegou ao fim somente em junho de 1991.
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A importância do avião nos anos 1950
Precariedade das vias popularizou o avião em Paranavaí
No início dos anos 1950, o avião se transformou em um dos principais meios de transporte de Paranavaí, no Noroeste Paranaense, por causa da precariedade das vias. À época, toda semana, muitos voos partiam do antigo Aeroporto Edu Chaves, atual Colégio Estadual de Paranavaí (CEP), para os mais diversos destinos.
Hoje não há registros que informem com exatidão quantos voos eram realizados por semana em Paranavaí nos anos 1950. No entanto, estima-se que as viagens aéreas ocorriam diariamente no antigo Aeroporto Edu Chaves. “Por volta de 1953, isso já acontecia bastante. Não era assim o ano todo, mas tinha época que os aviões partiam de Paranavaí todos os dias. Era gente indo pra Londrina, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, pra todo lugar”, afirmou o pioneiro cearense João Mariano, acrescentando que os aviões eram modestos, monomotores e até bimotores, mas cumpriam muito bem o trajeto.
Por causa da precariedade das estradas que faziam o carro balançar durante todo o trajeto, levando passageiros a sentirem-se mal, muitos optavam por viajar de avião. “Naquele tempo, o avião era muito popular, então uma viagem não era nada cara, era relativamente barata”, disse Mariano.
O padre alemão Henrique Wunderlich escreveu em uma carta à revista alemã Karmelstimmen, de Bamberg, no Estado da Baviera, publicada em 20 de maio de 1953, que se surpreendeu com a facilidade em encontrar campos de aviação na região de Paranavaí. “Normalmente o aeroporto se resumia a uma pista para pouso e outra para decolagem e tinha pouco mais de um quilômetro de comprimento”, relatou, acrescentando que onde ainda não havia um campo de aviação, logo trataram de construir.
Henrique Wunderlich teve a ideia de criar um avião
Os aeroportos se resumiam a grandes campos com gramados ou apenas barro, sempre ladeados por terrenos ondulados. Segundo Wunderlich, muita gente dependia dos aviões, inclusive os padres da Paróquia São Sebastião. “O avião era uma necessidade primária para quem precisava viajar muito”, comentou João Mariano.
Na carta à revista alemã, Frei Henrique frisou que as viagens de carro eram muito desgastantes e os longos caminhos a serem percorridos em estradas ruins eram por vezes desanimadores. “Além disso, o vento e os violentos aguaceiros já tinham dado início ao processo de erosão do solo”, revelou. Por esses motivos, e como a Paróquia São Sebastião não tinha dinheiro para investir sequer na compra de um monomotor, o padre teve a ideia de criar um avião.
Wunderlich, que também era paraquedista e piloto, frequentou a Escola de Aviação Alemã durante a Segunda Guerra Mundial e trouxe a Paranavaí um projeto de um avião. “Também quis realizar este sonho para entusiasmar o povo da cidade”, admitiu o padre que pretendia dispor o veículo à população. Infelizmente, por causa de outros compromissos, Henrique Wunderlich não teve tempo de criar o avião porque precisou retornar à Alemanha em 1957.
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A perspectiva alemã sobre Paranavaí
“Havia enormes plantações, prados, pastagens, tudo interrompido por grandes florestas”
O padre provincial alemão Jacobus Beck veio a Paranavaí, no Noroeste do Paraná, em fevereiro de 1952 para conhecer o trabalho do frei Ulrico Goevert, responsável pela Paróquia São Sebastião. Na então colônia, Beck se surpreendeu e se identificou com alguns costumes. No mesmo ano, a experiência de três semanas foi registrada em várias edições da revista alemã Karmelstimmen, de Bamberg, no Estado da Baviera.
A curta passagem de Beck não permitiu que ele aprendesse a língua portuguesa. Por isso, pode-se dizer que o frei alemão está entre os padres germânicos que vieram a Paranavaí nos anos 1950 e não tiveram tempo de ter um profundo contato com a cultura dos moradores da colônia, fossem brasileiros ou estrangeiros. O fato fato foi o diferencial nos artigos publicados na Karmelstimmen, sob o título de “Meine Reise Nach Brasilien“.
Era um sábado, 9 de fevereiro de 1952, quando Jacobus Beck sobrevoou o Noroeste do Paraná. Observou ao longe os campos cortados por imensos rios. “Havia enormes plantações, prados, pastagens, tudo interrompido por grandes florestas. Mas foi só quando estávamos na região de Paranavaí que vi a mata virgem”, afirmou o alemão, acrescentando que tudo era tão belo que dava a impressão de que o céu se curvava diante do avião. Por volta do meio-dia, o padre se deparou com a colônia composta por um sem número de pequenas casas de madeira.
Logo o avião pousou no antigo Aeroporto Edu Chaves, atual Colégio Estadual de Paranavaí (CEP), ladeado por espessa mata primitiva. De lá, Beck pegou uma carona com o frei Ulrico Goevert em um jipe estadunidense. Foram para o centro da colônia, onde viviam mais de cinco mil pessoas. “Não era uma cidade ao modelo europeu com casas de pedras e ruas asfaltadas, mas também não lembrava nossas aldeias. As residências eram bem simples e remetiam às nossas barracas de feira. As vias pareciam os caminhos alemães que davam acesso aos areais”, comentou frei Jacobus.
O que chamou a atenção do alemão na Colônia Paranavaí foi a ordem e a limpeza, além da facilidade em se adquirir bens de consumo. De acordo com Beck, o povoado contava com muitos locais de lazer, carros e caminhões. “Isso já me lembrou a Alemanha, o tráfego dos veículos, os barulhos dos que vinham e dos que iam pelas ruas esburacadas”, frisou, rememorando que em 1952 três novas casas eram construídas por semana em Paranavaí. O padre também percebeu que a agricultura na colônia era voltada principalmente para a produção de café, algodão, arroz e milho.
“A terra de Paranavaí era muito fértil porque o solo era virgem”
Jacobus Beck estranhou o fato de não ter encontrado batata no povoado, um dos principais alimentos da culinária germânica. “Em Paranavaí se consumia a mandioca, uma hortaliça de raiz grossa que tem gosto e uso equivalente ao da batatinha”, avaliou o alemão que se surpreendeu com o tamanho do gado bovino criado na colônia, bem maior do que os animais alemães.
Nas passagens pelos pomares locais, entre as frutas tropicais que Beck experimentou e aprovou estavam banana, abacaxi, limão e figo. “A terra de Paranavaí era muito fértil porque o solo era virgem. Estava sendo trabalhado pelas mãos humanas pela primeira vez, então tinha uma umidade inacreditável. Apesar do calor tropical, chovia muito e acho que a proximidade com muitos rios e riachos ajudava”, enfatizou.
De acordo com o padre, o solo e as condições climáticas eram os principais fatores que atraíam tanta gente a Paranavaí. Havia brasileiros de outras regiões, europeus e japoneses. “Não cheguei a presenciar nenhum caso de racismo. Acho que todos viviam pacificamente”, destacou o frei que estranhou a maneira como a população local o cumprimentou, com abraços e tapas nas costas, embora admitiu que se acostumou.
Na Casa Paroquial, no quarto onde Jacobus Beck foi hospedado, o padre imaginou que encontraria janelas com vidraças e cortinas, ao melhor estilo alemão. “Foi uma procura em vão. Só havia uma grande abertura na parede e que era fechada à noite com janelas feitas de tábuas. Dormia na própria sacristia, com morcegos e camundongos “, ressaltou em tom bem humorado.
A hospitalidade dos moradores estava entre as melhores lembranças do frei. Segundo Beck, o que um tinha dividia com o outro. Além disso, os convidados de uma festa eram sempre tratados com muito carinho e atenção. “É claro que a maioria tinha pouco a oferecer, mas caso o agraciado não aceitasse, isso era entendido como uma ofensa”, observou.
“Ficamos com o jipe quase dependurado em muros de pedras”
À época, os padres eram vistos como autoridades de suma importância, tanto que por onde passavam ficavam rodeados de pessoas, como numa feira, na analogia de Beck ao perceber que a figura do vigário era muito estimada pela população. Até mesmo em casos de dores de dente, as pessoas procuravam o padre para dar uma solução ao problema ou então ofertar uma bênção.
Nas muitas vezes que percorreu as estradas de Paranavaí, achou o trânsito bastante intenso, até mesmo nas estradas por onde jipes e caminhões trafegavam dia e noite. “Isso ocorria porque muita gente era levada para as fazendas na mata virgem”, justificou.
À revista alemã, Jacobus Beck discorreu sobre um episódio em que foram até a Fazenda Santa Lúcia (situada em área que hoje pertence a Marilena) pela estrada da Água do 14, entre Piracema e Guairaçá, e tiveram de percorrer dezenas de quilômetros de mata a bordo de um jipe. “Nas subidas e descidas, muitas vezes ficamos com o jipe quase dependurado em muros de pedras. Chegamos a atravessar rios com o veículo. Encontramos animais selvagens, como répteis, e muitas plantações”, confidenciou o padre que enganou uma cascavel de cinco anos, com um metro e meio de comprimento, e cortou-lhe o guizo de cinco anéis para levar de lembrança à Alemanha.
Naquele tempo, às imediações do Rio Paraná, viviam um tenente e um pelotão de soldados do Exército Brasileiro dispersos por pequenas casas de madeira. Com eles, frei Ulrico e frei Jacobus tomaram chimarrão. O grupo era responsável por controlar as navegações fluviais, evitando contrabandos de produtos enviados à Argentina.
Curiosidades
Em artigo à revista alemã Karmelstimmen, Jacobus Beck escreveu que a mata primitiva que circundava o Rio Paraná era a maior floresta virgem do Brasil.
Nos anos 1950, por causa das dificuldades de tráfego, o avião era o meio de transporte mais usado pela população de Paranavaí, superando caminhões, jipes e carros.
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Um padre de muitos talentos
Henrique Wunderlich: padre, pintor, escultor, marceneiro e carpinteiro
O frei alemão Henrique Wunderlich viveu em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, apenas cinco anos, mas foi tempo o suficiente para deixar marcas indeléveis na cultura e história local, a partir de seus trabalhos com pinturas, esculturas, marcenaria e carpintaria.
Hartwig Wunderlich, conhecido como Frei Henrique, chegou a Paranavaí em setembro de 1952 para prestar assistência ao padre alemão Ulrico Goevert, responsável pela paróquia local, que em maio do mesmo ano recebeu autorização do bispo para fundar a igreja matriz. “Frei Henrique não era somente um padre, mas também excelente escultor, marceneiro e carpinteiro”, afirmou Goevert em publicação à revista alemã Karmelstimmen na década de 1950.
Wunderlich começou a mostrar suas qualidades artísticas em Paranavaí ajudando na construção da primeira Igreja São Sebastião, principalmente o altar-mor. À época, os dois padres tiveram de se desdobrar em engenheiros porque em Paranavaí não havia profissionais da área. O que exigiu bastante cautela, pois naquele tempo muitas igrejas tinham desmoronado na primeira tempestade, após construídas nas proporções erradas.
Frei Ulrico lembrou que não demorou para a igreja ficar pronta, apesar do árduo trabalho. Pouco tempo depois, Frei Henrique começou a lapidar um enorme pedaço de árvore para dar-lhe formas inimagináveis. Wunderlich, conhecido na Alemanha como um prolífico artista, logo que terminou o altar teve a ideia de criar um grande quadro de madeira com o símbolo da eucaristia. “Ele fez o peixe e o pão, e no mesmo estilo um cálice com hóstia nas portas do tabernáculo, além de uma enorme cruz atrás do altar”, declarou Goevert que se surpreendeu com o talento do frei em trabalhar com pranchas grossas e duras de madeira de marfim.
O padre se mostrou tão criativo em Paranavaí que desenvolveu métodos particulares de aplicação de tintas. De acordo com Frei Ulrico, primeiro, Wunderlich preparou uma talhadeira tipo cinzel e então esculpiu figuras e linhas na madeira. Frei Henrique preencheu tudo com tinta importada do Japão. “As gravações impediram que as cores se misturassem e logo tudo ficou belo e liso”, comentou Goevert que admitiu ter ficado maravilhado com os quadros de Wunderlich que mais pareciam mosaicos em madeira, tamanha a perfeição.
A população local também ficou extasiada com as criações de Frei Henrique. Não imaginavam que em Paranavaí havia um padre que ao mesmo tempo era um artista de exímias habilidades. O mais incrível é que Wunderlich criava muitas obras em questão de semanas. Uma das esculturas do frei que até hoje chama bastante atenção é a de Jesus pregado na cruz com uma feição carregada de saudade. “Como ele sentia muita falta da Alemanha acabou transmitindo isso ao crucificado”, revelou Frei Ulrico, citando a obra criada em 1953 e que pode ser vista no altar-mor da Igreja São Sebastião.
Outra peça do padre alemão muito lembrada pelos pioneiros de Paranavaí é o escudo dos carmelitas feito em madeira e que traz o lema da Ordem: “Zelo Zelatus Sum Pro Domino Deo Exercituum” que significa “Consome-me o zelo pelo Senhor, Deus dos exércitos.” Também se destacam as pinturas da Santíssima Trindade e da Rosa Mística. “Esta foi pintada como um botão aberto de uma tenríssima rosa da qual nasce a divina criança”, disse Frei Ulrico, acrescentando que junto ao altar, em cima do livro com sete selos, Wunderlich lapidou a imagem de Jesus como o bom pelicano e também como o cordeiro de Deus.
Das peças que podem ser apreciadas ainda hoje, entre as dezenas de esculturas e pinturas que Henrique Wunderlich legou a Paranavaí, uma das que desperta mais curiosidade é a outra escultura de Jesus na cruz, situada na Paróquia São Sebastião. Quem o observa de frente não consegue ver seu rosto. O crucificado está cabisbaixo e com o cabelo tapando parcialmente o rosto em uma simbologia de tristeza e ao mesmo tempo compaixão pelo próximo.
Para conseguir enxergar Jesus com nitidez a pessoa precisa se ajoelhar. A intenção de Frei Henrique era transmitir a ideia de que diante de Jesus crucificado, o cristão deve se abaixar em ato de respeito e adoração. Wunderlich viveu em Paranavaí até 6 de dezembro de 1957, data em que foi enviado de volta à Alemanha para trabalhar nas paróquias de Fürth e Schlusselau, no Estado da Baviera. Ao se aposentar em 1993, Henrique Wunderlich retornou para a sua cidade natal, Kulmbach, também na Baviera, onde viveu até falecer em 18 de abril de 2000.
Curiosidade
Henrique Wunderlich foi soldado do Exército Alemão de 1939 a 1945.
A viagem de frei Ulrico
“Era um lugar para onde ninguém queria ir, nem os capuchinhos”
Em 1951, o padre alemão Ulrico Goevert se mudou para Paranavaí, no Noroeste do Paraná, atendendo a um pedido do bispo Dom Geraldo de Proença Sigaud. Durante a viagem, o frei conheceu toda uma região ainda em colonização.
Quando deixou Recife, em Pernambuco, no início de 1950, Ulrico Goevert foi para a Ordem dos Carmelitas de São Paulo. Certo dia, em diálogo com o frei Jerônimo Van Hinthem, o padre alemão disse que gostaria de ir para um lugar onde fosse possível fundar a própria paróquia. Van Hinthem recomendou que Goevert conversasse com o bispo de Jacarezinho, no Norte Pioneiro Paranaense, Dom Geraldo de Proença Sigaud.
À época, os carmelitas conseguiram uma passagem de trem para frei Ulrico. Depois de quase dois dias, o padre alemão chegou a Ourinhos, no interior paulista, onde embarcou em um ônibus para Jacarezinho. Logo que chegou, o frei foi direto para o palácio episcopal falar com Dom Geraldo de Proença.
O bispo mostrou ao padre alemão um mapa da diocese e pediu que frei Ulrico escolhesse uma entre cinco cidades com paróquias vagas. “Com confiança, respondi que ele poderia decidir por mim, pois sabia onde eu deveria satisfazer os desejos dos meus superiores”, lembrou Ulrico Goevert no livro de sua autoria “Histórias e Memórias de Paranavaí”.
O bispo então falou de Paranavaí que tinha a maior área de toda a Diocese de Jacarezinho. Eram 12 mil quilômetros quadrados. “Uma terra nova, onde tudo deveria ser organizado”, disse Dom Geraldo. Nenhuma ordem religiosa tinha interesse em dirigir a paróquia de Paranavaí. “Era um lugar para onde ninguém queria ir, nem os capuchinhos”, declarou o bispo, referindo-se a Ordem dos Frades Menores. A má fama da cidade e o fato de se situar numa área isolada de mata virgem eram os principais motivos para os padres recusarem o trabalho.
O frei alemão aceitou a missão sem pestanejar, inclusive quis viajar de avião para chegar o mais rápido possível a Paranavaí. Dom Geraldo sugeriu que a viagem fosse feita de trem. Era uma maneira de mostrar ao padre estrangeiro como era uma região em colonização. Até Apucarana, no Norte Central Paranaense, frei Ulrico se surpreendeu com a imensidão e beleza dos cafezais.
O que também chamou a atenção do alemão foi o clima. Acostumado ao calor pernambucano, teve de se habituar no Norte do Paraná a temperaturas inferiores a 15 graus Celsius. “Isto me gelava a noite toda. O que era bem diferente de Pernambuco, onde vivi por 15 anos e tanto de dia quanto de noite fazia muito calor”, admitiu o padre.
“Tive uma desoladora impressão com as enormes árvores deitadas”
Na jovem Apucarana, frei Ulrico Goevert celebrou uma missa e saiu para conhecer a cidade. Não havia muitas residências e todas eram de madeira, o que contrastava com o solo amarelecido. “Naquele dia, ventou muito e uma nuvem de pó se formou. Era possível enxergar poucos metros de distância”, relatou Goevert. Os carros eram obrigados a trafegar com os faróis ligados, o que fez o padre lembrar da Alemanha, onde acontecia o mesmo em períodos de neblina.
Ainda em Apucarana, o padre provincial dos josefinos comprou duas passagens de ônibus com destino a Paranavaí. Em Maringá, que era menor que o atual Distrito de Sumaré, pararam para lanchar em um boteco. Quando a viagem foi retomada, frei Ulrico se extasiou com o que viu da mata virgem da região Sul. Também percebeu que aqui já se praticavam queimadas entre os meses de agosto e setembro.
O desmatamento, embora incipiente, castigava a natureza e fazia surgir colossais fortalezas de fumaça que privavam o sol das mais simples e complexas formas de vida. A estrela parecia triste e encolerizada diante da intervenção humana. “Era como um prato muito avermelhado”, comparou frei Ulrico que nunca tinha visto nada parecido.
Os olhos do padre não destoavam do chão forrado de um branco acinzentado que atravessava a mata em direção às estradas, cobrindo o caminho percorrido pelo ônibus. Para frei Ulrico, talvez a natureza estivesse enlutada. “Parecia neve suja. Tive uma desoladora impressão com as enormes árvores deitadas como corpos mortos no solo. Ao lado, arbustos queimados que estendiam os poucos galhos nus como se suplicassem ajuda aos céus”, poetizou o padre. Atento à reação do frei, o provincial dos josefinos sugeriu que o alemão se acostumasse com os tristes aspectos da colonização.
A última mudança na paisagem ocorreu depois que passaram pela Capelinha, atual Nova Esperança. A terra roxa, de tonalidade vívida, não existia ali, somente o claro e frágil solo arenoso de tom acinzentado. “Ao anoitecer, finalmente chegamos a Paranavaí”, enfatizou Ulrico Goevert em menção ao dia 1º de setembro de 1951. A viagem mostrou ao padre que no Norte do Paraná a natureza se diversificava mesmo a poucos quilômetros de distância.
No tempo das quermesses
Grandes festas para angariar fundos tiveram início em Paranavaí em 1951
Em 1951, pioneiros de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, começaram a realizar as primeiras quermesses para ajudar a comunidade, principalmente a Paróquia São Sebastião que construiu a primeira igreja local. Naquele tempo, era o único espaço de oração para uma legião de migrantes e imigrantes que viviam na colônia.
Normalmente, quem organizava a quermesse criava uma lista com todos os itens necessários para a realização da festa. Depois reunia um grupo de voluntários que percorria a cidade a pé pedindo prendas ou dinheiro. Cada um ajudava como podia, cientes de que tudo que era arrecadado seria leiloado na quermesse, sempre iniciada após a missa e a bênção do padre.
Para a Paróquia São Sebastião, independente de valor, qualquer doação era bem vinda e demonstrava o interesse da população em contribuir. Nos leilões públicos, o padre alemão Ulrico Goevert sempre se surpreendeu. “Era incrível como uma coisa totalmente sem valor recebia um alto lance”, comentou o frei no pequeno livro “Histórias e Memórias de Paranavaí”.
As brincadeiras eram o grande atrativo da festa que reunia quase toda a população local, além de pessoas de outras cidades e povoados. Exemplo disso foi o leilão de uma mamadeira que um amigo ofereceu a outro para mamar em troca de 20 cruzeiros. “Ele se recusou e ofereceu 50 cruzeiros para o rapaz que fez a primeira oferta dar uma mamada”, relatou o padre. Um jogo simples como o da mamadeira durava horas e até alguém dar o último lance dezenas de pessoas já estavam envolvidas na brincadeira.
As ofertas cresciam tanto que uma mamadeira era leiloada por mais de mil cruzeiros. Ao final do jogo, o participante que não tivesse dinheiro para cobrir a última oferta tinha de subir na mesa, colocar a mamadeira na boca e chorar como um bebê. Enquanto isso, o público não continha as gargalhadas.
Outro jogo que prendia a atenção do público era o “cavalinho de lata” que ficava sobre um rolamento e permitia ao vencedor faturar até cinco vezes mais o dinheiro investido. Havia também uma barraca em que as pessoas apostavam em qual das 25 casinhas um coelhinho entraria. Enquanto o bichinho corria o público gritava sem parar. Tinha ainda um jogo dos fumantes em que o participante arremessava argolas sobre maços de cigarro. Quem acertasse, ganhava o produto.
Na quermesse, eram leiloados porcos, bezerros e carneiros. Porém, nenhum animal podia ser comercializado abaixo do preço de mercado. Quem cuidava do leilão de animais era o frei Alberto Foerst. ”Se fosse pra vender barato, preferíamos guardar os animais em nossa propriedade”, disse frei Ulrico. Sorteios de rifas eram outro atrativo da quermesse e para participar bastava pagar vinte cruzeiros. “O prêmio era algo como um canivete de cem cruzeiros”, enfatizou o alemão.
Famílias patrocinavam as festas
Com relação à gastronomia, as festas também levavam à tona as particularidades de vários povos. À época, o churrasco não era tradição nas festas da região, então o que mais agradava a população eram os leitões assados e temperados com bastante sal e pimenta. O que era muito bom para os idealizadores da quermesse, pois o prato aumentava muito a venda de bebidas.
Quando a festa tinha duração de dois dias, a organização do evento conseguia um patrocinador para cada dia. Eram as famílias de melhor poder aquisitivo que custeavam as despesas mais importantes. Segundo frei Ulrico, os resultados das arrecadações com as festas eram publicados em um edital para que toda a comunidade acompanhasse. “Sempre surgia uma rivalidade, nenhuma família queria arrecadar menos que a outra, o que beneficiava a igreja e a escola”, avaliou o padre alemão.
Como Paranavaí era muito jovem nos anos 1950, os patrocinadores das quermesses adotavam como bandeira o estado ou país de origem. “Havia disputa de poloneses contra alemães, italianos e japoneses, baianos e paulistas, cearenses e pernambucanos e muitos outros”, destacou frei Ulrico, acrescentando que o dinheiro arrecadado era usado para saldar dívidas com construções e reformas de igreja, escola e hospital.
De vez em quando, algum pioneiro doava terrenos para serem rifados e a renda destinada a novos investimentos para a comunidade. “Dava para ganhar o equivalente a quatro vezes o valor do lote”, assegurou o padre. É importante lembrar que contribuições financeiras também partiam da Alemanha, organizadas pelos freis alemães Adalbert Deckert e Burcardo Lippert, de Bamberg, no Estado da Baviera.
Quando cães frequentavam a igreja
Animais de Paranavaí tinham o hábito de participar das cerimônias religiosas nos anos 1950
Entre os anos de 1951 e 1957, a primeira igreja de Paranavaí não era frequentada apenas por pessoas, mas também por cães, principalmente em dias de missa. Os animais não podiam ver a porta da igreja aberta que logo entravam e passavam horas no local.
Em 2 setembro de 1951, o frei alemão Ulrico Goevert, logo após tomar posse como pároco de Paranavaí, reuniu alguns pioneiros para cobrir a pequena igreja que não tinha telhado. Terminado o trabalho que levou pouco mais de uma semana, o padre realizou a terceira missa como pároco. Foi a primeira de frei Ulrico na igrejinha.
Naquele dia, o padre se virou em direção aos fiéis para abençoá-los e se deparou com seis cães parados, como se aguardassem a bênção. O mais curioso é que havia mais animais na igreja do que pessoas. Só quatro pessoas estavam lá dentro assistindo a cerimônia religiosa. “Recordei das minhas primeiras missas na Igreja do Carmo, de Bamberg, e também na minha aldeia natal, Darfeld. Aqui era muito diferente, pois poucos participaram das cerimônias no início”, revelou o padre.
E não era apenas em dias de missa que os cães entravam na igreja. A partir de 1951, o episódio se repetiu diariamente. “É oportuno dizer que havia muitos cachorros em Paranavaí. Muitos eram tão devotos que até no meio da semana iam para a igreja”, relatou o pároco Ulrico Goevert em tom bem-humorado.
Os animais se portavam como se estivessem em casa. Os cães não latiam nem rosnavam no interior da igreja, apenas participavam das cerimônias religiosas como os fiéis. Nem se intimidavam com a presença humana, tanto é que o padre decidiu proibir a entrada dos animais.
O que não adiantou muito, pois até 1957 os cães ainda eram encontrados no interior da antiga Igreja São Sebastião, construída em 1952, em substituição a igrejinha. “Às vezes, apareciam até durante a santa missa no altar-mor. Falei ao bispo que eu daria 25 dias de indulgência para cada fiel que desse um pontapé num cachorro dentro da igreja”, frisou o padre. O bispo riu da proposta de Frei Ulrico, mas não concordou em dar as indulgências.
No livro “Histórias e Memórias de Paranavaí”, Frei Ulrico admitiu que deu vários chutes nos cães que invadiam a igreja. E justamente por isso, os animais reagiram. “Os cachorros têm boa memória. Quando me viam na rua, rosnavam e latiam mesmo de longe”, destacou.
À época, um dos cães, revoltado por não poder entrar mais na igreja, mordeu a panturrilha do padre. Apesar de tudo, Frei Ulrico relatava o fato de maneira cômica. “Sempre fui um verdadeiro amigo dos animais, mas não podia permitir a estadia de cães na casa do Senhor”, comentou. De acordo com pioneiros, os animais gostavam de ficar na igreja porque era um local silencioso e de uma atmosfera que inspirava paz.
A chegada de Frei Ulrico Goevert
Logo que chegou a Paranavaí, no dia 1º de setembro de 1951, frei Ulrico Goevert conheceu a primeira igreja de Paranavaí. Era uma casinha de madeira sem telhado e com uma pequena torre. “A casa paroquial também era de madeira, mas tinha cobertura de telhas”, contou Goevert. O padre provincial dos josefinos pediu ao frei alemão para usar o dinheiro arrecadado em uma festa organizada pela comunidade para cobrir e ampliar a igrejinha.
“Ele afirmou que esse seria o meu primeiro trabalho”, enfatizou frei Ulrico que foi enviado a Paranavaí para substituir o padre Carlos Ferrero que comandou as atividades religiosas locais durante alguns meses. Como seria preciso algum tempo para a reforma da igreja, a primeira missa do frei alemão ocorreu num sábado na Casa Paroquial. Lá, improvisaram um altar e um quadro grande de Nossa Senhora das Dores.
O padre estava tão preocupado com as dificuldades que enfrentaria em Paranavaí que admitiu ter suplicado à santa para lhe ajudar. “Naquele tempo, a ‘cidade’ tinha mais ou menos 60 casas e eram todas de madeira. Muitas nunca seriam classificadas como casa, conforme o conceito alemão”, comentou. No início dos anos 1950 ainda havia muitas residências com características de rancho, o que despertou estranheza em frei Ulrico, acostumado ao estilo de vida europeu.
No dia 2 de setembro de 1951, a segunda missa transcorreu em uma casinha que mais parecia uma “barraca de madeira”. No mesmo dia, o padre provincial apresentou frei Ulrico como o novo pároco de Paranavaí e entregou-lhe uma estola e um decreto de nomeação assinado pelo bispo.
O padre fixou residência na Casa Paroquial, onde havia apenas uma mesa, quatro cadeiras, dois armários e duas camas. “Não tinha fogão, e na hora de dormir o padre Carlos se abrigava na casa do vizinho, pois só havia camas para mim e o provincial”, Lembrou.
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Histórias de Paranavaí eram publicadas em revista alemã
Frei Ulrico Goevert começou a escrever para a Karmmelstimmen em 1958
Em 1951, logo que chegou a Paranavaí, o frei alemão Ulrico Goevert teve a ideia de relatar em um diário todos os fatos que lhe chamavam a atenção. Foi assim até o final de 1957. Um ano depois, recebeu o convite para publicar as histórias uma vez por mês na revista alemã Karmelstimmen.
Sobre a necessidade de contar alguns dos fatos mais simples até os mais complexos da história local, o padre justificou que quando um acontecimento não é registrado por escrito em pouco tempo as pessoas esquecem ou criam outras versões. Frei Ulrico começou a escrever, quem sabe, visando a preservação histórica regional que independente de época sempre contribui para a formação da identidade de um povo.
A partir das publicações na revista alemã Karmelstimmen, de Bamberg, no Estado da Baviera, o padre queria mostrar aos leitores o quão extraordinária era a jovem Paranavaí que despontava em meio a mata virgem, onde pessoas de diversas etnias conviviam com animais silvestres; um lugar onde crianças balançavam sobre os cipós que adornavam as casas. Segundo frei Ulrico, a solidariedade da população o encantava e o motivava a se sentir mais brasileiro do que alemão.
“Quando uma criança come durante o recreio escolar, sempre oferece o pão à criança mais pobre e diz: Qué um pedaço? O trabalhador mais pobre também fica feliz em dar ao companheiro um pouco da sua sopa de feijão”, escreveu o padre para a Karmelstimmen em 1958. A sugestão para publicar textos sobre Paranavaí partiu do padre provincial Adalbert Deckert, superior de frei Ulrico em Bamberg.
Boa parte dos textos publicados na revista abordou também o trabalho dos padres carmelitas. “Cumpri com muito gosto a tarefa de descrever aos leitores como foi fundada a missão em Paranavaí, além das nossas alegrias”, disse Goevert. Quando o primeiro relato foi publicado, o vigário pediu aos leitores alemães que não fossem rigorosos com o seu estilo literário. Frei Ulrico acrescentou que nunca teve intenção de escrever livros ou artigos científicos.
Modesto, o padre qualificou os próprios textos como rabiscos, talvez pelo fato de tê-los concebido com bastante pessoalidade, incluindo muitos adjetivos e comentários. Ainda assim, é perceptível que essas características agregaram mais valor aos textos, os deixando leves, cômicos e recheados de envolventes contextualizações. “Quando escreveu para os alemães, frei Ulrico não teve a preocupação de fornecer certos detalhes ou citar nomes de pessoas”, revelou frei Wilmar Santin, responsável pela tradução dos artigos publicados na revista alemã.
Em janeiro de 1992, durante a Festa de São Sebastião, a Ordem dos Carmelitas publicou o pequeno livro “Histórias e Memórias de Paranavaí” que reúne uma compilação de textos que Ulrico Goevert escreveu para a revista Karmelstimmen.
Para a publicação da obra, Wilmar Santin fez uma profunda pesquisa para a inclusão de notas de rodapé. “O livro não é só para homenagear o frei Ulrico, mas também manter viva parte da memória histórica do povo de Paranavaí e região. Povo sem passado é povo sem futuro”, enfatizou Santin.
Saiba Mais
Livro “Memórias e Histórias de Paranavaí” foi editado pela Livraria Nossa Senhora do Carmo.
Frei Adalbert Deckert chegou a Paranavaí no dia 10 de junho de 1955 para uma visita canônica e ficou aqui até o dia 14 de julho.
Bamberg, cidade de origem da revista para a qual frei Ulrico Goevert escrevia, é um município de 70 mil habitantes.
A confissão de um crime
Jovem confessou ao padre que assassinou um amigo em nome da honra
Nos anos 1950, houve inúmeros casos em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, de homens que tiveram relações sexuais com moças, se comprometeram em casar e depois desistiram. Em tais circunstâncias era comum a família da mulher obrigar o homem a desposá-la sob ameaça de morte. À época, um jovem confessou ao frei alemão Ulrico Goevert que assassinou um amigo que se recusou a casar com sua irmã.
Quando um rapaz se relacionava sexualmente com uma moça, mas não pretendia se casar, a única chance de sobrevivência era ir embora do Paraná. “Fazia isso ou era levado para o cemitério mais cedo”, frisou o frei no livro de sua autoria “Histórias e Memórias de Paranavaí”.
As palavras do frei refletem a realidade de um tempo em que não era raro os membros da sociedade civil fazerem justiça com as próprias mãos. Exemplo disso é uma história relatada quando frei Ulrico estava em uma missão popular.
Certo dia, o frei e mais dois padres ouviram confissões até as 2h da madrugada. Assim que terminaram, chegou um rapaz de 20 anos. Em alto tom, para que todos ouvissem, o jovem narrou que ele e o pai, o homem que estava logo atrás, precisavam contar algo ao vigário. Enquanto o padre observou atentamente, o rapaz disse: “Cometemos um crime, mas não estamos arrependidos. O cometeríamos hoje de novo, se necessário.”
O padre pediu que falasse baixo, mas o jovem se recusou. Emendou que todos sabiam o que fez, nem por isso sentia vergonha. Chamou a atenção do frei Ulrico e relatou que em uma festa familiar a irmã de 19 anos dançou até ficar cansada. Em seguida, um amigo se comprometeu em levá-la para casa. ”No dia seguinte, encontrei minha irmã chorando na roça durante o trabalho. Ela contou que o meu amigo tinha lhe roubado a inocência. Comentei que isso era triste e eu como irmão providenciaria tudo para que o casamento acontecesse em breve”, declarou o rapaz.
No mesmo dia, à noite, o jovem procurou o amigo e ele concordou em se casar. O irmão da moça o advertiu que a situação precisava ser resolvida o mais breve possível, pois se tratava da honra da família. “Falei que ele teria um prazo de quatro semanas e que eu não toleraria qualquer adiamento. Do contrário, a honra seria lavada com sangue. Pra ele, não era novidade porque já conhecia esta lei não escrita”, enfatizou o jovem.
A família da moça sempre ficava atenta aos anúncios de casamentos feitos pela Igreja São Sebastião para saber se o jovem intimidado agendou a data da cerimônia. Após o domingo, cansados de esperar, o irmão e o pai da moça foram até a casa do rapaz e o ameaçaram. “Você casa até o dia 15 do próximo mês ou no dia 16 nós o pegaremos”, alertaram. O homem não cumpriu o combinado, então o irmão e o pai dela o mataram a pancadas na roça no dia 16. “O enterramos ali mesmo. Não nos arrependemos e faríamos tudo de novo, do mesmo jeito”, confessou o rapaz ao frei Ulrico que ao ouvir toda a narração ficou apático, sem reação.
Depois, o padre questionou se a polícia foi informada do acontecido. O jovem revelou que após o crime foram direto para a delegacia. Confuso, frei Ulrico perguntou: “E não prenderam vocês?” O rapaz afirmou que não. O delegado só quis saber se enterraram o corpo. Responderam que sim e o policial apenas comentou: “Então tá tudo em ordem!”
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O casal que mentiu para tentar casar na igreja
Frei Ulrico Goevert descobriu a verdade e adiou o casamento
Nos anos 1950, quando alguém tentava casar sem apresentar documentação, era comum o padre pedir que os pais dos noivos ou algum outro parente fizesse um juramento. A medida visava evitar a realização de casamentos de menores de 14 anos.
Mesmo assim, sempre havia quem tentasse se casar mentindo para o vigário. Exemplo disso foi testemunhado em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, pelo frei alemão Ulrico Goevert, da Ordem dos Carmelitas, há mais de cinquenta anos. “Uma vez, chegou até mim uma mocinha e o namorado. Queriam se casar e afirmaram que ela tinha 16 anos”, relatou frei Ulrico no seu livro “Histórias e Memórias de Paranavaí”. O padre pediu que o pai confirmasse a idade da moça sob juramento. Esperto, o sacerdote estendeu a conversa e percebeu que o pai tinha pressa na realização do casamento. “Ele queria mesmo era se livrar da filha”, frisou o frei.
O padre desconfiou que os três mentiram, pois a garota era muito franzina para uma moça de 16 anos. Empenhado em descobrir a verdade, frei Ulrico explicou ao casal e ao pai da garota que eles estavam praticando perjúrio e acrescentou que Deus os castigaria por isso. Ainda insatisfeito, chamou a atenção de todos que estavam na Igreja São Sebastião e perguntou se alguém mais, com exceção do pai, poderia confirmar a idade da noiva. “Um homem se levantou e disse que a menina tinha 13 anos e oito meses. Falou ainda que sabia onde ela nasceu”, contou o padre.
Após o testemunho, o Frei Ulrico Goevert repreendeu o pai da noiva na frente de todo mundo. O homem ficou tão envergonhado que emudeceu. Irritada com a situação, a garota se agarrou ao noivo e esbravejou: “Se o vigário não quer nos casar, vamos dormir juntos assim mesmo,” Nervoso com a situação, o padre alemão respondeu que os noivos poderiam sim dormir juntos sob o mesmo teto, mas em duas celas separadas, na cadeia. O frei ainda ameaçou denunciar o acontecido ao Juizado de Menores. Com medo, o pai chamou a atenção da filha e a levou para casa.
Dias depois, os pais do casal que vivia a cem quilômetros da Igreja São Sebastião retornaram para mostrar o registro civil de casamento em que constava que o rapaz tinha 16 anos e a moça apenas 13. “Cheios de raiva, os pais me confessaram que os filhos se violaram, então tiveram de fazer um casamento civil”, assinalou. Ainda assim, o Frei Ulrico se negou a realizar a cerimônia, pois como a moça tinha 13 anos não poderia receber o sacramento do matrimônio.
A garota completou 14 anos no dia 16 de setembro. No dia 17, os pais retornaram com o casal. Ao fim do casamento, o padre perguntou a moça como foi a lua de mel. “Ela respondeu que com o pai em casa tinha sido uma lua de fel. Nisso, acreditei”, declarou o frei.
Entre os anos de 1951 e 1958, o padre alemão Ulrico Goevert realizou 1,6 mil casamentos em Paranavaí. Do total, 90% das noivas tinham menos de 18 anos. “Com 20 anos, uma moça já era considerada uma velha senhora. Aqui era bem diferente do resto do mundo. Havia uma grande falta de mulheres”, revelou o padre. A justificativa é que como Paranavaí ainda estava em processo de colonização, muitos dos que chegavam eram homens solteiros ou recém-casados. “Daí que as moças já muito novas eram dadas em casamento”, enfatizou o vigário.
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