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Os perigos do projeto de lei do deputado Valdir Colatto que quer liberar a caça e o comércio de animais silvestres no Brasil
Em 2016, o deputado federal Valdir Colatto (PMDB-SC), da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), também conhecida como bancada ruralista, apresentou o projeto de lei nº 6.268, que dispõe sobre a política nacional de fauna. Em síntese, o projeto, que já foi rejeitado pelo relator e presidente da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS), deputado federal Nilto Tatto (PT-SP), ainda busca relaxamento das leis ambientais brasileiras.
Sem dúvida, a tentativa de flexibilização representa um claro retrocesso se considerarmos que prevê até mesmo a alteração no Código de Caça brasileiro, editado em 1967, proibindo a caça em todo o território nacional por entender que a realidade brasileira não perpassa pela necessidade de caça de animais silvestres. Porém, Colatto alega que hoje em dia a proximidade de animais silvestres com o meio rural coloca em risco pessoas, propriedades e rebanhos, o que na sua perspectiva justifica a liberação da caça.
Talvez seja válido perguntar, como em 2018 os animais silvestres podem ser vistos como uma ameaça que já não representavam em 1967? Principalmente se considerarmos que da década de 1960 até a atualidade houve uma redução, não um aumento da fauna brasileira. Segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o Brasil conta com 1051 espécies da fauna avaliadas como ameaçadas de extinção.
Outro fato a se ponderar é que animais silvestres, apontados como uma ameaça pelo deputado federal Valdir Colatto, normalmente só invadem propriedades por dois fatores – perda de habitat e fome, e tanto a perda de habitat quanto a fome estão associadas ao desmatamento. Afinal, nenhum animal deixa a natureza selvagem por espontânea vontade. Logo se os animais silvestres se tornam uma ameaça, isto acontece simplesmente em decorrência da má intervenção humana visando a lucratividade.
Um exemplo dessa má intervenção foi denunciado pelo vídeo “Eu Sou Mudança – Consumo Consciente”, lançado pelo Google em julho do ano passado, revelando que mais de 750 mil quilômetros quadrados de floresta foram destruídos somente na Amazônia e, desse total, dois terços transformados em pasto, o equivalente ao tamanho da Espanha.
Mas então Colatto e seus asseclas podem alegar que a liberação da caça atende aos interesses ambientais de conservacionismo, ou seja, manutenção da vida selvagem. Tudo bem. Vamos considerar que a proposta realmente seja essa. Em um país como o Brasil, onde a fiscalização da fauna e da flora sempre foi crítica, limitada e excludente, como isso funcionaria na prática? Quais os instrumentos que seriam usados para coibir, por exemplo, o tráfico de animais silvestres em um país com a caça liberada e marcado por corrupção e flexibilização legal baseada no pagamento de propinas? O projeto, que já é inconsistente em essência, não apresenta nenhum tipo de solução para questões como essa.
No tocante ao chamado “plano de manejo”, o PL é permissivo em relação à comercialização de animais caçados e capturados na natureza. Também abre um precedente para que animais selvagens sejam mortos em unidades de conservação de proteção integral, mas remanejados para outras áreas e comercializados com documentações que omitem informações sobre a verdadeira origem dos animais – assim não se enquadrando como crime, já que animais poderão ser mortos livremente dependendo da declaração de origem. Afinal, qual órgão será capaz de coibir isso em tempo hábil? Com quais recursos? Já que o projeto tem abrangência nacional.
O biólogo João de Deus Medeiros, doutor em botânica, professor e chefe do Departamento de Botânica da Universidade Federal de Santa Cantarina (UFSC), aponta que o projeto de lei de Colatto concede licença para utilização, perseguição, aprisionamento, manutenção, caça, abate, pesca, captura, coleta, exposição, transporte e comércio de animais da fauna silvestre, além de permitir modificar, danificar ou destruir ninhos, abrigos ou criadouros naturais, ou realizar qualquer atividade que impeça a reprodução de animais da fauna silvestre. Além disso, propõe o uso de cães para caçar em Unidades de Conservação (UCs). Ou seja, locais que por excelência deveriam garantir a segurança e o bem-estar desses animais.
Para muito além da questão “conservacionista”, e de “proteção à vida e à propriedade”, Colatto também defende que a caça pode se tornar uma fonte de renda, o que coloca os animais silvestres em uma situação ainda mais crítica de vulnerabilidade e incentivo à violência contra outras espécies de animais. O IBGE condena tal prática, informando que a diversidade da fauna brasileira tem levado à falsa ideia de abundância, o que costuma levar à destruição. O órgão argumenta que entre as principais causas da redução da fauna brasileira estão a perseguição de espécies de animais para fins comerciais (ornamento, lazer e consumo); destruição do habitat provocado pelo crescimento desordenado do país; poluição do ar e dos rios pelo uso de defensivos agrícolas e outras substâncias químicas; e, claro, o desmatamento.
Para quem não conhece o projeto de lei nº 6.268/2016, é importante saber que o texto discorre sobre a implantação de criadouros comerciais, áreas dotadas de instalações para o manejo e a criação de espécies da fauna silvestre com fins econômicos e industriais. De acordo com o IBGE, diariamente o Brasil mata mais de 16 milhões de frangos, mais de 118 mil porcos e mais de 84 mil bovinos. Será que já não matamos animais demais? E isso apenas citando três espécies de animais domesticados e criados com fins comerciais. O projeto ainda permite a instalação de criadouros científicos, ou seja, a exploração de animais silvestres em pesquisas científicas em universidades e centros de pesquisa. Essa é outra medida que é vista como um retrocesso, levando em conta que hoje em dia discute-se no mundo todo o banimento do uso de animais em pesquisas, já que além de ser uma prática desnecessária, considerando outros meios de obter inclusive melhores resultados sem usar animais, é evidentemente cruel.
Em síntese, o PL defende que a caça de animais silvestres pode ser colocada em prática com diversas finalidades, como alimentação, entretenimento, defesa e fins comercias. Também visa autorizar importação e exportação de animais, e permite que zoológicos possam comercializá-los. Ademais, o projeto defende a anulação do agravamento de até o triplo da pena de detenção de seis meses a um ano para quem matar, perseguir, caçar, apanhar ou utilizar animais sem licença, o que impacta diretamente na lei 9.605/98, que versa sobre crimes ambientais.
Autor do projeto que pode acarretar graves e trágicas consequências para os animais silvestres, o deputado federal Valdir Colatto (PMDB-SC), ligado à Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), é autor de oito projetos contra os direitos indígenas, segundo a República dos Ruralistas, além de apoiar pautas de outros parlamentares que convergem para a redução desses direitos. “É um dos autores da PLP 227/2012 [demarcação de terras indígenas], membro da comissão especial da PEC 215/2000 [demarcação de terras indígenas] e votou a favor da alteração do Código Florestal [favorecendo o desmatamento]”, informa a República dos Ruralistas. No ano passado, Colatto ganhou os holofotes por cobrar do presidente Michel Temer a liberação de plantio em terras indígenas.
O biólogo João de Deus Medeiros, doutor em botânica, professor e chefe do Departamento de Botânica da Universidade Federal de Santa Cantarina (UFSC), critica que Valdir Colatto, que é técnico agrícola, engenheiro agrônomo e coordenador da Comissão de Direitos de Propriedade, se intitula um defensor da natureza, mas sempre coloca os interesses do homem em primeiro lugar; e uma prova disso é esse projeto que impacta negativamente na vida selvagem.
Em 2015, três etnias indígenas de Santa Catarina, os Xokleng Laklãnõ, Kaigang e Guarani, repudiaram as declarações de Colatto afirmando que os índios catarinenses eram favoráveis à PEC 215. “Isso é uma mentira! Esse senhor não representa a nenhum de nós”, registraram os índios em uma carta aberta publicada no site da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mesmo com a contrariedade, o projeto de demarcação de terras indígenas defendido por Colatto e pela bancada ruralista foi aprovado.
Em relação à vulnerabilidade de animais silvestres diante de um projeto que visa ampliar a objetificação ou a coisificação animal, talvez seja válida uma reflexão compartilhada pelo professor de história israelense Yuval Noah Harari no artigo “Industrial farming is one of the worst crimes in history” no jornal britânico The Guardian. Harari é autor do best-seller “Sapiens: Uma Breve História da Humanidade”, lançado oficialmente em 2014:
“A marcha do progresso humano está repleta de animais mortos. Há dezenas de milhares de anos, nossos antepassados da idade da pedra já eram responsáveis por uma série de desastres ecológicos. Quando os primeiros humanos chegaram à Austrália há cerca de 45 mil anos, eles rapidamente promoveram a extinção de 90% dos grandes animais. Esse foi o primeiro impacto significativo que o Homo sapiens teve no ecossistema do planeta. E não foi o último. Cerca de 15 mil anos atrás os humanos colonizaram a América, eliminando cerca de 75% dos mamíferos. Numerosas outras espécies desapareceram da África, da Eurásia e das miríades de ilhas ao redor de suas costas.”