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Gandhi, Martin Luther King, Coretta King e a não violência
Gandhi defendia a não violência, e o seu assassino foi morto por enforcamento. Ele nunca quis isso, mas ignoraram seu último pedido antes do suspiro final. Martin Luther King foi assassinado e sua esposa Coretta King jamais cogitou que a família fizesse justiça com as próprias mãos. A história mostra que há exemplos de seres humanos que viviam plenamente a não violência. Não era apenas discurso ou retórica.
Em 1942, quando ainda era uma criança, Coretta viu a própria casa ser incendiada por um grupo de brancos racistas no Dia de Ação de Graças. Apesar disso, seu pai, assim como seu avô, jamais sentiu ódio ou tentou se insurgir contra os agressores. “Seu exemplo de perdão ampliou minha compreensão de que devemos ter o compromisso de usar o amor para triunfar sobre o ódio”, ponderou.
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Guerras podem buscar a paz, mas…
Guerras podem buscar a paz, mas se fosse simplesmente pela paz muitas jamais aconteceriam, já que dificilmente o Estado ou algum grupo dominante gastaria em algo que não traga outro retorno. A guerra, na minha opinião, tem se tornado cada vez mais um negócio, e não excepcionalmente é mais uma questão de territorialidade e imposição ideológica do que de paz.
As guerras surgiram não apenas por questão de sobrevivência, mas também com um viés tolo, vil e mesquinho. Alguns dos primeiros conflitos que inspirariam as chamadas guerras eram travados por pessoas que naturalmente viviam no campo e criavam animais. Quando a área de suas propriedades lhes parecia insuficiente, eles invadiam as propriedades vizinhas.
Caso a família que teve a área invadida reagisse, o conflito se armava, e pessoas matavam ou morriam simplesmente pelo anseio de ter mais espaço para criar animais para consumo e comércio. Não raramente, tais ações tomavam proporções inimagináveis, e inspiravam ações muito maiores, desencadeando guerras. Essa preocupação é algo que já era manifestado e registrado na Grécia Antiga por filósofos como Sócrates e Platão.
Se voltando para o nosso tempo, um exemplo contemporâneo do microcosmo da guerra é o livro “Prilli i Thyer”, ou “Abril Despedaçado”, do escritor albanês Ismail Kadaré. Na minha opinião, o romantismo da guerra sempre vai ser muito mais de caráter ficcional do que real, e obviamente que atendendo a objetivos que podem ser claros ou não; e que também podem atender a uma ou várias propagandas ideológicas. Creio que guerra somente pela paz é das coisas mais raras do mundo contemporâneo. “Para a maioria dos homens, a guerra é o fim da solidão. Para mim, é a solidão infinita”, dizia o escritor francês Albert Camus.
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Sophia, uma mulher por trás de “Guerra e Paz”
Título da obra mais importante de Liev Tolstói também definia o relacionamento do autor com a esposa
A imagem completa da vida humana, do zeitgeist russo, da história de luta das nações, de tudo que as pessoas consideravam como felicidade, grandeza, tristeza e humilhação sintetiza o significado e a importância do romance “Guerra e Paz”, do escritor russo Liev Tolstói, lançado em 17 de dezembro de 1867.
O anúncio do lançamento da obra que se tornou quase que imediatamente um dos maiores romances da história da literatura foi feito no Moscow News. Os quatro volumes foram vendidos ao preço de sete rublos. Os três primeiros foram entregues com um cupom para o quarto. Os leitores descobriram que viriam mais novidades nos próximos dois anos.
A repercussão da novela de Tolstói foi tão grande que os russos varreram as estantes das livrarias, inclusive para presentear amigos e depois trocarem cartas em que revelavam suas impressões dos personagens. Tolstói dizia que o livro consumiu cinco anos de sua vida, e a obra não era resultado de sua imaginação, mas sim de algo arrancado de suas entranhas. Naquela época, ele e Sophia eram recém-casados. Ela tinha 18 anos e ele 34. Para ajudá-lo, a jovem passava noites sob luz de velas decifrando e transcrevendo os manuscritos de Tolstói.
Além disso, também assumiu a responsabilidade de avaliar a obra e os sentimentos que ele transmitia por meio do livro. Como o russo era um escritor compulsivo e detalhista que não possuía uma boa caligrafia, Sophia teve de reescrever “Guerra e Paz” sete vezes até chegar à versão final. E ela fez tudo isso na esperança de ter um filho com ele. Mais tarde, também desempenhou o papel de secretária, revisora e gerente financeira enquanto o marido escrevia Anna Karenina, lançado em 1877.
Mas o relacionamento dos dois não era baseado somente em cumplicidade. Quando Liev Tolstói começou a escrever “Guerra e Paz”, Sophia registrou em um de seus diários a seguinte passagem: “Ele está escrevendo sobre a condessa fulana conversando com a princesa quem é. Insignificante”, reclamou. O autor russo se dedicou tanto ao livro que Sophia chegou a ortografar que ele provavelmente já “sentia o crime de matar na guerra”. Alguns pesquisadores afirmam que o casamento deles foi conturbado ao longo de 48 anos.
Em 1910, a saúde de Tolstói já estava bem debilitada, tornando-se uma recorrente preocupação familiar. Em seus últimos dias, pressentindo o pior, ele só escrevia e conversava sobre a experiência de morrer. Depois de muito tempo de renúncia ao seu estilo de vida aristocrata e adoção de uma vida simples, um dia ele saiu de casa com a intenção de se separar de Sophia. O motivo seria os ciúmes que ela começou a sentir quando testemunhou a atenção que o marido dispensava aos seus discípulos.
Talvez com razão e talvez também houvesse um motivo a mais, já que alguns pesquisadores apontam que alguns seguidores mais próximos de Liev Tolstói passaram a exercer influência sobre ele. Na fuga de 20 de novembro de 1910, aquele que foi considerado o homem mais famoso da Rússia faleceu em decorrência de pneumonia na Estação Ferroviária de Astapovo, na Província de Riazan, e talvez imerso na solitude final.
Trecho de “Guerra e Paz” – Volume I (Página 467)
Pedro, silencioso, olhava, assombrado, o amigo, sem poder apartar os olhos dele, aturdido com a mudança que nele se operara. As suas palavras eram acolhedoras, tinha o sorriso nos lábios, mas aos olhos apagados, como mortos, por mais que fizesse não conseguia comunicar-lhes sombra de alegria. Não que tivesse emagrecido ou estivesse pálido, mas aquele seu olhar e aquela sua fronte sulcada de rugas, sinal de pensamentos concentrados, impressionavam Pedro e causavam-lhe como que uma sensação de repulsa, uma vez não habituado a vê-los no amigo.
Como sempre acontece depois de uma longa separação, não foi fácil encetarem desde logo uma boa conversa. As perguntas e as respostas eram breves, posto abordassem assuntos de que tanto um como outro estavam certos de ser dignos de mais larga explanação. Mas, por fim, voltaram a tratar dos assuntos a que apenas se haviam referido abreviadamente: o passado, os seus planos de futuro, a viagem de Pedro, as suas ocupações, a guerra, etc. A preocupação e o abatimento que Pedro notara no olhar do seu amigo refletiam-se agora mais pronunciadamente no sorriso com que ele acolhia as tiradas de Pedro, especialmente quando o ouviu falar com jovial emoção do passado e do futuro.
Obras mais importantes de Liev Tolstói
“Guerra e Paz”, “Anna Karenina”, “Confissão”, “O Reino de Deus está em Vós” e “Ressurreição”.
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Liev Tolstói nasceu em 9 de setembro de 1828 em Yasnaya Polyana, a 12 quilômetros de Tula, na Rússia.
Sophia Andreyevna nasceu em 22 de agosto de 1844 e faleceu em 4 de novembro de 1919. Ela teve 13 filhos com Liev Tolstói, mas somente oito sobreviveram à infância.
Referências
http://www.todayinliterature.com/
V.G. Chertkov, The Last Days of Tolstoy. William Heinemann 1922.
Tolstaya, S.A. The Diaries of Sophia Tolstoy, Book Sales, 1987.
Hermann Hesse e a política
“A política implica em tomar partido e ser partidário se opõe ao humanitarismo”
Ao contrário de muitos escritores, o célebre autor alemão Hermann Hesse jamais se envolveu com política partidária. Em 1917, quando tinha 40 anos, e influenciado pelo contexto da época, Hesse deixou claro que sua identidade de escritor o impedia de se ver como alguém engajado politicamente, na literalidade. “Minha tentativa de desenvolver um gosto por assuntos políticos fracassou”, escreveu em carta que integra o acervo da Hermann Hesse Stiftung.
Ainda assim, anos antes, em 1912, o escritor alemão já não estava satisfeito com os rumos do Império Alemão, sob comando do kaiser Guilherme II, e decidiu se tornar o primeiro emigrante voluntário do país, mudando-se para a Suíça – um desejo também reforçado por conflitos familiares abarcando religião.
Após o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, Hesse recebeu inúmeros convites para assumir cargos políticos na República Soviética da Baviera (Räterepublik) – todos foram declinados. Mais tarde, questionado sobre o motivo de jamais ter aceitado uma das ofertas, ele justificou: “Não me identifico com a política. Caso contrário, eu teria me tornado um revolucionário. Não tenho nenhum outro desejo em vida que não seja encontrar o meu próprio caminho, a minha espiritualidade.”
No entanto, segundo o escritor alemão Paul Noack, estudioso das obras de Hesse, isso não é motivo para criticá-lo, já que ele não era apolítico. A maior prova disso foi o seu comprometimento com a humanidade e o humanitarismo. “Humanitarismo e política são questões mutuamente exclusivas. Ambos são necessários, mas é praticamente impossível servir aos dois ao mesmo tempo. A política implica em tomar partido e ser partidário se opõe ao humanitarismo”, argumentou Hesse, um defensor da paz.
No início da Primeira Guerra Mundial, de acordo com informações da Hermann Hesse Stiftung, o escritor resistiu como um dos poucos intelectuais alemães que não se deixou levar pelo entusiasmo geral da guerra. Inclusive, entre 1914 e 1918, Hermann Hesse publicou dúzias de ensaios criticando as beligerâncias em jornais de língua alemã. Se engajou tanto em causas humanitárias que em 1915 ajudou a criar em Berna, na Suíça, um centro de bem-estar para prisioneiros de guerra.
Um dos primeiros críticos do nazismo, viu seus livros serem qualificados pelo Terceiro Reich como “indesejáveis”. Não chegaram a ser banidos da Alemanha, mas deixaram de ser publicados no país. Quem também se juntou a Hermann Hesse na época foi o ilustre Thomas Mann – autor de clássicos como “A Montanha Mágica”, “Os Buddenbrooks” e “Morte em Veneza”. Além disso, Hesse ajudou financeiramente muitos refugiados alemães.
No final da Segunda Guerra Mundial, tentando se valer do prestígio do escritor, a União Soviética, os Estados Unidos e a Inglaterra tentaram convencê-lo a se envolver na coordenação de uma ofensiva de paz. “Eu não sou amigo da guerra e não sou amigo dos Estados Unidos. Também não sou amigo da mentira e do uso de meios impróprios nas lutas políticas. Eu não lutaria nem por Truman nem por Stalin”, garantiu. E manteve a palavra até o dia 9 de agosto de 1962, quando faleceu aos 85 anos, em Montagnola, na Suíça.
Saiba Mais
Hermann Hesse é conhecido por obras como “O Lobo da Estepe”, “Sidarta”, “Demian”, “Narciso e Goldmund”, “Peter Camenzind” e “O Jogo das Contas de Vidro”,
No dia 14 de novembro de 1946, o escritor foi contemplado com o Prêmio Nobel de Literatura.
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Renato Esteves, um soldado pacifista no Oriente Médio
Conhecido como Sete Metros, jovem de Paranavaí se destacou no Batalhão de Suez e recebeu condecoração da ONU em 1962
Em 1961, Renato Esteves Oliveira tinha 23 anos quando foi selecionado para ser um dos boinas azuis da Organização das Nações Unidas (ONU) no Canal de Suez, no Oriente Médio. O soldado deixou Paranavaí, no Noroeste do Paraná, porque queria ajudar a acabar com a guerra entre judeus e árabes, intensificada em 1956, quando Israel invadiu o Egito.
“A gente morava na fazenda e um dia o meu marido Joaquim [Mariano Silva] foi entregar leite e parou na venda de um português conhecido como ‘Seu Augustinho’, perto da Sanepar [Companhia de Saneamento do Paraná]. O comerciante disse que o meu irmão avisou que iria para o Canal de Suez [que liga o Mar Mediterrâneo ao Mar Vermelho]”, conta a aposentada Maria Aparecida Oliveira Silva.
Com a 7ª Companhia do 3º Pelotão do Batalhão de Suez, Renato Esteves, que era conhecido pela família como Lula e pelos amigos como Sete Metros porque tinha 1,92m de altura, precisou suportar uma viagem de navio com duração de 25 dias até chegar ao Oriente Médio, onde começou a patrulhar na Linha de Demarcação do Armistício (LDA). “Lembrei muito de vocês. Foram muitos dias e noites vendo apenas água, mas deu pra passar na África e na França. Se Deus quiser, vou a Jerusalém na Semana Santa. Também quero levar pra vocês um pouquinho de água do Rio Jordão”, prometeu Renato Esteves à família em carta de 19 de novembro de 1961.
Na LDA, o trabalho do soldado era ajudar a garantir a paz. Ou seja, não permitir que a zona neutra fosse ocupada por israelenses e árabes, caso surgissem provocações ou tentativas de transposição. Se houvesse alguma suspeita, deveria avisar os superiores. Como era voluntário, Sete Metros viajou para o Egito sem se preocupar com salário, mas quando chegou lá ficou feliz com a remuneração paga pela ONU. “Sinto saudade de Paranavaí, mas gosto muito daqui porque o ordenado que ganho em um mês equivale ao salário de um ano no Brasil. Já estou com quinhentos dólares na caixa”, escreveu em carta de novembro de 1961.
De natureza pacífica, o soldado, também chamado de Pracinha 4307 por causa do seu número de identificação, se orgulhava de não ter matado ninguém em 1961 e 1962, período em que fez parte do Batalhão de Suez. Na fronteira do Egito com Israel, teve de aprender a lidar com o perigo. Era preciso resistir ao calor escaldante, às frequentes e violentas tempestades de areia e às minas terrestres instaladas nas áreas de patrulhamento. À noite, dormiu muitas vezes em uma barraquinha de tecido branco ao lado da guarita B17. Independente das dificuldades, Sete Metros tentava resolver qualquer situação da forma mais amistosa possível. Só ficava feliz em empunhar uma arma quando era para ser fotografado. Gostava de impressionar a família, amigos e as moças com quem se correspondia.
Em 23 de novembro de 1961, o soldado afirmou que quando estava de folga passava o dia escrevendo cartas. “Cida [irmã], compre a revista Sétimo Céu que você vai ver o meu nome na última página. Já recebi mais de 300 cartas. Tem muitas moças aí do Brasil querendo me conhecer. Pergunte ao Sandro [um amigo] se ele ainda está levando um papo com aquela mineira. Estou levando um papo firme com uma de Itajubá [Minas Gerais]. Tem mais algumas de outros estados que vão me esperar na Praça Mauá quando o navio [Soares Dutra] atracar no Rio de Janeiro”, relata. Naquele tempo, como Paranavaí não tinha agência dos Correios, as correspondências eram retiradas na Casa Lusitana na Rua Manoel Ribas ou na Casa Moreira na Avenida Distrito Federal.
Trabalhando no Canal de Suez, Renato Esteves fez muitas amizades com egípcios e israelenses. À época, os boinas azuis tinham à sua disposição um avião para viagens de lazer. “Estou gostando bastante da minha vida aqui. Já conheci Beirute, no Líbano, e também o Cairo, a capital do Egito, além da Grécia. Da última vez, encontramos o presidente Juscelino Kubitschek assim que chegamos. Ele veio visitar o nosso batalhão e nos parabenizar”, narra em carta enviada à irmã no dia 13 de janeiro de 1962, acrescentando que a viagem do Cairo até Jerusalém levava 40 minutos de avião.
Enquanto viveu no Oriente Médio, nada abalou mais o pracinha do que a notícia de que o irmão João Ramos Oliveira morreu envenenado. “O meu irmão era meu amigo. A gente estudava junto e ele morreu. Falei pra ele não ficar triste com a minha partida porque eu voltaria logo”, confidenciou dias depois. Em tributo ao irmão, agendou uma missa em uma igreja católica ortodoxa de Jerusalém e tirou uma foto ajoelhado e orando. O que ajudou Sete Metros a lidar com a perda foi a amizade com uma criança egípcia de menos de dez anos. Todos os dias o soldado recebia a visita do menino que percorria quilômetros a pé para vê-lo. Quando o garotinho não podia visitá-lo, Renato Esteves ia até ele. Os dois se tornaram inseparáveis.
Embora tivesse pai, o menino viu no brasileiro uma nova figura paterna. “O Lula ficava muito tempo em uma guarita e quase sempre aquela criança o acompanhava. Levava o menino para o acampamento, comia com ele, dava presentes. O pai do garotinho também ia de vez em quando e gostava do relacionamento dos dois. Ele via uma rara bondade no meu irmão”, assinala Maria Aparecida.
Uma das brincadeiras preferidas da dupla era deitar no chão quando surgia alguma rápida tempestade. Em poucos segundos, seus corpos sumiam na imensidão desértica, cobertos pela areia. A criança ficou tão apegada ao pracinha que um dia pediu que o trouxesse ao Brasil. Como o garotinho tinha família, Esteves admitiu que não poderia fazer isso. “Você me põe dentro de uma caixa e fecha. Quando for passar na vistoria, eu vou com você”, sugeriu.
Sete Metros se sentiu tentado a trazer o menino, mas sabia que seria errado. Durante algum tempo ainda trocaram correspondências, até que as mudanças da vida fizeram com que perdessem contato. Quando retornou ao Brasil, o soldado passou um período no Rio de Janeiro, atuando no Exército. De volta a Paranavaí, quis seguir carreira militar. Então foi para Maringá, onde se tornou policial. “Como morávamos em uma fazenda e meu irmão gostava muito de viajar, ele sempre tinha um quarto reservado em um hotel perto do Terminal Rodoviário de Paranavaí. Era tudo muito bonito e bem arrumado”, explica Aparecida.
Após alguns anos, começou a namorar uma moça em Paranavaí, sem saber que a jovem também estava envolvida com outro homem. Um dia, os dois rapazes se encontraram e se estranharam. A discussão terminou em luta e Sete Metros sacou a arma primeiro e atirou no seu agressor que faleceu no local. Familiares de Esteves testemunham que a moça manipulou a situação, colocando um contra o outro. Depois da tragédia, o rapaz que fazia parte do Destacamento Policial de Nossa Senhora das Graças, na microrregião de Astorga, se entregou na delegacia de Paranavaí, alegando que estava preparado para ser punido pelo que aconteceu. Renato Esteves admitiu a culpa e aceitou a sentença.
Maria Aparecida acredita que o destino poderia ser diferente se o irmão não tivesse retornado a Paranavaí. Pelos serviços prestados no Canal de Suez, Sete Metros recebeu uma condecoração de soldado de destaque da ONU no Rio de Janeiro. O prêmio proporcionou grande visibilidade. “Sempre tinha gente tentando arrumar confusão com ele. Havia muita inveja. O Lula me contava que até os colegas de trabalho implicavam muito com ele”, frisa a irmã que até hoje não entende como o irmão, alguém tão calmo, educado e pacífico se colocou em uma situação tão antagônica à própria natureza.
Quando estava preso em Paranavaí, antes de receber a sentença, foi ameaçado muitas vezes. “Cansado e preocupado, ele pediu que eu falasse com o [deputado federal] doutor José de Alencar Furtado para acelerar a transferência dele”, revela a irmã. Após a mudança para a Penitenciária Central do Estado (PCE), em Piraquara, na região metropolitana de Curitiba, a família começou a visitá-lo aos sábados. “Eu ia sempre à noite, daí amanhecia lá e o encontrava pela manhã”, enfatiza Aparecida Oliveira que não ficava muito tempo sem ver o irmão.
Só que tudo mudou no dia 6 de janeiro de 1970, quando Sete Metros estava na fila do refeitório segurando uma bandeja e aguardando o momento de pegar a comida. Um detento conhecido como Mergulhão que estava logo atrás o golpeou três vezes nas costas com um “estoque” de ferro. Quando o rapaz caiu no chão, um amigo correu para socorrê-lo. Desprevenido, também foi golpeado várias vezes. Os dois morreram no refeitório da penitenciária sem a intervenção de ninguém, nem mesmo de funcionários do complexo prisional.
Mais tarde, a família de Renato Esteves descobriu que o crime foi encomendado por um tenente de Paranavaí. “Meu irmão virou notícia em praticamente todas as emissoras de rádio do Paraná. Fiquei muito revoltada porque os soldados e policiais que eram amigos dele ficaram sabendo da morte no dia do acontecido e não avisaram a gente. Quando eu soube, fui até a barbearia frequentada por eles e discuti com todo mundo. O único que se preocupou em nos procurar foi o compadre Jobi, um ex-soldado já falecido”, garante Aparecida.
Em Curitiba, o deputado federal José de Alencar Furtado designou o próprio motorista para acompanhar a irmã de Renato Esteves até Piraquara. “Foi muito gentil e disse que o motorista poderia me levar onde eu precisasse”, comenta. Na penitenciária, Maria Aparecida entregou uma carta escrita por Alencar Furtado. Se emocionou quando viu que do irmão restou apenas uma mochila pequena com poucos pertences. Muitos itens pessoais foram furtados, não se sabe se por outros detentos ou por funcionários da prisão.
O corpo de Sete Metros foi transferido do Instituto Médico Legal (IML) para um caixão grande e azul. Antes taparam com algodão os três ferimentos causados pelos golpes. Também o vestiram com uma de suas roupas preferidas, limpinha e perfumada, embora já não pudesse mais senti-la. Na viagem a Paranavaí, a ambulância que trouxe o corpo do rapaz parou em Alto Paraná, onde a família de Renato Esteves era bem conhecida. “Quando chegamos lá, muitos que estavam próximos da prefeitura se aproximaram e falaram: ‘Nossa! Esse é o filho do Aureliano!’”, lembra Maria Aparecida visivelmente emocionada.
Depois de avisar os amigos, a família o velou por uma noite e o sepultou no dia seguinte. A mãe de Sete Metros, a portuguesa Maria Esteves, que já tinha perdido o filho João Ramos Oliveira em 1962, não resistiu a mais uma perda e adoeceu gravemente. Em 1970, faleceu alguns meses após a morte do filho Renato Esteves Oliveira que partiu sem imaginar que em 1988 o Batalhão de Suez receberia o Prêmio Nobel da Paz.
Soldado escrevia todos os dias para a família em Paranavaí
Enquanto prestava serviços para a Força de Emergência das Nações Unidas (Unef) no Oriente Médio, o soldado Renato Esteves Oliveira, conhecido como Sete Metros, escrevia todos os dias para a família em Paranavaí. Também gostava de enviar presentes. Curiosamente, as encomendas que saíam do Brasil para o Egito sempre chegavam, mas as que partiam do Canal de Suez para cá muitas vezes eram extraviadas. “O avião que leva as encomendas só vem aqui uma vez por mês. Elas chegam através do Ministério da Guerra, no Rio de Janeiro”, explicou o pracinha em carta de 1º de janeiro de 1962, seis meses antes de retornar ao Brasil.
Entre os produtos enviados por Sete Metros estavam tapetes, chinelos, navalhas, roupas e brinquedos. “Ele enviou ‘chinelo de dedo’ pra gente numa época em que aqui ainda não existia. Mandou também uma réplica de um camelinho bem bonitinho para o Pedrinho [sobrinho já falecido]. Depois de mais de 50 anos, ainda guardo com carinho”, assegura a irmã Maria Aparecida Oliveira Silva.
Em 1961, o pracinha experimentou pela primeira vez uma cerveja em lata no Egito, versão que os brasileiros conheceriam só em 1971. Gostou tanto da bebida que em 10 de abril de 1962 comemorou o aniversário rodeado de amigos e uma mesa repleta de latinhas. “Como aqui não existia, ele trouxe de lá. Junto veio um baú com tapetes e roupas para toda a família. Tinha muitas novidades, coisas que não se via no Brasil”, conta Aparecida, lembrando que o irmão geralmente pedia para enviarem jornais, cigarros e revistas, principalmente O Cruzeiro, uma de suas preferidas. No entanto, as remessas não podiam ultrapassar 20 quilos.
Em carta de 25 de novembro de 1961, Renato Esteves pediu que o pai fosse a uma barbearia para perguntar o preço da navalha alemã Solingen. “Aqui é muito barato. Eu mando pra ele vender. Vou enviar também um embrulho com tapete que não existe aí. Diga para o pai repassar por dois mil cruzeiros. Quem não quiser comprar, é só mandar vir buscar aqui no Egito”, ironizou. No Canal de Suez, o traje tradicional de Sete Metros incluía farda, boina, anel de formatura, cachecol e um cinto de couro com uma pistola 45 e uma submetralhadora INA. “Nunca deixei de mandar uma resposta pra ele. Tenho um pacote enorme de cartas que me enviou. Estão todas velhinhas e amarelas”, revela a irmã.
Sete Metros abominava injustiças
Foi justamente por abominar injustiças que Renato Esteves Oliveira, o Sete Metros, optou por deixar o trabalho no campo para se tornar soldado e depois policial. Nos anos 1960, a Polícia Militar do Paraná não tinha uma divisão específica para lidar com situações de alta gravidade, então no Norte do Paraná convocavam Sete Metros que logo ficou famoso por prender alguns dos criminosos mais perigosos que atuavam na região.
Apesar da curta carreira como policial militar, Renato Esteves desmantelou inúmeras quadrilhas de assaltantes e sequestradores. “Era temido pelos bandidos porque sabia como reagir em qualquer situação. Foi o responsável por acabar com ondas de tiroteios e outras ações criminosas em cidades como Nossa Senhora das Graças, Jaguapitã e Colorado”, garante a sobrinha Maria Neuza Silva. Mesmo quando estava de folga, o policial costumava intervir em casos de injustiça.
Maria Neuza se recorda das vezes em que na infância ela e o irmão Luiz Ademir saíam com o tio para comer pão com sardinha. “Era a comida preferida dele. Ele também adorava o seu jipe e gostava muito de mecânica. Foi criado na roça, mas não se identificava com o campo”, comenta a sobrinha.
Trecho de uma carta escrita por Renato Esteves em 19 de novembro de 1961
Saudações,
prezada irmã Cida. É com muito prazer que pego na pena para responder a sua cartinha recebida há poucos dias. Que bom saber que todos estão com saúde. Também vou bem graças a Deus. Fiquei muito contente de saber que recebeu carta minha e que continua me escrevendo. Quando for na Casa Lusitana, procure carta no nome do pai porque escrevi muitas. Cida, quero que tu me mande umas cinco revistas, daí quando eu receber vou te mandar um corte de vestido que aí no Brasil não tem desse pano. Tu fala para a mãe que eu mando um pra ela também. O Tim [irmão] mandou eu levar um revólver pra ele. Manda ele preparar a grana que na volta eu passo na Itália e compro a arma direto da fábrica.
Você disse na carta que o Zé [irmão] ainda não voltou e que o Francisco [cunhado] já está bom. Eu desejo felicidades pra eles. Cida, você falou que o pai conseguiu o endereço do Feliciano. Ele foi meu colega quando servimos o Exército no Rio de Janeiro. Ele queria vir pra Suez. Aqui o ordenado de um soldado é de 32 contos por mês e se Deus quiser vai vir aumento pra nós agora com a saída do Jânio Quadros. Você falou na carta que está chovendo aí. Aqui passa até um ano sem chuva. Começou o frio agora em novembro e vai até março. Quando vocês estão jantando, aqui é meia-noite e eu já estou dormindo. Deixo a minha benção ao pai, mãe e meus sobrinhos. Lembranças para todos daí.
Saiba Mais
45 anos após sua morte, o túmulo de Renato Esteves Oliveira, tio-avô do autor da reportagem – David Arioch, ainda recebe muitas visitas no Cemitério Municipal de Alto Paraná.
Sete Metros era tão respeitado que uma semana após a sua morte alguns detentos se uniram e mataram o criminoso conhecido como Mergulhão.
Frases de Renato Esteves Oliveira
“Cida [irmã], quando me escrever, mande perguntar na Fazenda Ouro Verde se tem família nova. Se alguma colega da Clarisse perguntar de mim, dê o meu endereço que é pra eu treinar a caligrafia porque a minha letra está um pouco ruim.”
Nos anos 1950 e 1960, era muito comum os casos de envenenamento em Paranavaí e região. Então um dia Renato disse: “Ô Pai, nunca tome nada que te derem para beber sem antes ver a pessoa abrir a garrafa na sua frente.”
Por que os soldados brasileiros foram enviados para o Canal de Suez?
De acordo com o Manual do Expedicionário Brasileiro em Suez, a Força Internacional das Nações Unidas enviou soldados brasileiros para fazer uma interposição entre árabes, israelenses, franceses e ingleses. O objetivo era evitar que guerreassem. Em 1956, o desentendimento entre os quatro povos teve como estopim a nacionalização do Canal de Suez pelo presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, apoiado pela União Soviética. Com isso, franceses, ingleses e israelenses não poderiam mais usar o canal como rota estratégica de navegação para Ásia, África e Europa.
Com o apoio dos Estados Unidos, França, Inglaterra e Israel se uniram para atacar o Egito. Preocupada com a possibilidade do conflito se transformar em uma Terceira Guerra Mundial, a ONU agiu rapidamente e enviou tropas de paz para o Canal de Suez. Lá, brasileiros trabalharam em parceria com soldados da Noruega, Suécia, Dinamarca, Finlândia, Iugoslávia, Índia, Colômbia e Indochina.
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O primeiro administrador de Paranavaí
Hugo Doubek, o marceneiro que cuidou dos enfermos e tentou promover a paz na colônia
O curitibano Hugo Doubek foi o primeiro administrador de Paranavaí e mesmo tendo deixado o distrito em 1948 fez muito pela população local ao longo de cinco anos.
A viagem
Em 1943, o marceneiro Hugo Doubek estava participando de uma exposição de artes em Curitiba quando conheceu o diretor do Departamento de Geografia, Terras e Colonização (DGTC) do Governo do Paraná, Antonio Batista Ribas. O diretor convidou Doubek para ser o administrador geral da Fazenda Velha Brasileira, então o marceneiro aceitou. Hugo Doubek já conhecia a Brasileira, onde trabalhou desmanchando casas em algumas áreas para reconstruí-las em outros pontos.
Acompanhado da mulher e de cinco filhos, o marceneiro viajou de trem até Marques dos Reis, distrito de Jacarezinho, no Norte Pioneiro Paranaense. “Lá, pegamos um trem até Londrina, onde ficamos hospedados na casa do inspetor de terras”, relatou Hugo Doubek em entrevista à Prefeitura de Paranavaí décadas atrás. Por causa de uma grave sinusite, o marceneiro teve de passar por uma cirurgia de emergência.
Dias depois, já recuperado, seguiram viagem de caminhão até Maringá, distrito de Mandaguari, onde pararam em um barracão para descanso de viajantes. Levaram mais de três horas para achar a saída do distrito, quase um labirinto por causa da mata primitiva que cercava o povoado. “A próxima parada foi em Cala Boca [atual Mandaguaçu], onde a estrada parecia um campo de batalha cheio de trincheiras”, avaliou o pioneiro, acrescentando que em alguns trechos, as rodas desapareciam, cobertas pelo solo arenoso.
Muitas vezes, Doubek teve de descer do caminhão e procurar galhos para desenterrar as rodas. E para piorar a situação, não havia nenhuma moradia na estrada. “Nem riacho para mitigar nossa sede”, comentou. Chegaram à Brasileira em dia chuvoso e se instalaram em um barracão que se tornaria sede administrativa da colônia. “Onde hoje está Paranavaí, quando cheguei aqui era só um capoeirão, uma densa mata cheia de rastros de onça”, destacou Hugo Doubek.
Os conflitos
Quando se mudou para Paranavaí, o pioneiro tomou algumas precauções. Trouxe uma espingarda de calibre 16 e dois revólveres: um winchester e um H.O., de calibre 38, para garantir a própria segurança e a dos familiares. Na colônia, o administrador teve de resolver conflitos de grilagem de terras.
Sobre o assunto, há algumas décadas, o pioneiro admitiu que no início cometeu injustiças por acreditar que o reclamante sempre tinha razão. A situação só melhorou quando Doubek ponderou que seria melhor ouvir todos os envolvidos antes de tomar uma decisão. Em casos mais graves, o administrador contava com o apoio do sargento Marcelino, o chefe de polícia do povoado. “Naquele tempo, isso aqui parecia um acampamento de ciganos. Era feliz quem tinha uma lona e podia armar uma barraca”, enfatizou o administrador.
Na época em que a colônia era dividida em glebas e cada uma somava 15 mil alqueires, Hugo Doubek foi designado a percorrer o povoado a pé até as margens dos rios para localizar todos os moradores. ”Lembro que a 2ª Gleba começava a 10 quilômetros da área urbana e tive que percorrer 20 quilômetros para achar os primeiros colonos”, revelou.
Os enfermos
Ao assumir a administração da colônia, Doubek teve de lidar com a falta de assistência médica. O marceneiro costumava cuidar dos enfermos com chás de ervas, álcool, água oxigenada, pomada Riclei e ataduras que trouxe de Curitiba.
Certa vez, o administrador atendeu um rapaz com um ferimento de oito centímetros causado por um galho. A ferida estava cheia de pus e tinha odor de carne em decomposição. “Havia sido infeccionada por mosca varejeira”, explicou o marceneiro que submeteu o rapaz a um tratamento a base de creolina. Em um mês, o ferimento cicatrizou.
Outro caso nunca esquecido por Hugo Doubek foi de um jovem que carregava um machado sobre o ombro quando estava atravessando um tronco sobre um riacho (pinguela). “O rapaz caiu e se feriu. Como sangrava muito, seus companheiros queimaram um chapéu de feltro e colocaram o chumaço sobre o ferimento, parando o sangue”, disse o pioneiro.
Doubek fez curativos no ferimento do rapaz todos os dias até ele se curar. Segundo o marceneiro, para não desanimar ninguém era preciso fazer semblante doce mordendo maçã azeda. Muitas pessoas foram tratadas pelo pioneiro, principalmente moradores que contraíam doenças, como malária e leishmaniose, além de peões que se machucavam na derrubada de árvores.
A partida
Hugo Doubek deixou Paranavaí com a família em 1948, quando, por motivos nunca declarados, pediu transferência para Curitiba. Alguns pioneiros supõem que a partida do marceneiro foi motivada por pressão política do capitão Telmo Ribeiro, que era o líder local do Partido Social Democrata (PSD). “Aqui houve muita alegria, mas depois que começou a política, eu desgostei muito. Tive muita tristeza e até medo”, ressaltou a pioneira fluminense Palmira Gonçalves Egger.
Em apenas dois anos morando na colônia, Hugo Doubek viveu a transição da Fazenda Velha Brasileira para Paranavaí. De acordo com pioneiros, um nome que ajudou a escolher. Além disso, o marceneiro tentou promover a paz na colônia, realizando acordos entre os moradores e também salvando muitas vidas quando ainda não havia nenhum médico em Paranavaí.
Curiosidade
O pioneiro era o responsável por investigar as causas das mortes que aconteciam na colônia.
Hugo Doubek foi o primeiro inspetor de terras de Paranavaí, depois substituído por Ulisses Faria Bandeira.
Frases dos pioneiros sobre Hugo Doubek
Enéias Tirapeli
“A maior autoridade aqui era o Hugo Doubek.”
“Para conseguir terra tinha que ligar na casa do Hugo e esperar um tempo para eles cortarem o terreno.”
Izabel Andreo Machado
“Quando cheguei aqui só tinha umas três ou quatro casas, e uma era do chefe da colônia, o Hugo Doubek.”
José Alves de Oliveira (Zé do Bar)
“Acho que foi o Hugo Doubek e o Ulisses Faria Bandeira que colocaram o nome de Paranavaí.”
“Quando a gente fazia o requerimento de terras para o Hugo Doubek, ele dava mais ou menos 42 alqueires para cada famíllia.”