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O mundo de Marinho
A história do jovem que há nove anos passa o dia vagando pelo centro de Paranavaí
Era uma quinta-feira, por volta das 8h30, quando eu e o fotógrafo Amauri Martineli saímos para procurar o famoso Marinho, um jovem sorridente que vive vagando pelo centro de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Em poucos minutos, o vimos próximo da Banca Tanaka, na movimentada Rua Getúlio Vargas. Acenei, o rapaz se aproximou e perguntamos se ele aceitaria nos contar a sua história e o motivo de ter se tornado andarilho.
Empolgado com a ideia de uma reportagem sobre a sua vida, sorriu e disse que nos aguardaria. Assim que Martineli deu a volta para estacionar o carro, Marinho desapareceu. Depois de 15 minutos de procura, o vi a 50 metros do local onde conversamos antes. Já estava com um semblante diferente. O sorriso tinha sumido. Me aproximei, expliquei a ideia da entrevista, mas se mostrou desinteressado. “Ah, vamos deixar pra semana que vem. Hoje eu não tô bem”, justificou. Então perguntei o que ele tinha e expliquei que poderíamos ajudá-lo. O rapaz insistiu: “É a minha cabeça, não tá boa. Depois passa. Isso é normal comigo”, garantiu, de forma evasiva.
Me afastei um pouco, chamei o Amauri e juntos conseguimos convencer o Marinho a bater um papo com a gente. Curiosamente a cefaleia se desvaneceu em pouco tempo. Logo o rapaz ficou à vontade e demonstrou muita satisfação pelo nosso interesse em conhecer a sua história narrada em cerca de uma hora. Com um estilo próprio de ser, Marinho passa a maior parte do dia no centro de Paranavaí, onde gosta de ficar perto das entradas das lojas vendo a movimentação de pessoas e ouvindo música. Admite que tem preferência pelo pagode, gênero da época das festinhas da adolescência.
Muito conhecido pelos comerciantes e comerciários das ruas Getúlio Vargas e Manoel Ribas, o rapaz é elogiado pela quietude. Discreto, não gosta de incomodar ninguém. “Hoje só fumo cigarro e bebo cerveja. Bebo todo dia. Compro cigarro solto numa banca. A mulher gosta de mandar Derby. Pago 50 centavos em cada um. Ah, antes eu nem gostava daquele Free, achava fraco, mas agora é o meu preferido. Só que custa caro”, reclama.
A latinha de cerveja é sagrada para Marinho que tem 30 anos e me chama de tio o tempo todo, embora tenhamos a mesma idade. Comprada na loja de conveniência de um posto de combustíveis, ele informa que costumava pagar R$ 1 na Schin, mas recentemente subiram o preço para R$ 1,50. “Tinha outra que era R$ 1,75 e caiu pra R$ 1,25, então só bebo dessa. De vez em quando tomo umas pingas no [antigo] Terminal Rodoviário e fico doido, mas é mais moderado”, pontua enquanto sorri e coça a cabeça. Às 18h, quando as portas das lojas se fecham, o rapaz caminha até o antigo Jardim Ouro Branco, onde passa a noite sozinho e deitado sobre uma calçada nas imediações do Centro Esportivo do Sesc.
Entre latidos de cães da vizinhança, dorme ao relento até amanhecer, perto da ex-residência dos avós. “Lá é tranquilo. Me deixam ‘de boa’. Quando alguém estranha, faço questão de cumprimentar pra mostrar que sou do bem”, comenta Marinho que dorme na rua há nove anos. Antes de virar sem-teto, vivia com os avós. Ficou sem casa quando os dois faleceram em decorrência de ataques cardíacos. As mortes tiveram diferença de poucas horas. O rapaz recebeu a notícia quando estava preso. Foi flagrado fumando e portando maconha. “Fiquei seis dias na cadeia. Não pude ir nem ao velório. Só vieram me avisar que os dois morreram”, lamenta. De Marinho, as drogas não levaram apenas a oportunidade de se despedir dos avós, mas também a própria identidade e capacidade de sonhar.
A falsa ilusão de ser admirado pelos amigos fez com que experimentasse maconha com 15 anos. “Queria me alugar um pouco. Acabou que saí tremendo com medo de morrer. Só ficou ‘massa’ quando parei de ter as ‘piras’. Eu ‘desligava’ mesmo, nem pensava em nada”, revela. A primeira tragada aconteceu no Parque Ouro Branco, no Ribeirão Xaxim, onde se reuniu com 13 garotos, principalmente vizinhos. No local, encontraram alguns jovens fumando maconha em um bong caseiro, feito a partir de garrafa pet. “Ofereceram pra gente e o bagulho fez efeito rápido. Tinha um trilho no córrego e até hoje eu não sei como cheguei do outro lado. Devo ter caído até na água. Sei lá”, declara às gargalhadas.
Quando a larica, a fome em decorrência do uso de maconha, surgia, a garotada descia até o Laticínio Iva, onde um guarda fornecia a eles algumas caixinhas de leite. Marinho tomava até três de uma vez. Com o tempo, quis se afastar da maconha, mas não resistiu. O ápice do vício foi aos 16 anos, incentivado por “amigos” que moravam perto da casa dos seus avós. “Eles vendiam pra mim. Então quando minha mãe me dava um, dois reais, eu ia lá comprar. Tinha uns ‘caras quentes’ que vendiam 50 gramas, peso de balança, por 30 reais, o suficiente para quatro dias. Era da boa, pura mesmo. Bem diferente do baseado de um real que eu fumava pelo menos quatro por dia”, confidencia.
À época, Marinho não conseguia dormir sem antes tragar o “cigarro branco”. Ficava muito agitado e ansioso. Entre os vizinhos, pelo menos nove fumavam juntos. Quando tinha dinheiro para comprar só um baseado, o rapaz se irritava fácil. “Ficava bravo porque sempre aparecia gente pedindo pra dividir. Não dava nem tempo de ficar doido”, justifica. O fornecedor era sempre o mesmo, só que quando surgia algum imprevisto o jeito era procurar outra “boca de fumo”.
Por causa do vício, Marinho ficou 26 dias internado no Hospital Psiquiátrico Nosso Lar, em Loanda. O rapaz se queixa que teve de conviver com loucos. “Eu era o único normal lá. Aplicaram um bagulho em mim que minha língua até enrolou e não consegui falar”, lembra. O tratamento não deu certo e o rapaz retornou a Paranavaí. Em casa, o avô tentou curá-lo do vício com o preparo caseiro de “garrafadas de erva-de-são-joão”. Marinho tomava pelo menos dois litros por dia para tentar controlar a abstinência de canabinoide.
Quando estava se afastando definitivamente da maconha, foi morar na rua e conheceu o crack. A primeira pedra foi experimentada por curiosidade, nas imediações do antigo Terminal Rodoviário Urbano. Pedia dinheiro no centro de Paranavaí e corria até lá para comprar. “Entrei na pedra com 23 anos. Achei o crack muito mais gostoso do que a maconha. Teve uma vez que conheci um cara ‘massa’ que vendia pedra de cinco e de dez reais”, confessa Marinho que fumava até 12 pedras de R$ 5, ou seja, o equivalente a R$ 60 por dia.
Normalmente começava a consumir crack pela manhã e parava por volta das 22h. Só prolongava o uso nos finais de semana, quando estendia o consumo até as 4h. Sexta e sábado o vício era financiado com as doações generosas dos frequentadores de bares e lanchonetes da Avenida Paraná que raramente falavam não para Marinho. “‘Chapava’ pedindo dinheiro. Daí gastava mais de R$ 60. Fumava e ficava ‘ruinzão’. Tinha uma mulher que me deixava dormir na casa dela. Eu aparecia lá de madrugada e ficava olhando pro teto me perguntando porque não amanhecia logo pra eu sair pedindo dinheiro pra comprar mais pedra”, enfatiza.
Marinho não se esquece do dia em que estava perto de uma “biqueira”, como ele chama as “bocas de fumo”, no Jardim Ipê, e foi surpreendido pela aproximação de uma viatura da Polícia Militar. Assustado, tentou arremessar o cachimbo em um terreno baldio, mas o objeto bateu no portão e voltou. A segunda tentativa deu certo. Só que era tarde demais e foi obrigado a se explicar para a polícia.
Apesar da vida de riscos, Marinho jura que jamais foi perseguido ou ameaçado por traficantes. “Nunca enganei ninguém. Só ficava em débito com os ‘mais chegados’. Mas era coisa de dois a quatro reais. Às vezes se irritavam comigo e me davam o produto até de graça. Cheguei a ganhar pedra de R$ 5”, diz rindo. O seu ponto preferido era o entorno do velho Terminal Rodoviário Urbano, de onde se afastou há quatro anos, quando parou de usar crack. “Até hoje tem gente vendendo lá. Não me interesso porque não vejo mais graça”, explica.
Antes de se livrar do vício, por iniciativa do irmão, ficou internado em uma clínica de reabilitação por quatro meses em Curitiba. “Eu não queria nada com nada e saí de lá”, reconhece. Outra tentativa sem sucesso foi em uma chácara para dependentes químicos no Sumaré. Com a abstinência, o rapaz perdia o controle de si mesmo e agia como outra pessoa. “Fugia de lá alucinado e bravo. Andava uns 19 quilômetros até chegar no centro de Paranavaí. Hoje tô livre disso. Não quero saber dessas drogas. Prefiro continuar vivo”, pondera Marinho que ao final da entrevista conta que se chama Mariosvaldo de Freitas Mazanares Souza Moura.
“Minha infância, vou falar pra você, tio”
“Minha infância, vou falar pra você, tio. No meu aniversário de seis anos a minha mãe fez um bolo delicioso e colocou uns bonequinhos ‘desenhadinhos’ do Corinthians, porque eu era corinthiano, e do Palmeiras, né? Foi muito legal! Melhor dia! Chamei um amigo que morava no [Jardim] São Jorge e outro que vivia um pouco pra cima da minha casa. O resto era família”, conta o jovem andarilho Marinho. A primeira experiência do rapaz em um escola foi na mesma época, quando ingressou no Colégio Estadual Newton Guimarães. “Até a quarta série ainda era ‘da hora’. Depois que chegou a quinta, passei a odiar por causa das matérias. Tudo muito difícil e eu não entendia nada”, reclama.
A maior lembrança da quinta série remete ao dia em que o pai chamou ele e um dos irmãos para passear de Ford Belina. “Eu tinha uns 12, 13 anos. Corremos Paranavaí. Visitamos minha irmã e voltamos pra casa só lá pelas dez da noite. Parecia até que ele sabia o que iria acontecer depois. Quando deu duas horas da manhã, meu pai morreu de ataque cardíaco”, lamenta Marinho com olhos marejados.
Com a morte do pai, Marinho perdeu mais ainda o interesse em estudar. Quando chegou à sétima série do ensino fundamental teve de fazer supletivo à noite para tentar recuperar o tempo perdido. “Nem passava de ano mais. Fui pro [Colégio Estadual] Leonel Franca e só chegava atrasado, lá pelas 8h20, 8h40, até na hora do recreio. Daí falaram que seria melhor eu estudar perto de casa. Então me deram a transferência e mudei pro [Colégio Estadual] Marins [Alves de Camargo]”, relata.
Marinho reprovou novamente e só conseguiu a aprovação no ano seguinte. “Cada negócio mais difícil, bicho!”, reclama. Quando não estava na escola, corria para uma pracinha perto de casa, onde se reunia com os amigos para jogar bola num ‘areião’. Sonhavam em fazer traves de madeira. Sem experiência com marcenaria, apelavam para chinelos e lajotas.
Marinho faz questão de destacar que no mesmo período arrumou muitas confusões por causa de pipa. O agravante era o uso indiscriminado de cerol. “Na adolescência, quando chegava dezembro eu acordava cedo pra ir ver se tinha passado ou reprovado na escola. Olhava, ficava triste e falava: “É doido! Nunca que fico sem tirar nota vermelha!”
“De lembrança, eu tô devagar, tio”
“De lembrança, eu tô devagar, tio. Lembro mais das mortes. Foi triste porque acordei e vi meu pai caído e morto”, narra. Mais tarde, perdeu o contato com a mãe, com quem morou pouco tempo após a perda do pai. Também residiu no Hotel Floresta, perto da rodoviária velha, com uma das irmãs. Apesar de hoje não ter muito contato com a família, Marinho tem boas lembranças. Se recorda de quando tinha seis anos e o irmão o levou para participar da Escola de Futsal São Lucas. “Foi doido, hein? Fiz gol no primeiro dia. Eu era ala esquerda, canhoto. Fiquei até os 13 anos, quando quis jogar campo”, explica e acrescenta que gostava de perturbar o técnico Gildo Tomé para deixá-lo jogar como titular quando viajavam para disputar campeonatos.
Segundo Marinho, seus dribles eram dos mais “bobos”. Gostava de “dar chapéu”. “Só que ainda preferia o campo pra bater de ‘bicicleta’”, comenta enquanto gesticula. Na adolescência, ingressou no Paranavaí Atlético Clube (PAC) e jogou várias vezes no Estádio Municipal Waldemiro Wagner. Começou a se destacar na posição de meia-esquerda. Logo o bom desempenho garantiu escalação para os Jogos da Juventude. Em uma das edições, ajudou o time a chegar à semifinal. Com 19 anos, surgiu uma grande oportunidade. “Fui convidado a participar de um ‘peneirão’ para ir pro Santos, tio. Por azar, acabei eliminado”, lamenta.
Marinho lembra com satisfação da época em que se apresentou no palco do Teatro Municipal Dr. Altino Afonso Costa. “Eu era ‘arteiro’ no colégio, então eles me chamaram pra fazer teatro. Topei e fui lá assistir alguns ensaios. Foram loucas as peças. Gostei mesmo!”, garante Marinho que participava dos ensaios no Colégio Marins. Os encontros geralmente ocorriam à noite ou quando os alunos tinham aulas vagas. “Fizemos uma peça dirigida pela Lígia Oliveira que chamava ‘Que país é esse?’ Foi ‘massa!’”, enfatiza. De repente, Marinho não quis mais saber de teatro e abandonou as aulas.
“Agora não penso em trabalhar. Quem sabe, depois”
“Agora não penso em trabalhar. Quem sabe, depois. Já trabalhei como servente de pedreiro quando morava com meus avós. Só que parei. Tentei ser ajudante de pintor, mas o homem falou que eu não ia pra frente não. Cheguei a ir pra roça também. Daí odiei minha vida!”, diz o andarilho Mariosvaldo de Freitas Mazanares Souza Moura, o Marinho.
Quando atuava como servente, o rapaz gostava de transportar areia e lajota. Segundo ele, bater massa também era “da hora”. O que mais o animava era o fato de que podia pegar dinheiro todo dia. Convencido pelo irmão, Marinho tentou morar em Curitiba algumas vezes. A primeira tentativa foi aos 16 anos. “Quando eu chegava lá, ele sempre falava que eu precisava arrumar emprego. Eu respondia: ‘Mas pra que emprego, rapaz? Não quero trabalhar!’”, revela.
Um dia o irmão o convidou para ir a um restaurante. Chegando ao local, convenceu a proprietária a contratar Marinho como ajudante. Após 15 dias de trabalho, o rapaz pegou um vale e abandonou o serviço. Voltou para a casa do irmão, preparou a mala e foi direto para a rodoviária sem avisar ninguém. “Antes do ônibus partir, meu irmão entrou pra falar comigo. Expliquei que não iria ficar lá perdendo tempo. Queria voltar pra Paranavaí. Então ele só se despediu”, relata.
Quando encontram Marinho casualmente, os amigos dos tempos de infância e adolescência ainda tentam convencê-lo a sair da rua e procurar um emprego para mudar de vida. “Ah, tio! Já trabalhei, mas não entendo de nada. O negócio era estudar, mas perdi minha chance. Então sobrou só isso aqui pra mim”, declara. Nas ruas, Marinho está sempre correndo riscos, obrigado a lidar com os percalços de um estilo de vida subumano.
Já foi perseguido várias vezes, inclusive espancado. Quem mora nas ruas de Paranavaí precisa ter muito cuidado. Não há garantias de um novo amanhecer. “Há pouco tempo um cara que nem conheço gritou que bati na mãe dele. Eu disse que ele tava doido e corri pra dentro de um mercado. Chegando lá, falei: ‘Liga pra polícia pra nós aí, rapaz! Não sei qual é a daquele cara ali não, doido!”
O Velho do Saco que não assustava crianças
A história de um andarilho que se sentia um fazendeiro mesmo morando dentro de um buraco
Ao longo de décadas, muitas crianças de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, principalmente as que cresceram no Jardim Ouro Branco e em bairros próximos, ficavam intrigadas com a folclórica e enigmática figura de um andarilho. “Quando as crianças aprontavam alguma coisa, os pais diziam: ‘Olha, ali vem o Velho do Saco. Fica quieto senão vou mandar ele te levar”, conta o agricultor Arthur Justino da Silva que mora no Ouro Branco desde o início dos anos 1960.
Mas a verdade é que a fama do homem jamais refletiu a realidade. O “Velho do Saco”, como ficou mais conhecido a partir da década de 1980, se chamava Nelson. Era um senhor de 1,67m de altura e barba branca volumosa que se confundia com os cabelos igualmente alvos. Tinha uma postura inconfundível e um andar pausado e remansoso. Quando pegava algo do chão, surpreendia. Em vez de agachar, flexionava o corpo para a frente. Sem dobrar os joelhos, arqueava as costas e encostava as palmas das mãos no chão. “Chegava a dar inveja”, comenta o comerciante José Ferreira de Lima. De sobrenome desconhecido, assim como o número da casa onde viveu tantos anos na Rua Campo Largo, no Jardim Ouro Branco, o Velho do Saco era um sonhador vitimado por uma misteriosa desilusão.
“A casinha dele era normal, com água e energia elétrica. Tinha tudo. Lembro que antigamente ele vendia perfumes e usava uma roupa bem branquinha. Seguia naquela vidinha, lutando”, lembra José Ferreira que conheceu o “Seu Nelson” há mais de 30 anos, quando o vendedor tinha entre 45 e 50 anos. Também atuava como boticário, fabricando os perfumes que comercializava. De repente, desistiu de tudo e se tornou um andarilho. Começou a recolher papelão e outros materiais que jogava dentro de casa. “Só vendia latinhas e cobre. O restante, inclusive papelão e entulho, ele ia amontoando”, conta o pedreiro e vizinho Nélio Ramos Sabatini.
Aos poucos, a residência do Seu Nelson se tornou a morada do Velho do Saco. Sem água e energia elétrica, restando apenas uma casinha ofuscada por uma mata que cobria a fachada, o homem se transformou em outra pessoa. Anos mais tarde, quando o chão da casa abriu, formando uma cratera, Seu Nelson começou a viver dentro do buraco, cercado por toneladas de materiais, entre papelão, ferro e entulhos. No local, dividia o espaço com ratos, abelhas, escorpiões e outros animais. “Era tanta tranqueira que ele nem tinha mais onde guardar”, testemunha o aposentado Alcides Ramos Sabatini.
De vez em quando o Velho do Saco discutia com outro vizinho, sogro de José Ferreira. O motivo era quase sempre o mesmo. O andarilho queria que todos fossem embora do bairro, a sua “fazenda”. “Falava que tudo ali era dele, que a gente estava se apossando de seus bens”, relata o comerciante, acrescentando que apesar de tudo Seu Nelson sempre “fazia as pazes” com todos.
Porém, em época de quaresma, os mais supersticiosos diziam que o Velho do Saco virava lobisomem, um mito que surgiu porque o andarilho chegava em casa muito tarde e passava horas no quintal antes de dormir. “Com o barulho, a cachorrada latia muito, então o povo espalhou essa besteira”, explica Alcides Sabatini.
Com um grande saco nas costas e outro sobre a cabeça, Seu Nelson, que tinha o hábito de comer carne crua, principalmente linguiça, circulava pelo Jardim Ouro Branco e evitava ir muito longe. Tinha uma mochilinha em que carregava pedras que recolhia das ruas. Chamava a si mesmo de garimpeiro, um desbravador que não se interessava mais em ir além da rotatória próxima ao Hospital Unimed, na Rua Luiz Spigolon. Quem sabe, porque Seu Nelson talvez acreditasse que sua “fazenda” terminasse naquele local.
Embora aceitasse comida apenas de José Ferreira, da mulher e cunhada do comerciante, o homem era visto com frequência nas imediações do Hipermercado Cidade Canção e da Praça dos Pioneiros, onde coletava e comia restos de lanches e salgados das lixeiras. Ocasionalmente, parava para descansar em bares e lanchonetes de conhecidos. “Ele passava um bom tempo aqui, mesmo sujo e com um odor bem forte. Sei que isso poderia afastar os clientes da minha lanchonete, mas nunca achei certo mandar ele ir embora”, pondera Ferreira que sempre guardava para o andarilho as latinhas descartadas pelos clientes.
O Velho do Saco também era um antigo freguês do comerciante Arthur Justino. “Ele começou a frequentar o meu bar em 1979. Estava sempre com dinheiro no bolso e pagava tudo certinho. Gostava de conversar. Era um homem com boa cultura”, avalia Justino. O problema era que às vezes exagerava na cachaça.
Um dia, Seu Nelson resistiu quando tentaram levá-lo para casa, achando que iriam matá-lo. O único que conseguiu se aproximar para carregá-lo foi José Ferreira. “Deu tudo certo. Chegando em casa, deitou e dormiu. Apesar disso, ele nunca atrapalhou ninguém. Muita gente gostava dele. Mesmo sem aposentadoria, jamais foi visto mendigando”, assegura Ferreira.
Na casa onde o andarilho vivia, um enorme pé de manga a cobria parcialmente. A cena que mais chamava a atenção dos vizinhos era a de alguns ratos subindo, comendo as frutas e descendo. Tudo indica que Seu Nelson tinha um mundo particular, distinto e alheio à realidade da maioria. “Uma vez, o homem ficou muito bravo e começou a me chamar de corno porque eu estava no meu quintal e sem querer o vi tomando banho pelado atrás de um pé de limão. Ele se lavava com duas garrafas pet cheias de água que pegava em um córrego. No lugar da bucha, esfregava o corpo com um pano velho e preto”, revela Alcides Sabatini às gargalhadas. O aposentado foi ignorado quando sugeriu ao Seu Nelson que seria mais cômodo se banhar no próprio córrego.
Nélio Sabatini perdeu as contas de quantas vezes o andarilho o chamou para lhe oferecer pedaços de restos de churrasco que encontrava na rua. “Ele falava assim: ‘Aqui ó, vim trazer pra você um pedaço dessa carne de lobisomem’. Eu aceitava. Nunca fiz desfeita. Só descartava quando ele ia embora’”, confidencia o vizinho. Quando preparava a comida em casa, Seu Nelson ajeitava uma pequena fogueira no quintal e cozinhava dentro de uma grande lata velha de ervilhas. Só entrava na casa para dormir. A maior parte do tempo era visto nas ruas ou no quintal. “Acho que quase não sobrou espaço pra ele lá dentro. Tinha muita coisa guardada”, assinala Nélio Sabatini.
A rotina do Velho do Saco só foi interrompida em 28 de dezembro de 2011. Na manhã daquele dia, Seu Nelson chegou à lanchonete de José Ferreira para conversar um pouco e beber pinga. Às 11h, partiu cambaleando. Mais tarde, preocupado, o comerciante pediu que um rapaz checasse o estado do andarilho. Era 14h e o Velho do Saco foi encontrado deitado, como se estivesse dormindo.
Às 15h, Nélio e Alcides foram verificar porque o homem continuava no quintal. Havia marcas de dedos na terra, de alguém que se esforçou para se levantar, mas não conseguiu e acabou desmaiando. “Fez um calor insuportável naquele dia e o sol bateu diretamente nele. Fizemos de tudo para acordá-lo e não conseguimos. Acho que não aguentou e teve um ataque cardíaco”, enfatiza Nélio Sabatini.
Às 18h, José Ferreira fechou a lanchonete quando a esposa o avisou que o Seu Nelson não acordava de jeito nenhum. Quando chegou lá, era tarde demais. Ninguém imaginava que aquele seria o último dia em que veriam o Velho do Saco com vida. Quem o conhecia ainda sente saudade da sua “mania de fazendeiro”, de seu olhar absorto e seus passos vagarosos e arrastados.
Como não apareceu nenhum familiar para sepultá-lo, o enterro do andarilho foi feito por vizinhos e conhecidos, pessoas que o estimavam. Também organizaram a limpeza da sede da sua fazenda imaginária, a casinha onde viveu por décadas. Do local, retiraram toneladas de materiais e entulhos armazenados desde os anos 1980. “Enchemos sete caminhões só de sujeira e coisas que não se aproveitava”, garante Nélio Sabatini. De luto, o comerciante José Ferreira decidiu nunca mais vender pinga, uma promessa mantida até hoje.
Saiba Mais
Na certidão de óbito consta que o nome do Velho do Saco era supostamente Nelson Francelino de Oliveira. Sem documento, descobriram no dia de sua morte que ele transportava um papel com dados pessoais registrados à caneta. O homem foi sepultado na Gaveta 35 do Conjunto F da Quadra 10 do Cemitério Municipal de Paranavaí.
Vizinhos relatam que o homem virou andarilho porque foi abandonado pela esposa. O Velho do Saco vivia sozinho, mas conhecidos acreditam que ele ainda tem familiares em Paranavaí.
Após o falecimento, a casa do Velho do Saco foi demolida e se tornou moradia de uma pessoa sem vínculo familiar com Seu Nelson.
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Lurdinha: “Meu sonho era trabalhar em uma biblioteca”
Em Paranavaí, Maria de Lurdes dedicou 26 anos à Biblioteca Júlia Wanderley
Em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, até o dia 29 de setembro, uma segunda-feira, a rotina da auxiliar de serviços gerais Maria de Lurdes Sousa Silva era acordar às 5h30, chegar à Biblioteca Municipal Júlia Wanderley às 6h40 e preparar o café e o chá às 8h. Tradicionalmente, antes ouvia as notícias da Rádio Cultura e da Rádio Caiuá. “Meu expediente começava às 8h, mas eu fazia questão de chegar bem mais cedo”, comenta Lurdinha, como sempre foi conhecida no trabalho.
Aos 61 anos, a auxiliar de serviços gerais nunca deixou nada passar despercebido. Mesmo no último ano de trabalho, Lurdinha ainda tinha fôlego para limpar a biblioteca, a Fundação Cultural de Paranavaí e o Teatro Municipal Dr. Altino Afonso Costa. “Uma vez fiquei um mês sozinha. Fazia o café da biblioteca e da Fundação Cultural e ainda limpava tudo. Na hora do almoço, para adiantar o serviço, eu cuidava da limpeza dos banheiros”, relata.
A tarde de Lurdinha era dedicada ao Teatro Municipal Dr. Altino Afonso Costa. “Não saía de lá se não estivesse limpo como a minha casa. “Fazia com muito amor e carinho”, garante sorrindo e diz que não se esquece das vezes em que levou água fervendo da biblioteca para a Fundação Cultural. A intenção era ganhar tempo, deixar o cafezinho pronto o mais rápido possível.
Pontual em tudo que faz, Maria de Lurdes almoçava às 11h30, acompanhada da edição do dia do Diário do Noroeste. “Não abria mão disso. Eu ficava doente se não lesse o Diário”, brinca Lurdinha que se tornou muito querida no serviço, onde conheceu bastante gente e fez grandes amizades.
Cita como exemplo do bom relacionamento o trabalho colaborativo na limpeza dos camarins do Altino Costa. “Uma colega sempre ajudava a outra, até porque ficamos bem amigas”, comenta e se emociona ao falar que considera os funcionários da Biblioteca Municipal Júlia Wanderley e da Fundação Cultural como parte de sua família.
Só na biblioteca, Lurdinha trabalhou 26 anos. Tudo começou em 1984, quando a Júlia Wanderley funcionava onde é hoje a Câmara Municipal de Paranavaí. “Pedi para a ‘dona Miriam’, mulher do ex-prefeito Pinto Dias, me transferir pra lá porque meu sonho era trabalhar em uma biblioteca. Eu não sabia o que era”, confidencia.
O pedido foi atendido e Lurdinha dedicou 18 anos à Júlia Wanderley. “Mais tarde, me transferiram para o Colégio Municipal Santos Dumont. Depois de quatro anos, voltei para a biblioteca, onde fiquei até me aposentar na semana passada”, explica.
Em tom nostálgico, se recorda com alegria dos tempos em que a Biblioteca Municipal funcionava na Rua Souza Naves, próxima ao Banco Real. “A gente recebia de 150 a 200 alunos por dia. Lá, eu tinha medo de entrar no cofre porque naquele lugar funcionou um banco e um dia um gerente se matou lá dentro por enforcamento”, relata.
Ao longo de dez anos, Lurdinha trabalhou aos sábados até as 12h. “Também trabalhei muitos domingos. Isso foi quando não havia internet e os estudantes iam para a biblioteca fazer pesquisas”, justifica e acrescenta que durante a semana a Júlia Wanderley, que chegou a ter dez funcionários, ficava aberta até as 22h para atender a demanda dos estudantes.
O ambiente fez Maria de Lurdes se apaixonar pela leitura. Além de ler nos intervalos, fazia questão de levar revistas e livros para casa. “Ficava curiosa em ver tanta diversidade nas estantes. Comecei a gostar de ler ainda na época das revistas Cruzeiro e Manchete”, destaca e conta que recentemente se encantou lendo o livro “O Menino do Dedo Verde”, do francês Maurice Druon.
Em pouco tempo, aprendeu muito sobre o acervo da biblioteca. Na ausência de alguma funcionária, os frequentadores da Júlia Wanderley tiravam dúvidas com a Lurdinha. “Sempre gostei tanto daquele lugar que eu até falava com os livros. Era uma terapia pra mim ficar em contato com eles”, assegura.
Por muitos anos, Maria de Lurdes Sousa Silva passou mais tempo na Biblioteca Municipal do que em qualquer outro lugar. “Era minha segunda casa. Agora estou numa tristeza muito grande por ter me aposentado. Ainda não me acostumei”, revela.