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Diante do luar
Deito fora os desconfortos da minha alma diante do luar. Não em definitivo. Existe um aroma imperceptível trazido pela noite que invade essências filtrando suas inconsistências e pacificando seus conflitos. Mas é preciso serenar por tempo que pode variar.
Cada um sabe qual é o seu momento. Os olhos voltados tanto para lá quanto para cá – o diante e o eu mesmo – que miro sem precisar intervalar. Parece impossível, mas não. Apenas exercício.
Uns aprendem, outros desistem. Outros nem tentam. Sente-se alguma coisa ou coisa nenhuma. Verdade, placebo (como se pudesse ser ingerido na sua imensidão) ou superstição.
Não há relevância nessa consideração. É apenas acreditar ou não acreditar. Na pior das conclusões, não há tempo perdido, quando há um céu lá fora a se observar. E alguém diz imerso num sonho: “Como se sempre a nos esperar.”
Por que não ser apenas empático?
Há pouco, eu estava correndo e pensando: Se não matar outro ser humano fosse um imperativo moral desconectado de suas implicações legais (que nesse caso seriam inexistentes), será que quantas pessoas matariam outras? Qual seria a proporção da mortandade?
Claro que existe a questão da impunidade, mas qual seria o percentual de aumento de assassinatos? Eu não sei dizer até que ponto e em que proporção a humanidade em geral reconheceria o assassinato como errado porque se trata da obliteração de vidas, da imposição de sofrimento (para quem morre e/ou para quem fica), e não porque, dependendo de quem comete o ato, e que tipo de ato, a pena pode significar anos na cadeia (claro, a não ser que você seja um dos premiados pelo fator impunidade).
Mas realmente me intriga que em muitos casos de homicídios não há tanta discussão moral sobre o ato em si, não o seu processo legal. “Fulano de tal fez besteira e pode pegar não sei quantos anos de cadeia…” Essa é uma consideração comum, não o contempto moral que desencadeou tal possibilidade.
Então quer dizer que só não devemos cometer homicídio porque a Justiça pode punir? Não devemos roubar porque podemos ser presos em flagrante? Não devemos agredir pessoas para não parar na cadeia ou ter de pagar fiança? Por que não simplesmente não fazer nada disso porque é errado? Por que não ser apenas empático? Talvez também seja um sintoma da ausência de filosofia moral em nossas vidas, quando necessária.
A memória é uma das mais belas armadilhas da natureza
A memória é uma das mais belas e intrigantes armadilhas da natureza. Você pode carregar alguém dentro dela por dias, meses e anos, mas o olvidamento não depende simplesmente da sua vontade. Você pode se apaixonar neste momento – ou amar alguém romanticamente neste momento. Seu coração pode rufar como um tambor, flores podem crescer dentro do seu estômago.
Ou você pode simplesmente se apaixonar ou alimentar esse amor com a idealização que sua fecundidade imaginativa permite – ou com a racionalização que sua razoabilidade anui. E isso te faz feliz no presente. Mas se tudo se dilui alheio ou não à sua vontade, o desmemoriamento não tem obrigação alguma de corresponder ao seu anelo, porque a sua memória é um ser que vive dentro de você, e que tem suas próprias vontades.
Sim, o ser humano pode aprender a condicionar a própria mente, mas nunca totalmente. E a memória que construímos, ou melhor, que nos constrói, não perpassa pela vontade (diferentemente do pensamento treinado ou condicionado), mas por critérios de relevância que não são definidos por mim nem por você. Por isso acredito que a memória é um ser que habita – um ser tão inaudito que se partir anula o construto da nossa própria existência.
Quando eu era criança…
Quando eu era criança, eu achava que os adultos tinham todas as respostas. Quanto mais velho, mais respostas. “Deve ser bom ser adulto, saber tantas coisas. Ter tanta confiança, segurança. Adultos são incríveis. Estão lá em cima e eu aqui embaixo, querendo crescer como feijão no algodão. Foram como nós, mas agora estão em um estágio bem avançado”, eu pensava.
Havia dois universos – o meu e o dos adultos. Como criança, eu só podia deambular por esse universo ocasionalmente, quando permitiam. Eu não queria exatamente ser adulto – tinha apenas curiosidade precoce sobre esse mundo ignoto. Puerilidade, penso hoje.
Não, você cresce e o que cresce com você são as dúvidas –
meu caso. Volatilidade, o conhecimento perpassa por isso comecei a crer. Quando conhecia algum ser alheio a esse universo eu dizia que ele, manietado às suas pequenas certezas, talvez fosse tão abençoado quanto amaldiçoado pela ignorância. Mas, em muitos casos, a maldição pode ser invisível. Que assim seja então.
Hoje, sem melindre, prefiro me definir apenas como um colecionador de dúvidas, pirronismo, ambiguidades, suspicácias. Uma vida ingerindo, digerindo e regurgitando palavras e ideias que podem renascer ou simplesmente desvanecer. Talvez seja isso que dê sentido à minha vida, porque sempre suspeito que imerso nas minhas asseverações e verdades ineludíveis talvez eu deixasse de deambular para escorar, e escorar me parece tão chato que sinto sono só de pensar – mas sem a possibilidade de sonhar.
Não reconheço necessidade de ser agressivo ou ofensivo
Francamente não reconheço necessidade de ser agressivo ou ofensivo com qualquer pessoa que tenha uma opinião ou posicionamento diferente do meu. Mesmo quando me provocam ou me desrespeitam, não vejo sentido em retribuir da mesma forma. Não sou um cara iluminado por causa disso. Encaro apenas como uma questão simplista de ponderação. O que eu ganharia devolvendo o que me oferecem de negativo? Nada. Nem eu nem o outro. Não existe vitória nesse tipo de situação, mesmo quando alguém comemora.
Às vezes, vejo pessoas se exaltando por pouco, mesmo quando tentam transmitir uma mensagem positiva. Quem sabe, nem se deem conta de que a mensagem pode ser aparentemente boa, mas se o veículo estiver comprometido, talvez ela não chegue de forma satisfatória ao seu destino – ou nem chegue. Sou da opinião de que se temos uma boa oportunidade, é importante nos abrirmos para uma discussão, não nos fecharmos. Não acredito que exista tal coisa como “o outro não estar à altura” para uma conversa. De alguma forma, todo mundo tem algo a dizer se o respeito prevalecer.
Admito que encaro com estranheza esse costume de tentar reduzir a importância “do outro” simplesmente porque não concordamos em uma discussão. O mundo não é uniforme, homogêneo, unímodo. Afinal, reflete a própria diversidade de seus habitantes. Acho triste o fato de que, muitas vezes, nesse exercício de não ouvir “o outro”, é como se estivéssemos diante de um espelho – em que queremos enxergar apenas nós mesmos.
Isso me traz lembranças da minha infância, quando brincávamos em uma gangorra no quintal de casa – e o nome dela era Discussão, porque um tinha o direito de falar enquanto estava no alto – e o outro de silenciar. E era justamente o silencioso que elevava o interlocutor da vez, para entender que discutir não significa diminuir.
Sou tímido
Sou tímido e reservado. Sou um cara realmente introspectivo. No decorrer da minha vida muitas vezes encontrei pessoas que disseram: “Aquele cara é metido, orgulhoso” – ou algo do tipo. Então entendi que isso acontecia por eu ser basicamente tímido, reservado, introspectivo.
Não tenho problema em falar em público, para uma multidão, que seja, nem em expor ou defender minhas opiniões. Quando me convidam para discorrer sobre algo, normalmente aceito.
Mas tem coisas a meu respeito, sobre quem eu sou, que realmente não partilho com as pessoas, a não ser por meio dos meus textos. Esse é o tipo de ser humano que sou.
Ser tímido pode ser visto como um defeito por muita gente – talvez. Mas pode não ser também. Depende da leitura que você faz e em que você transforma essa timidez. Desde pequeno observo muito mais do que falo. Acredito que também que é por isso que escrevo.
Também não costumo interagir tanto em redes sociais. Julgo que o tempo é sempre mais curto do que eu gostaria. Honestamente, se me falam para escolher entre produzir ou conversar, sempre opto pela primeira.
Sou um sujeito estranho, não nego e não reprovo, mas também vejo isso como parte das escolhas que fazemos compatíveis com nossas características, predileções e objetivos.
Breve reflexão sobre a depressão
Se tenho ou já tive depressão, isso não faz de mim uma referência em depressão, mas apenas alguém que talvez tenha condições de compartilhar suas experiências e impressões do assunto – ou seja, talvez permitir uma compreensão diferenciada, um algo mais, nem completo nem incompleto. Não creio que isso signifique que eu esteja autorizado a falar em nome de outras pessoas que estão vivendo essa realidade, principalmente se isso for feito de forma pétrea. Afinal, os níveis de depressão e suas motivações podem ser visceralmente diversos.
Quando falo de alguém em determinada situação que conjecturo análoga ao que vivi, considero semelhança não equivalência, porque a minha individualidade, as minhas experiências, se traduzem em especificidade, em recortes pessoais. E recortes são mais subjetivos do que objetivos, assim como seu impacto, mesmo que eu tente fazer parecer o contrário.
A minha experiência não pode ser uma baliza para simplificar e julgar a experiência do outro, mas talvez uma possibilidade para criar uma ponte se não de entendimento, pelo menos de consideração à individualidade, porque, na minha concepção, isso é essencialmente uma manifestação de respeito. Por isso, sou da opinião de que a dor de uma pessoa é somente dela, e só ela sabe o que isso representa em sua vida.
Quando me coloco no lugar do outro, tenho como parâmetro tal reflexão: “A dor de alguém não pode ser medida, qualificada como maior ou menor do que a de ninguém, é simplesmente a sua dor.” Isso basicamente resume o que penso em relação à individualidade do sofrer. Creio que quando damos nomes às coisas, não raramente temos uma tendência a apoucar o seu impacto pessoal, e isso pode ser problemático, porque embora duas pessoas vivam uma chamada “mesma realidade”, por exemplo, isso não significa que o peso seja equivalente.
Sobre os meus sonhos
Se deixo de sonhar, deixo de viver. A minha experiência de vida tem provado que muitos dos nossos problemas surgem ou pululam quando deixamos de sonhar. Sou um sonhador por natureza, desde criança; quando chegava em casa com não mais do que quatro anos inventando aventuras que vivi no caminho de volta para casa depois da escola.
Acredito realmente que posso ser do tamanho dos meus sonhos. Mas preciso ter uma opinião tão sólida quanto os meus anseios. Já passei por experiências que podem parecer bobas, mas que servem de exemplo para ilustrar como a força de vontade é determinante. Com 21 anos, um ortopedista me disse que eu jamais poderia fazer musculação em decorrência de um diagnóstico de hérnia de disco. Aquilo pareceu tão absurdo para mim que me matriculei na academia no dia seguinte.
Já se passaram 12 anos e, não querendo me gabar, mas não conheço ninguém na academia que frequento que treine com mais assiduidade e intensidade do que eu. Parece tolo, não? É um exemplo de que quando os outros dizem que sou incapaz de alguma realização importante ou prazerosa para mim é exatamente esse algo que farei. Porque no fundo, opiniões são apenas opiniões – nós que atribuímos peso a elas.
Conheci muitas pessoas que me falaram da impossibilidade de seus sonhos e dos outros. A verdade, na minha opinião, é que pessoas que não sonham e não buscam corporificar seus sonhos também tendem a compartilhar essa impraticabilidade com os outros. Algo como: “Se não sou capaz de lutar por meus sonhos, também será perda de tempo pra você.” Isso a mim não diz muito.
A ideia de ter uma vida comum, viver simplesmente para mim mesmo e ignorar todo o resto sempre me incomodou. Por isso, meus sonhos estão sempre relacionados ao que sou capaz de oferecer. Sim, e há várias coisas que eu gostaria de oferecer – meus sonhos crescem a cada dia. Se muitos não acreditam neles, sem problema.
O importante é que eu acredito, e isso é bom, porque meus sonhos dependem em primeiro lugar da minha força. Para mim, sonhar não é perda de tempo. Sonhar é viver buscando a consubstanciação da própria essência. E penso que não há nada que preencha mais o ser humano e o mantém na sua rota do que isso.
Breve reflexão sobre o ódio
Tenho altos e baixos como qualquer ser humano, mas realmente não costumo nutrir ódio pelas pessoas. Isso faz de mim um ser humano melhor? Não sei, porque não penso criteriosamente a respeito. Porém, creio que o ódio demanda tempo e energia, e honestamente não vejo como me dedicar a isso pode ser positivo. Afinal, odiar também é um exercício, e como todo exercício é preciso despender algo.
Ademais, o ódio, como desdobramento da passionalidade, também pode ser uma forma de impermanência ou fragilidade consubstanciada, e como tudo que é negativamente consubstanciado te priva de algo se você não se esforçar para observar além ou entender que isso naturalmente pode ter mais implicações para você do que para o objeto do seu ódio.
Sendo assim, creio que, de fato, o ódio, para além de ser um agente limitador, não me parece um bom motivador se excita em mim algum tipo de paixão virulenta que me priva da razoabilidade ou mesmo da racionalização. Odiar me parece desnecessariamente laborioso e contraproducente. Há que se considerar também o fato de que o ódio em longo prazo pode ser um agente corrosivo, e mesmo um gatilho de doenças psicossomáticas.
Um corpo que padece
Parei de andar tem alguns meses, logo que meu corpo assumiu o controle da minha vida
Acordei um dia e percebi que meu corpo já não era meu. Tentei me movimentar na cama e não adiantou. Eu pertencia a ele, mas ele não me pertencia. Então continuei deitado observando o teto em meio à escuridão plangente. Havia traços disformes e oscilantes. Não! Mais do que isso! Uma imundície densa e clara que me lembrou aquelas medonhas bactérias que vi nas aulas de biologia na adolescência.
Eu nunca tinha reparado como o forro podia ser tão sujo. Acho que concentra a medula da nossa podridão. Ou será que era minha imaginação? Talvez eu fosse a própria bactéria, agraciada com uma visão panorâmica de mim mesmo. Vai saber! A verdade é que minha respiração continuava fétida e ruidosa. Como era horrível! Meu nariz simulava um aterro sanitário, espalhando chorume a cada expirada. E o que escorria dele eu nem sentia ou via. Afinal, desse espetáculo repulsivo que usava meu corpo como palco, fui relegado a mero espectador.
Como me esforcei para silenciar minha mente. Claro que não consegui! Fechei os olhos por alguns minutos e a temperatura do ambiente caiu para cinco ou seis graus Celsius. Tremi mais de ódio do que de frio. Eu estava coberto com um edredom branco, velho e encardido, com algumas manchas amareladas – rodelas de mijo que o maldito do gato do vizinho deixou de presente quando invadiu meu guarda-roupas. Que lazarento!
Tudo bem! Logo esqueci do bichano e quis me levantar para dar uma lição na mãe natureza. Como eu queria arrastá-la pelos cabelos. Quem sabe a cada chumaço arrancado ela subisse um grau de temperatura. Com 15 chumaços, eu a deixaria parcialmente careca e teria 20 ou 21 graus. E que vitória! Ainda poderia usar aqueles cabelos para fazer um espanador ou uma pequena cortina para um teatrinho de bonecos.
Rinite, bronquite e sinusite, sinusite, bronquite e rinite, difícil descobrir quem queria me ferrar mais. Bah! Quero enganar a quem? Fumei mesmo! E fumei muito! Chegando a quatro maços por dia! Eu era uma chaminé mais eficaz do que qualquer Maria Fumaça já vista. Sou o maior colecionador de doenças pulmonares que este mundo desconhece. Eu deveria estar no Guinness Book! Segurando o meu maior troféu, o único pulmão que me restou, tão preto que parece sobejo de carvão pós-churrasco.
E daí? Meus dentes eram tão louros, e meu hálito tão fedegoso que eu poderia fazer cosplay do Beetlejuice. Eu adorava jogar fumaça na cara dos outros, principalmente de quem desprezava fumantes. Eu chegava pertinho, como quem não queria nada, concentrava bem a fumaça e a soltava bem na hora que alguém abria a boca para falar alguma coisa. Daí era só falsear expressão de constrangimento – um par de olhos arregalados, uma respirada profunda e uma inclinada de cabeça, pedir desculpas e me afastar. Me diverti muito quando não existia ambiente para não fumantes. Ah! Deixa pra lá…Não quero mais falar disso!
Olhe! Nunca tinha reparado como o forro ganha desenhos tracejados na madrugada. São como lombrigas abjetas que dominam os bastidores da casa. Acho que também sou uma porque já não sinto mais minhas vértebras. Me resumo a uma matéria modorrenta e estiolada. Quem sabe tudo que vejo e desprezo seja em alguma proporção uma representação de mim mesmo.
Fiquei imaginando quantos bichos tétricos e horrendos não habitam este lugar noite após noite. Aposto que se eu derrubasse tudo encontraria centenas de animais sem nome, jamais catalogados. Seres que só existem por poucas horas da madrugada, quando confundimos realidade, sonho e pesadelo. Pode ser que se alimentem de esperanças, devaneios e reflexões prolongadas.
Certo! Continuo sem me mover e só consigo pensar na última vez em que fiquei em pé. Me parecia tão irrelevante, inútil. “Cuidado com a coluna, postura ereta, um passo após o outro”, quanta tolice! Eu só queria sentar e deitar, deitar e sentar. Talvez eu tivesse nascido para ser um tatu-bola. Só que rolar também exige tanto esforço que sinto calafrios só de imaginar. E a pressão abdominal na hora de girar? Triste e dolorosa! Ser uma lesma é igualmente desprezível porque sou impaciente e quero tudo na hora. Bom, não me sinto representado por nenhum animal, racional ou não.
Como gosto de comida! Me alimentei tão mal a minha vida toda e isso me proporcionava o mais insólito dos prazeres. Onde havia alguém se alimentando corretamente, eu me aproximava e sentava ao lado. Queria que a pessoa ficasse incomodada com a minha presença. Eu era um despertador de reações sorumbáticas. Eu queria chocá-la, vê-la siderada pelos meus maus hábitos.
“Isto! Este sou eu! E sou contra tudo aquilo em que você acredita. Estou aqui como a prova cabal de que o mundo não pertence a vocês. A ditadura da saúde não vai prevalecer. Ainda somos maioria e não seremos derrotados. Eu não permitirei! Nunca! Nunca! Veja! Olhe o tamanho dele, quanta gordura! Pedi que a atendente colocasse mais 200 gramas de bacon e 200 gramas de queijo cheddar. Quanto mais industrializado, melhor! Exigi o triplo de gordura trans! Observe! Observe o óleo escorrendo pelas rebarbas do meu lanche. Tem tanto óleo que poderemos fritar batata dentro da minha boca depois que eu comê-lo. Você aceita?”, sugeri, exibindo meus dentes saburrentos e caramelizados pelos churros que comi antes como aperitivo. Chocada, a moça ao meu lado na praça de alimentação levantou-se e foi embora sem dizer palavra.
Atividades físicas? Eu as desprezei desde o primeiro dia que as vi! Em qualquer lugar por onde eu passasse, se alguém me convidasse para me exercitar, eu não pensava duas vezes antes de mandar às favas. Que desaforo! Para os diabos com essa baboseira! Viverei e morrerei como quiser! Para que ficar em pé, caminhar ou correr? Odeio tudo isso com todas as minhas forças! Não acredito nem mesmo que fomos feitos para andar! De quem foi essa ideia? Tomara que o morfético tenha morrido brutalmente!
Pensando em bípedes e quadrúpedes, como eu adorava carne! Comia mais de 15 quilos por semana, até que contraí aterosclerose. Beleza! O que está feito está feito. Só que não há como negar que foi uma das melhores fases da minha vida. Quando eu andava pelo centro da cidade, as pessoas achavam que estavam próximas de um açougue ou matadouro. Não! Não havia nada do tipo por perto. Era a fragrância natural exalada pelo meu corpo. “Que cheiro de carne crua, de onde vem isso?”, “Nossa! Que fedor de vaca morta!”, “Acho que tem um açougue novo por perto”, ouvia.
As bebedeiras constantes também marcaram a minha vida. Claro! Eu dizia que era um socialzinho. Haha! Bobo de quem acreditasse. O que eu bebia três vezes por semana era o que muitos não consumiam em um mês. Eu precisava ser bom no que fazia. Por isso descobri um método eficaz para ampliar a minha tolerância ao álcool. Claro que não vou dizer qual é! Sim! Fui bem longe, tão longe que meu fígado não teve condições de me acompanhar. Hoje vivemos em lugares separados.
Agora me veio à mente as lembranças da minha transformação. Parei de andar tem alguns meses, logo que meu corpo assumiu o controle da minha vida. Se manifestava sobre onde queria ir e quando. Tão caprichoso, genioso! Caso não gostasse da ideia, ele travava como um brinquedo com pilha gasta. Será que é vingativo? Pois é! Como pode ser tão odioso? Na semana passada, permitiu pela última vez que eu movimentasse a perna direita e o braço esquerdo.
Continuo observando o forro, atento a duas lagartixas que se alimentam de um besouro. Apoiado sobre a janela aberta, o gato endiabrado do vizinho, com as orelhas mirando a lua cheia, lambe as próprias patas e as observa. Me recordo do Escaravelho do Diabo, tão valioso e tão inútil, assim como é a vida para tanta gente. Me sinto cansado, alheio ao meu corpo. Meus olhos se fecham e reconheço que não sou mais humano, somente presa de quem fui predador. “Que o teu corpo não seja a primeira cova do teu esqueleto”, escreveu Jean Giraudoux no livro Notes Et Maximes, Le Sport, de 1928.
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