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A polêmica do chimarrão
Ontem, compartilhei em algumas mídias sociais uma receita de um hambúrguer vegetal que, por sugestão de uma amiga, dei o nome de “Chimarrão”. Por causa disso, três pessoas entraram em contato comigo reclamando do nome que dei à receita. Uma dessas pessoas chegou a me dizer que o chimarrão pertence à cultura do Rio Grande do Sul, logo é um equívoco eu dar esse nome a uma das minhas receitas. Outra se referiu ao chimarrão como se eu não soubesse que ele é tradicional no Rio Grande do Sul. Sempre tive muito respeito pelos camaradas gaúchos, inclusive aqueles que são migrantes e hoje vivem no Paraná, que é o estado onde vivi a minha vida toda.
Além de eu não ver razão para polemizar sobre o nome da receita, acho válido fazer uma observação; que tenhamos cuidado quando atribuímos uma ideia de posse a algo que embora esteja inserido em um contexto cultural não significa que pertença a ele. Um grupo, uma região ou até mesmo um país adotar uma tradição não significa que pertença a eles, ou que seja um símbolo restrito de sua cultura e de seu povo.
Historicamente, o chimarrão não tem donos, tanto que se abordarmos a questão histórica dessa bebida é importante não desconsiderar que os índios de etnia guarani, quíchua, caingangue e aimará já a consumiam em regiões que hoje pertencem a diversos países da América do Sul, não apenas uma região, nem mesmo um estado; e isso muito antes da chegada (ou invasão, como você preferir) dos ocidentais.
Estudei a história do Norte do Paraná entre os anos de 2006 e 2016, e nesse período visitei algumas ruínas indígenas como as de Loreto, e lá encontrei cuias que os caiuás usavam para consumir chimarrão no século 16 (posso provar), às margens do Rio Paranapanema. Essa localidade fica a menos de 150 quilômetros da minha casa, e à época pertencia à Província de Guaíra, território paraguaio.
Mas o que eu quero dizer com isso? Que não vejo o menor sentido quando as pessoas falam em “posse cultural”, porque muito do que conhecemos como cultura envolve transferência, modificação, adaptação e aperfeiçoamento, o que não quer dizer que, reafirmando mais uma vez, se conhecemos um elemento cultural em um contexto, isso significa que tenha sido gestado ali, ou que esteja restrito àquela cultura. Além disso, o próprio Veríssimo, que foi um dos maiores escritores da literatura gaúcha e brasileira do século 20 já discorreu sobre isso.
Sobre a cena de estupro em “Último Tango em Paris”
Tenho lido sobre a mais polêmica cena do filme “Último Tango em Paris”, de Bernardo Bertolucci, lançado em 1972, com a então jovem Maria Schneider, estuprada pelo personagem de Marlon Brando.
Bertolucci admitiu que Maria não sabia que se trataria de uma cena de estupro, visando reproduzir as reações dela como mulher, não atriz. É triste, mas não fiquei tão surpreso porque o cinema está repleto de casos como esse. Isso me lembra um artigo que escrevi há algum tempo, sobre a concepção moral de alguns artistas. Há artistas, inclusive entre os grandes, que não se importam com a perspectiva moral que normatiza a vida em sociedade.
A diferença é que alguns levam isso para as telas, outros a restringem ao escapismo. Além disso, a arte para muitos está acima de qualquer coisa, e pouco importa pra eles se isso significa transpor os direitos de alguém. E isso não é contemporâneo não, muito menos se restringe ao cinema. É só estudar a vida dos pintores do passado. Estamos falando de algo que existe desde o surgimento da arte. Para alguns ou muitos, o que vale é transmitir o que eles querem transmitir. O resto é realmente encarado como resto. O doa a quem doer não raramente é levado à literalidade sem ressalvas.
Godard e a Virgem Maria
Je Vous Salue, Marie propõe discussão entre matéria e espiritualidade
Em 1985, o cineasta francês Jean-Luc Godard lançou o polêmico filme Je Vous Salue, Marie que anos depois chegou ao Brasil com o título original, baseado na oração católica. A obra é uma interpretação contemporânea da história da Virgem Maria e se sustenta em diálogos e imagens que propõem uma discussão com requinte de ensaio entre matéria e espiritualidade.
Famoso pela audácia, desinteresse pela objetividade e despreocupação em agradar o público, Godard apresenta duas histórias paralelas em Je Vous Salue, Marie. Na primeira, Marie (Myriem Roussel) é uma esportista adolescente em crise existencial, convivendo com as tentações da modernidade e as incertezas sobre o futuro.
A jovem tem um relacionamento conturbado com o materialista Joseph (Thierry Rode), um cético e imaturo taxista que decide ter relações sexuais com outra mulher após as muitas recusas de Marie. Entre o casal subsiste um antagonismo sutil.
O anjo Gabriel (Philippe Lacoste), sem qualquer característica física ou psicológica de arcanjo, é a materialização do pragmatismo. Jean-Luc criou um personagem frágil e dotado de inúmeros defeitos que, em vez de voar, viaja de avião. Em pleno século 20, assume a missão de fazer Joseph crer que o filho de Marie, com quem jamais teve uma relação sexual, é dele.
Em contraponto a breve história de Maria, sustentada em fé inominável, é apresentada a realidade de um racionalista professor de ciências que refuta a religiosidade em favor da ufologia, gerando assim um embate envolvendo estética e dialética.