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Inocência e peraltices na Escola São Vicente de Paulo

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Foi numa dessas brincadeiras que um dia caí sobre o maior e mais bonito vaso branco da escola

Eu vestido de soldadinho na quadra da escola nos tempos de traquinagens (Foto: Acervo Familiar)

Eu vestido de soldadinho na quadra da escola nos tempos de traquinagens (Foto: Acervo Familiar)

Ser criança em uma escola católica até o início dos anos 1990 era bem diferente de hoje. Naquele tempo, os professores realmente puniam os alunos, não com violência, mas com castigo. Apesar disso, tínhamos liberdade para fazer muitas coisas antes das aulas e durante o recreio. Porém, se abusasse, era preciso se preparar para as consequências.

Agitado que era no primário, o período mais meninil da minha vida, sempre que chegava à Escola Vicentina São Vicente de Paulo, na Rua Getúlio Vargas, uma das mais movimentadas de Paranavaí, eu jogava a mochila e saía derrapando pelo piso liso que começava onde terminava a escadaria da entrada. Eu não gostava de usar tênis antiderrapante porque isso acabava com a diversão. Melhor ainda era chegar mais cedo na escola e contar com a ajuda de um amigo. Assim um agachava e o outro o impulsionava. Um empurrão de poucos metros era o suficiente para atravessar todo o pátio.

E foi numa dessas brincadeiras que um dia caí sobre o maior e mais bonito vaso branco da escola. Quando a orientadora viu o estrago, veio em minha direção. Sem pensar muito, corri de um lado para o outro enquanto ela tentava me pegar. A deixei no vácuo algumas vezes até vê-la resfolegando, já cansada e com uma das mãos apoiadas no abdômen. A plateia de estudantes de 6 a 10 anos gargalhava conforme eu sorria e ziguezagueava. Na realidade, sentia um frio na barriga e um temor indizível de ser severamente castigado. Mesmo assim enfrentei meu destino e me entreguei à punição.

Temia que me colocassem ajoelhado sobre milhos graúdos ou tampinhas de garrafa. Imaginava as bordas de alumínio penetrando minha pele e querendo invadir minha carne. Sentia gastura só de pensar em quantas horas passaria de joelhos. Por sorte, fiquei apenas preso na sala da orientadora até a minha mãe chegar. Ou seja, a punição seria dada por ela. Em casa, depois de algumas cintadas em que eu fingia muito mais dor que a minha mãe infligia, precisava apenas de poucas horas para ficar novo em folha e pronto para a próxima aventura. Melhor ainda quando ela transmitia a responsabilidade ao meu pai. Daí era só deitar e fingir enquanto a cama apanhava, uma coitada que não tinha nada a ver com as minhas traquinagens. O segredo da boa ludibriada estava na sincronia.

Na sala de aula eu também tomava parte na bagunça. A verdade é que muitas vezes fui o autor da algazarra, uma desordem ingênua que envolvia piadas, armadilhas, brincadeiras e jogos com papel e caneta. Por essas e outras, a irmã Angelina, minha professora, me colocava atrás da porta com o rosto mirando a parede. Quando ela não via, eu virava e fazia alguma micagem. Ia para o castigo sorridente, como se ganhasse um prêmio, sem entender o que aquilo representava no ideário adulto. Ocasionalmente era deixado de costas para o quadro e sem poder falar nada quando a professora apresentava um conteúdo novo. De vez em quando era obrigado a colocar a minha carteira escolar ao lado da mesa da irmã Angelina.

Era um alívio quando ouvia o sinal do recreio. Saía ligeiro com a minha lancheira do Rambo, já ansiando por pão com Amendocrem que minha mãe me permitia comer em dias bem específicos. Às vezes comprava salgado e sodinha ou comia o tradicional pão preparado pelas freiras. Depois do lanche, eu ficava em frente ao mini palco da quadra esportiva. Lá, no horário de sempre, alguém arremessava a sobremesa: dezenas de balas de cores, tipos e marcas diferentes. Cada guloseima que voava era acompanhada de gritos, saltos, empurrões e uma onda de mãos pequenas.

Antes do recreio chegar ao fim, eu encostava as costas no muro da quadra e os pés no tronco de uma árvore a meio metro de distância. Então subia o máximo que podia, o que era proibido. Mas a alegria de simular um gigante naquela altura, enxergar tantas coisas à minha volta, inclusive quem passava em frente a escola, fazia o risco valer a pena. No entanto a alegria da entrada nem sempre era partilhada na saída. Quando chovia, me arrependia de usar calçado de sola lisa para deslizar pelo pátio. A pé, eu percorria com pernas curtas um trajeto que incluía passar em frente à Panificadora Pão de Açúcar, Bar Ginasial, Mercado Minibox e Sorveteria Cremone, todos na Avenida Distrito Federal.

Sentia um misto de alegria e arrependimento porque me via obrigado a brincar de escorregar sem querer. Tentava ser cuidadoso enquanto me distraía observando a movimentação de pessoas nas ruas e o som da água em atrito com o guarda-chuva desproporcional à minha estatura. Eu não gostava de me proteger do salseiro. Achava que isso era coisa de adulto e que a chuva me daria algum tipo de poder quando tocasse meu corpo. Bom, assim eu acreditava sempre que desviava rapidamente o guarda-chuva e inclinava a cabeça para trás.

Um dia, depois de abrir a boca e experimentar o gosto da chuva, me questionei como poderia ser tão parecido com a água benta. Logo me recordei da vez em que visitei a Paróquia São Sebastião com a turma da catequese e bebi água benta da caldeirinha. “Por que você fez isso? Você vai pro inferno!”, disse meu amigo Toninho. Sorri acanhadamente e falei que não iria. Passei os cinco dias seguintes com medo do chão do meu quarto se abrir e me arrastar para as profundezas do inferno enquanto eu dormia. Cheguei até a me amarrar na cama com um lençol em uma madrugada.

Quando a lembrança se desvaneceu, lembrei da bronca ou surra que levaria da minha mãe se chegasse em casa ensopado. Eu poderia dizer que um carro jogou água em cima de mim, mas ela não acreditaria. Perita no assunto, reconheceria se a água veio diretamente do céu. Achei melhor não arriscar, mesmo que meus pensamentos se voltassem para um filme que assisti com meu pai na época. O sujeito parecia tão feliz cantando e dançando na chuva que eu não entendia porque aquele era o único adulto do mundo com espírito de criança. Concluí que talvez fosse tipo um Peter Pan.

Assim que me aproximei do cruzamento da Avenida Distrito Federal com a Rua Pernambuco, decidi me arriscar. Fechei o guarda-chuva e deixei a água cair sobre mim numa torrente expurgadora. Não estava gelada nem fria. Também percebi o céu clareando e algumas poças d’água invadidas por fragmentos de arco-íris que surgiam por todo o caminho. Fiquei feliz e encharcado nos primeiros minutos. Só senti a mochila pesada e os pés enrugados quando atravessei uma rua próxima da Sanepar.

Em frente de casa, respirei fundo e abri o portão. Fui recepcionado por Pretinha e Mussum – conhecido como Rabo de Biscoito, dois cãezinhos mestiços. Quando olhei pela janela, minha mãe lançou um olhar de reprovação. Então refleti: “Será que é dia de cinta?” Sorri com os lábios molhados e ouvi silenciosamente sua reprimenda. Quando se calou, repliquei, tentando fugir das cintadas: “Se o paraíso fica no céu por que a gente não pode ser divertir com aquilo que cai da beirada? Ué, chuva tem até gosto de água benta!”

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