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Por que animais criados para consumo chegam a praticar canibalismo
Você já pensou em quais circunstâncias um animal domesticado e criado pelo ser humano com finalidade de consumo pratica canibalismo?
Quando ele passa por um processo visceral de despersonalização, de completa perda de identidade e individualidade. Ele se torna algo desconhecido para os outros e para ele mesmo. E como isso acontece? Como consequência de níveis constantes e excruciantes de privação, ansiedade e estresse, entre outros fatores que podem envolver ou não agressão física.
Animais não humanos, diferentemente de nós, não verbalizam o que sentem e por isso podem sofrer mais perante a incomunicabilidade no contato com seres humanos. Afinal, o seu desespero e ânsia pela vida podem ser facilmente desconsiderados levando em conta as diferenças no código de comunicação. E, evidentemente, podem ser interpretados ou distorcidos à revelia.
Essa incomunicabilidade com o ser humano, logo animal de outra espécie, amplifica o desespero e o sofrimento no esteio de uma vida não natural que tem como consequência ordinária a figuração da violência em suas mais diferentes formas. Afinal, a violência contra um animal está muito além de espancá-lo ou de matá-lo.
A violência pode ser manifestada a partir do simples e iterado ato de privá-lo de sua natureza, do trivial e pernicioso ato de não permitir que ele seja ele mesmo; de não permitir que ele crie vínculos sociais à sua maneira, nem mesmo desenvolva uma rotina condizente com seus anseios inerentes ou atávicos.
A natureza de um animal criado para consumo, logo objetificado, é comumente suplantada para dar lugar a uma natureza de viés mecanicista, em que ao animal não é permitido nenhum direito de escolha no decorrer de sua vida, nem mesmo o direito de escolher com quem se relacionar, como se alimentar. Enfim, nenhum direito em relação a nada.
Assim, seus hábitos são precocemente suprimidos e sua natureza inerente gradualmente obliterada. Dependendo do nível de obliteração, ele pode praticar ou não o canibalismo, que neste caso talvez seja um dos símbolos maiores do aviltamento e da degradação não humana em uma sociedade imersa na desconsideração e na negação de direitos não humanos.
Tatyana Pavlova, a ativista que definiu os rumos dos direitos animais na Rússia
“Ela revolucionou nossa consciência, motivando pessoas a repensarem suas atitudes sobre os seres vivos”

Tatyana Pavlova, um dos nomes mais importantes do vegetarianismo russo (Foto: Centro de Direitos Animais Vita)
A russa Tatyana Nikolaevna Pavlova, que comandou a Sociedade Vegetariana Russa e o Centro Pela Ética no Tratamento de Animais (Ceta), foi uma das pessoas que revolucionou o vegetarianismo na Rússia e mais chamou a atenção para os direitos animais naquele país. Embora sua luta tenha chegado ao fim com o seu falecimento em 21 de agosto de 2007, o seu legado segue contagiando pessoas em todo o mundo.
Tatyana Pavlova se tornou vegetariana em 1969, influenciada por amigas ligadas à defesa do bem-estar animal. À época, ficou horrorizada com os relatos sobre maus-tratos contra animais. Então se ofereceu como voluntária à Sociedade de Proteção Animal, a primeira organização de direitos animais da Rússia, que antes era chamada de Departamento de Proteção Animal da Sociedade Russa para Proteção à Natureza.
“Participei da organização até ser fechada alguns anos atrás, e novas sociedades se formarem em Moscou e em outras cidades russas. Eu própria fundei o Ceta [Centro pela Ética no Tratamento de Animais] porque seu propósito era diferente da sociedade em que trabalhei por 20 anos”, contou no seu artigo “Uma Vegetariana na Rússia”, publicado em dezembro de 1995.
Tatyana relatou que sua transição para o vegetarianismo não foi tão fácil. Ela pensou em se tornar vegetariana muitas vezes, mas as pessoas ao seu redor sempre diziam que era impossível viver sem carne. “Era estranho, porque temos o exemplo de milhões de pessoas na Índia e em outros países orientais. Mesmo sabendo que eles não comem carne, a princípio isso não me motivou o bastante”, cita em referência ao fato de que as pessoas são tão influenciadas pelo meio que ignoram outras realidades.
Foi no final dos anos 1970 que Pavlova criou as primeiras comissões de bioética da Rússia, contando com a participação de médicos e biólogos que se ofereceram para definir metas e desenvolver alternativas à experimentação animal. O trabalho foi baseado em literatura ocidental traduzida por Pavlova, que logo estabeleceu relações amistosas com organizações estrangeiras que realizavam trabalho semelhante.
Em 1989, fundou a primeira Sociedade Vegetariana Russa desde a Revolução de 1917. Em 1991, criou o Centro pela Ética no Tratamento de Animais (Ceta), que combate a exploração de animais na indústria alimentícia, de peles e couro, além de experimentação científica e entretenimento. Mais tarde, conseguiu introduzir algumas de suas ideias no sistema de ensino russo.
O primeiro livro de Pavlova sobre bioética, “Deontologia – Experimentos Biomédicos” lançado em 1987, foi aprovado pelo Ministério da Educação, e com ele Tatyana propôs a realização de seminários para professores, abrindo espaço para a implantação de cursos de leitura e compreensão de bioética nas universidades russas.
“A situação do vegetarianismo na Rússia é interessante. Há pessoas que são predispostas a terem uma vida saudável, que se interessam por ioga e pela medicina oriental. Estes representam a maioria dos vegetarianos russos. Mas aqui há também pessoas que são vegetarianas porque suas religiões exigem isso. Por exemplo, os hare krishna. Também temos pessoas que fazem isso por razões éticas”, explicou no artigo “Uma Vegetariana na Rússia”.
No início dos anos 1990, Tatyana Pavlova inspirou a criação da série de TV “A Vida Sem Crueldade”, que abordava a exploração animal em vários países. Ações como essa deram um forte impulso para o renascimento do vegetarianismo na Rússia, onde o estilo de vida vegetariano começou a decair nos anos 1930. Décadas depois, os novos defensores dos direitos animais trouxeram novas ideias. Em 1994, sob coordenação de Pavlova, a Praça Pushkin, em Moscou, foi cenário da primeira grande manifestação pública vegetariana realizada em território russo. O evento, que teve inclusive cobertura dos mais importantes jornais da Rússia, ficou marcado por palavras de ordem como: “Vegetarianismo é bondade e saúde!” e “Você está matando os animais todos os dias!”

Tatyana tornou-se vegetariana em 1969 (Acervo: Centro de Direitos Animais Vita)
De acordo com o Centro de Direitos Animais Vita, sediado em Moscou, Tatyana se tornou a mais importante personagem do vegetarianismo russo e da causa animal russa no final da década de 1990, sendo convidada para participar de diferentes programas televisivos de entrevistas. Em 1998, por iniciativa da ativista, podia-se encontrar cartazes sobre os benefícios do vegetarianismo e sobre os direitos animais na Praça Pushkin e em metrôs das mais importantes cidades russas.
Ela também lutou pela criação de um projeto de lei federal para proteger os animais contra abusos, tendo como referências as leis progressistas dos países ocidentais. O problema é que mesmo após três revisões e a aprovação do Soviete da Federação, a câmara alta da Assembleia Federal da Rússia, o presidente Vladimir Putin a rejeitou em 2000, e o seu destino segue desconhecido, segundo o Centro de Direitos Animais Vita.
Pavlova também foi uma das responsáveis pela criação da campanha “Um Dia Sem Carne” na Rússia. Coordenou a realização de shows em defesa dos direitos animais na Praça Vermelha e publicou muitos artigos nos grandes jornais do país. Um dos eventos teve cobertura da TV. “A partir disso, muitas pessoas entraram em contato comigo, e pelo menos um terço tornaram-se vegetarianos por razões éticas. Eram homens jovens, o que foi muito agradável de saber”, informou no artigo publicado em 1995.
Alguns anos antes de falecer, Tatyana sentiu-se recompensada ao reconhecer que muitas pessoas que se tornaram vegetarianas por razões éticas na Rússia jamais se deixaram desviar por crises econômicas ou políticas. “Para eles, é algo sério. Nosso principal problema na Rússia é que as pessoas não sabem muito bem o que são os direitos animais, e nosso Centro [Ceta] foi a primeira organização a se esforçar para promover essas ideias na TV e no rádio, além de publicar livros, folhetos e ministrar palestras”, declarou.
Tatyana Pavlova argumentava que o desenvolvimento espiritual da humanidade depende do fim de uma sociedade antropocêntrica, que aceita e incentiva a escravidão de outras espécies para satisfazer supostas necessidades. “Ela revolucionou nossa consciência, motivando pessoas a repensarem suas atitudes sobre os seres vivos, inspirando eles a juntarem-se na luta pela libertação das criaturas com menos direitos neste planeta – os animais não humanos”, assinalou o escritor vegano estadunidense Kim Stallwood, especialista em direitos animais.
No início da década de 1990, por meio de pesquisas realizadas pelo Centro Médico Científico, Pavlova conseguiu fazer com que o governo russo reconhecesse os benefícios do vegetarianismo, obrigando o Ministério da Saúde a incluir a dieta vegetariana como o caminho para uma vida saudável. “Os cientistas tiveram de admitir oficialmente, após longos anos de silêncio sobre esse assunto, as vantagens do vegetarianismo”, comemorou a ativista.
Para Tatyana Pavlova, vai continuar sendo muito difícil proteger os animais enquanto as pessoas continuarem consumindo demais, porque quanto mais consomem, mais terão de produzir e mais terão de descartar, assim poluindo o meio ambiente e degradando o habitat dos animais não humanos. A ideia de se produzir muitos produtos com vida útil curta sempre a incomodou. “Fundamentalmente, o nosso problema com os animais se resume a um problema de violência e sofrimento, de proteger quem não pode se proteger”, ponderou no artigo “Uma Vegetariana na Rússia”.
A ativista russa dizia que o melhor caminho é ensinar os mais jovens a verem os animais como nossos iguais, tão importantes quanto os seres humanos. “A humanidade tem uma grande responsabilidade em relação a todos os seres vivos. No geral, estou otimista sobre o futuro da Rússia. Outro dia, conheci pessoas da Sibéria Oriental que se mudaram para o país e estão tentando arrecadar dinheiro para começar um experimento de viver distante da civilização. Estão desistindo de tudo, todos os tipos de máquinas. Querem retornar a uma vida simples e que era típica há cem anos. Isso não quer dizer que os russos não sejam tolos como os americanos. Eles também acreditam que produzir para consumir muito é o sonho de uma vida”, revelou em seu artigo publicado em dezembro de 1995.
Alguns dos livros de autoria de Tatyana Pavlova
Deontologia – Experimentos Biomédicos (1987)
Vegetarianismo – Saúde, Bondade, Beleza (1992)
Tudo Sobre o Vegetarianismo (1992)
Vegetarianismo e Ética (1993)
Vegetarianismo e o Futuro do Planeta (1993)
Alimentos que Tratam (1995)
Bioética na Escola (1996)
Bioética na Escola – Parte II (1996)
A Educação Humanitária (1998)
Alimentação Saudável – Um Manual para a Escola Primária (1998)
Saiba Mais
Tatyana Pavlova nasceu em 14 de março de 1931 e faleceu em 21 de agosto de 2007.
Referências
http://www.satyamag.com/dec95/pavlova.html
http://www.vita.org.ru/new/2007/aug/24.htm
http://grumpyvegan.com/blog/2007/11/14/434/
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Por que não dar brinquedos “mais comuns” para as crianças?
Minha sobrinha fez três anos esses dias e desde que ela nasceu nunca dei nenhum brinquedo que tentasse moldar de forma limitante a personalidade dela. Sempre preferi dar algo educativo ou que a estimulasse a reconhecer a própria liberdade desde cedo. Ao longo desse período algumas pessoas vieram me perguntar porque eu não dava brinquedos “mais comuns”. A minha resposta foi a seguinte:
“Analisando hoje, como você se sentiria se ainda criança alguém te desse presentes que te condicionasse no futuro a fazer algo ou ser algo? Quando você dá um brinquedo, por exemplo, não é apenas um brinquedo. Para uma criança isso vem embutido de um sentido que nós que damos ao objeto e consequentemente ela vai absorver isso através da nossa influência. Pra mim é como se você afunilasse o mundo dela. O ser humano tem a possibilidade de uma consciência livre quando nasce, mas essa qualidade muitas vezes se perde com o tempo, quando mostramos através de pequenos atos ou condicionamentos que na realidade a liberdade dela vai só até onde queremos que ela vá, assim a impedindo de ser algo mais do que ela poderia ser.”
O centenário de nascimento de Sebastião Bem Bem
Roza de Oliveira: “Nunca vi outro político assim, que não quer usar dinheiro público”

Sebastião Bem Bem foi vereador na época em que não se ganhava nada para exercer a função (Foto: Acervo Familiar)
Nascido em 11 de março de 1915, o lavrador Sebastião Bem Bem de Oliveira deixou Monte Alegre, distrito de Santo Antônio de Pádua, no Rio de Janeiro, em novembro de 1948. Se mudou com a família para o Noroeste do Paraná após ser convencido pela irmã de que Paranavaí era a terra do café. Com experiência nas mais diversas lavouras, Bem Bem se arriscou e perseverou. Mais tarde, trocou o campo pela cidade e se tornou um político exemplar numa época em que vereadores não ganhavam nada para exercer a função. Depois de superar muitos obstáculos e ajudar tantas pessoas, o pioneiro faleceu aos 77 anos em 4 de maio de 1992.
“O café estava em evidência e meu pai sempre gostou de trabalhar como lavrador. Quando chegamos a Paranavaí, ficamos na casa da tia Taninha até arrumar um cantinho para morar. Enfrentamos dificuldades e perdemos uma irmãzinha, Ruth, que passou muito mal nos quatro dias de viagem e faleceu dez dias após a chegada”, diz a filha Roza de Oliveira, acrescentando que o trajeto tortuoso foi percorrido de trem e de ônibus.
Quando deixou a residência da irmã, Sebastião Bem Bem hospedou a família em uma humilde casinha construída onde é hoje a Unimed, na Rua Antônio Felipe. “O Paulo [Cesar de Oliveira, fundador do Grupo Gralha Azul e presidente da Fundação Cultural de Paranavaí] nasceu naquele ranchinho de tabuinhas, parede de lascas e chão de terra batida”, relata Roza sorrindo, como se estivesse revivendo o passado.
Bem Bem de Oliveira também trabalhou em Paranavaí como funcionário da Prefeitura de Mandaguari até que se mudaram para a famosa Chácara Progresso. O local era o preferido dos filhos, mas infelizmente o pioneiro teve de vender o imóvel e se mudar para um sítio. “Papai começou a lidar com café na propriedade do seu Antonio José da Silva. Depois fomos colher algodão. A família toda ajudava na lavoura”, lembra a filha.
Durante as colheitas, Bem Bem, que ainda criança aprendeu a manejar enxada, foice e machado, sempre explicava aos filhos a importância de estudar. Não queria que enfrentassem as mesmas dificuldades que ele. “Deixou claro para todos nós que é estudando que se vence. Tinha uma tristeza muito grande por não ter estudado”, confidencia Roza, lembrando que pais como Sebastião Bem Bem eram raros nos anos 1950 e 1960. Os filhos se recordam da alegria do patriarca ao vê-los diante de uma lamparina folheando um livro ou caderno à noite, mesmo que isso custasse acordar com o rosto sujo de tanta fuligem.
Quando Roza completou 15 anos e recebeu uma nomeação do prefeito José Vaz de Carvalho para trabalhar como professora na Casa da Criança, onde é atualmente Colégio Estadual Dr. Marins Alves de Camargo, Bem Bem ficou preocupado porque a filha precisaria percorrer quilômetros a pé para lecionar. Então decidiu se mudar.
Na área urbana, novamente se sentiu perdido porque tinha pouca experiência trabalhando longe do campo. Esperto e inteligente, não se abateu. Ao perceber a chegada de tantas famílias a Paranavaí, Sebastião Bem Bem começou a atuar como corretor de imóveis. Entre altos e baixos, o pioneiro fluminense estava sempre disposto a encarar desafios, tanto que trabalhou até na derrubada de mata em Loanda. Saía de Paranavaí na segunda e retornava apenas no sábado.
“Sempre teve uma capacidade muito grande de auto-superação. Não se entregava de jeito nenhum”, assegura Roza. Enquanto Bem Bem trabalhava como peão, a esposa Elazir Azevedo de Oliveira prestava serviços como lavadeira de roupas para muitas famílias de Paranavaí.
De acordo com o filho Paulo Cesar de Oliveira, com o incentivo dos amigos, Bem Bem de Oliveira concorreu ao cargo de vereador nas eleições de 1952 e ficou como suplente. À época, trabalhou para o candidato a prefeito Herculano Rubim Toledo, vencido pelo médico José Vaz de Carvalho. Logo que assumiu a administração municipal, José Vaz o convidou para uma conversa. “Ele disse que queria meu pai trabalhando com ele, ajudando a administrar Paranavaí. O convite foi aceito e os dois nunca desfizeram a parceria”, garante Paulo Cesar.
Naquele tempo, Bem Bem já realizava trabalhos sociais, contribuía com solicitações de encaminhamento para internações. Nos quatro primeiros anos que viveu em Paranavaí, não teve nenhuma pretensão política, só agia por amor ao próximo. “Ele se tornou um famoso voluntário da ação social e da área de saúde. Não sossegava enquanto não conseguia internar quem o procurava pedindo auxílio”, frisa Roza.
A partir de 1965, com a popularidade alta e o crescente reconhecimento de suas ações, o pioneiro conseguiu se eleger vereador. O desempenho agradou tanto a população que Bem Bem foi reeleito em 1969, 1973, 1977 e 1983. “Foram cinco mandatos consecutivos. De 1975 a 1976, ele foi presidente da Câmara Municipal. Atuou também como secretário da assistência social”, lembra Paulo Cesar de Oliveira.
Quando era vereador, não tinha hora para chegar em casa e recebia os eleitores até de madrugada. Tarde da noite, não era raro os filhos ouvirem vozes vindo da entrada da residência. A visita tinha quase sempre a mesma motivação: “Ô seu Bem Bem, meu pai tá doente. Precisamos da sua ajuda”, clamavam. O vereador se apressava e ia para a Santa Casa de Paranavaí, de onde não saía até garantir que o enfermo fosse internado.
Paulo Cesar se recorda de um episódio cômico em que até o prefeito José Vaz de Carvalho se rendeu aos esforços de Sebastião Bem Bem. “Um dia, o José Vaz, que era médico, estava atendendo na Santa Casa e uma recepcionista chegou falando que o Bem Bem estava nervoso. Então o prefeito disse: ‘Ah, manda ele pra lá”, narra o filho.

Elazir Azevedo de Oliveira e Bem Bem de Oliveira se casaram em 1938 em Santo Antônio de Pádua, no Rio de Janeiro (Foto: Acervo Familiar)
Se voltando para um paciente, Carvalho justificou que Bem Bem era uma pessoa muito boa, mas que exigia muita atenção. “Ninguém aguenta alguém que quer ser atendido toda hora”, criticou. Quando percebeu que Sebastião Bem Bem já estava entrando, José Vaz mudou o rumo da conversa. “Estou falando. Não tem homem igual o Bem Bem em Paranavaí. Atende ele, menina!”, ponderou.
Respeitado até por adversários políticos, o vereador tinha o hábito de fazer tudo sem usufruir de recursos públicos. Quando conseguia o encaminhamento de pacientes para Curitiba e outras cidades do Paraná, fazia questão de ir junto e ainda dormia ao lado da cama do paciente. “Sempre procurava a hospedaria mais barata. Chegava a ser ridicularizado pelos colegas. Nunca vi outro político assim, que não quer usar dinheiro público. Uma vez, papai dormiu em uma pensão e roubaram a mala dele”, confidencia Roza de Oliveira, evidenciando a bondade e azar do vereador.
O respeito e consideração de Sebastião Bem Bem pela população era tão grande que muitas vezes o pioneiro chegou ao Hospital das Clínicas de Curitiba carregando enfermos nos braços. Como vereador não tinha salário, trabalhou cerca de 16 anos sem ganhar nada. “Sabe o que ele fez na primeira ocasião em que recebeu como vereador? Dividiu mais da metade com os menos favorecidos”, conta rindo o genro Augustinho Borges.
Quem conheceu Sebastião Bem Bem de Oliveira sempre o considerou um guerreiro. Se sobressaía pelo interesse em fazer a diferença quando ainda não existiam políticas específicas para a área da saúde. “Era firme no que acreditava e um comentário só o atingia se tivesse argumentos consistentes, não vaidades”, avalia Rosa. Até hoje, Bem Bem é lembrado pela defesa de leis que garantiram à população o direito de acompanharem os familiares internados na Santa Casa de Paranavaí.
Em ato de coragem, durante uma sessão na Câmara Municipal, o vereador manifestou indignação contra a bancada ruralista no Congresso Nacional e ainda fez questão de chamar a atenção dos que representavam os interesses dos latifundiários na região. Mesmo depois de dedicar 25 anos de vida à população de Paranavaí, Sebastião Bem Bem de Oliveira não conseguiu obter a aposentadoria. “Não se aposentou nem como trabalhador rural, atividade que exerceu por décadas. Também foi guarda do aeroporto, secretário de assistência social e corretor de imóveis. Nada disso garantiu que ele recebesse nem mesmo um salário mínimo na terceira idade”, lamenta Paulo Cesar.
Antes de falecer em 4 de maio de 1992 em decorrência de falência múltipla de órgãos, Bem Bem teve um acidente vascular cerebral (AVC) e passou os dois últimos anos de vida em uma cadeira de rodas. Segundo Roza de Oliveira, o pai sofreu bastante. Teve de fazer hemodiálise e frequentemente precisava ser internado. “Ele era diabético e hipertenso. Um dia, o José Vaz entrou no quarto e falou que o Bem Bem não merecia passar por isso”, testemunha Paulo Cesar de Oliveira.
Pouco antes de morrer, Sebastião Bem Bem de Oliveira lamentou o arrependimento de não ter se dedicado mais aos filhos. Também questionou se realmente foi um bom pai. “Deixamos claro que ele foi o melhor pai do mundo, que nos ensinou com rigor a importância de sermos honestos e trabalhadores. Apesar de todas as dificuldades, nos ensinou muito sobre Deus, um presente eterno que todo pai deveria dar aos filhos. Foi um momento de emoção, choro e conforto”, assinala Roza.
No dia 6 de maio de 1992, o editorial do Diário do Noroeste expressou pesar pela morte de um dos políticos mais importantes da história de Paranavaí. “Bem Bem de Oliveira entrou pobre na política e assim saiu dela, quando sua saúde já não permitia mais desenvolver as atividades legislativas. Fez um grande trabalho na área social – fato reconhecido até por adversários políticos. E a grande virtude do ex-vereador é que ele realizou este trabalho antes de entrar para a Câmara Municipal e continuou depois de se despedir do legislativo. Foi a política que entrou na vida de Bem Bem e não ele que entrou para a política.”
Bem Bem amava poesia e adorava noticiários
Obrigado a trabalhar desde criança, Sebastião Bem Bem de Oliveira só estudou até o segundo ano do primário, atual ensino fundamental. Ainda assim, gostava muito de ler e era bom em cálculos. “Ele tinha aquele complexo de achar que não possuía cultura por ter estudado pouco. Apesar disso, gozava de uma capacidade invejável para discursar e evangelizar. Era um homem inteligentíssimo e entendia tudo sobre a bíblia, o seu livro preferido que leu tantas vezes”, diz a filha Roza de Oliveira.
O amor pela poesia e pela declamação, Roza herdou do pai aos cinco anos. A influência foi tão significativa que os filhos cresceram afeiçoados à literatura. Paulo Cesar de Oliveira, fundador do Grupo Gralha Azul, atribui ao pai o seu grande envolvimento com arte e cultura ao longo da vida. Além de leitor inveterado, Sebastião Bem Bem adorava noticiários, tanto que quando comprou a primeira TV “foi como se o paraíso chegasse até ele”, define a família.
Bem Bem também sabia ser bravo e intransigente, principalmente quando ficava com ciúmes. Roza de Oliveira jamais esqueceu o episódio em que estava estudando química em casa com a ajuda do amigo e engenheiro Luís Beletti. “De repente, passa o papai com um cabo de vassoura pra bater no rapaz. Ele achou que estávamos muito perto um do outro. Tinha o coração bom demais, mas um temperamento difícil”, admite Roza às gargalhadas. No dia, a filha chorou a noite toda de vergonha. Ficou tão constrangida que passou um bom tempo sem se aproximar de rapazes. Mais tarde, Bem Bem se arrependeu e convidou o jovem para um almoço.
Um mito em Santo Antônio de Pádua
Nos anos 1970, Sebastião Bem Bem de Oliveira já convivia com o diabetes. Teimoso, se recusava a seguir a dieta. “Ia pra casa do amigo Salomão e comia tudo que não podia. Ele não gostava de se cuidar. Lá pelo início dos anos 1980, só abriu uma exceção e deu uma caprichada quando prometi levar ele e a mamãe para visitar os parentes no Rio de Janeiro”, lembra a filha Roza de Oliveira.

Dona Elazir: “Eu e o Bem Bem enchemos Paranavaí de gente. Tivemos 14 filhos, 17 netos e 22 bisnetos” (Foto: Acervo Familiar)
Cumprindo o combinado, o levaram para Santo Antônio de Pádua. Apesar de ter deixado a cidade natal ainda muito jovem, a fama de Bem Bem como um homem bondoso e admirável era tão grande que na casa do irmão, onde ficou hospedado, recebeu visitas o dia todo, até de pessoas que não conhecia.
“Chegou muita gente de carro de boi e também a cavalo. Foi aí que percebi o quanto ele era querido em Pádua. De lá, fomos para o Rio [de Janeiro, capital], onde visitamos Jorge de Sá, um de seus melhores amigos. Na volta, passamos ainda em São Paulo para ele rever o ‘Seu Olivier’, outro grande amigo”, descreve Roza, acrescentando que fizeram todas as vontades de Bem Bem durante a viagem.
O que também chamava a atenção no pioneiro era a grande sensibilidade. Era acostumado a chorar com facilidade, principalmente quando reencontrava algum parente ou amigo. Se emocionava até mesmo com figuras públicas que admirava. “Eu tinha 13 anos quando o presidente Getúlio Vargas cometeu suicídio e lembro como se fosse hoje. Morávamos em um ranchinho e o ‘radião’ ficou ligado dia e noite. Papai chorava sem parar”, pontua Roza.
Um traço de personalidade que virou nome
De acordo com a esposa Elazir Azevedo de Oliveira, o pioneiro fluminense Sebastião de Oliveira ficou conhecido como Bem Bem muito cedo pelo jeito afável e querido de ser. “Quando ele era criança o chamavam de benzinho. Mais tarde, começaram a falar Bem Bem”, conta. O genro Augustinho Borges explica que o apelido que depois virou nome ganhou força com o altruísmo do pioneiro fluminense. “Ele era a pessoa que mais se encaixava no ditado ‘faça o bem sem olhar a quem’. Fazia o melhor por qualquer pessoa e tentava sempre ver o lado bom de tudo”, comenta Borges.
Em 1980, Sebastião de Oliveira decidiu fazer uma retificação de nome porque nas últimas eleições perdeu muitos votos quando concorreu a vereador. O problema era que bastante gente o conhecia apenas como Bem Bem. “O sujeito votava, mas os votos não eram considerados porque o que valia era o nome no registro de identidade”, comenta Augustinho Borges.
Com o auxílio do advogado Fuad Esper Cheida, o pioneiro conseguiu fazer a alteração. À época, Augustinho Borges viajou até o Rio de Janeiro para formalizar a mudança e buscar a nova certidão de nascimento do sogro. Na última eleição municipal em que concorreu, Bem Bem superou de longe a quantidade de votos das eleições anteriores, provando que era um dos políticos favoritos da época. Em reconhecimento a tudo que fez por Paranavaí, Sebastião Bem Bem de Oliveira recebeu em 14 de dezembro de 1981 o título de cidadão benemérito de Paranavaí.
Em 2 de setembro de 1987, o pioneiro foi presenteado pela Associação Comercial e Industrial de Paranavaí com uma placa de prata entregue pelo então prefeito Benedito Pinto Dias. A solenidade o reconheceu como o homem público do ano pela Comissão Organizadora das Solenidades da Semana da Pátria. Bem Bem também foi prestigiado com um nome de rua. Uma das vias mais importantes do Jardim Ibirapuera e Jardim Santos Dumont, a Rua Catete recebeu o nome de Rua Sebastião Bem Bem de Oliveira.
Saiba Mais
Sebastião Bem Bem de Oliveira era do Rio de Janeiro, cujo padroeiro é São Sebastião e se mudou para Paranavaí, cidade que também tem o santo como padroeiro. Casou-se com Elazir Azevedo de Oliveira que nasceu em 20 de janeiro, Dia de São Sebastião. Além disso, por pouco “Dona Elazir” não recebeu o nome de Sebastiana.
Sebastião Bem Bem se apaixonou por Elazir quando ela tinha apenas 14 anos. Tentou pedir a mão da jovem em casamento, mas o pai dela recusou alegando que não tinha filha em idade de se casar. Apaixonado, Bem Bem ficou tão abalado que chegou a ser internado em um sanatório. Sebastião de Oliveira não desistiu, tanto que se casaram quatro anos depois.
Em Santo Antônio de Pádua, Sebastião Bem Bem trabalhava cultivando arroz na serra. Apesar das dificuldades, todos os dias ‘Dona Elazir’ percorria longas distâncias e subia morros levando uma cesta de comida para o marido e os companheiros de trabalho.
Paulo Cesar de Oliveira se recorda do episódio em que o pai, Sebastião Bem Bem, estava acompanhando um homem com problemas psicológicos para receber tratamento médico em outra cidade. Na ocasião, o sujeito abriu a porta do carro, desceu e fugiu em direção a um matagal. Bem Bem teve de correr atrás do homem para trazê-lo de volta.
Frase da filha Roza de Oliveira, de 73 anos.
“Um dia, ali perto do Grande Hotel teve um tiroteio e o papai mandou todo mundo deitar no chão. Ficou com medo que alguma bala acertasse a gente. A confusão foi armada por causa de grilagem de terras.”
Frase da esposa Elazir Azevedo de Oliveira, de 94 anos.
“Eu e o Bem Bem enchemos Paranavaí de gente. Tivemos 14 filhos, 17 netos e 22 bisnetos. Fico triste por ter perdido sete filhos, mas também fico feliz de ter uma família tão grande, boa e bonita. Todos me tratam bem, querem o melhor pra mim. São muito queridos. Me sinto uma ilha cercada por netos por todos os lados. Tem hora que fico perdida no meio da turma, né?”