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A minha primeira vez no caldeirão do inferno
Imaginei o mais tenebroso e abissal dos cenários, com chamas flamejantes ao fundo
Meu pai gostava muito de viajar. Depois que se aposentou então a frequência aumentou consideravelmente. Às vezes, levantava de madrugada e acordava todo mundo. Pedia para arrumar as malas e avisava que partiríamos em uma hora. Era divertido viajar sem planejamento, até porque quando ele avisava com bastante antecedência eu e meu irmão Douglas ficávamos agitados e ansiosos. Ou seja, não dormíamos.
Amante da cultura paranaense, meu pai tinha predileção por mostrar como o estado onde nascemos possui muitas riquezas que passam despercebidas por tanta gente. Foi assim que conheci o Paraná de Norte a Sul quando criança. Ele enaltecia a simplicidade, as coisas da terra e o teor sereno das pessoas do campo, dos vilarejos e das pequenas formações citadinas, lugares alheios ao tempo, onde tudo parecia transcorrer sem pressa. No caminho, cantávamos canções escoteiras como “A Velha A Fiar”, “A Árvore da Montanha” e “La Bela Polenta”. Meu pai dirigia com tranquilidade enquanto desafiava eu e meu irmão a ler primeiro o que estava escrito nas placas, outdoors e letreiros que encontrávamos em cada trajeto.
Curioso, eu tentava observar tudo à minha volta, mas ocasionalmente sentia náuseas. Em algumas situações consegui evitar o pior ao abrir a janela, colocar o rosto para fora, fechar os olhos e absorver o aroma da relva amplificado pelo vento. Quando não resolvia, o jeito era parar o carro. Eu descia pálido e estonteado. Assim que vomitava, me sentia revigorado em poucos minutos. Percebia até a temperatura corporal retornando ao estado normal. Para me animar, meu pai e minha mãe contavam histórias dos lugares por onde passávamos, o que me fazia sonhar acordado, imerso num universo pessoal mais próximo da fantasia do que da realidade.
Na minha primeira visita as Furnas, no Parque Estadual de Vila Velha, em Ponta Grossa, eu tinha nove anos quando me disseram que iríamos aos “caldeirões do inferno”. Criança que era, e com uma perspectiva de desenho animado, imaginei o mais tenebroso e abissal dos cenários, com chamas flamejantes ao fundo, onde o diabo aguardava um deslize para arrastar crianças desobedientes até as profundezas do desconhecido. Sem dizer nada a ninguém, comecei a pensar em tudo que fiz de ruim naquele ano e me perguntei: “Será? Será que existe algum motivo pra eu ir pro inferno agora que ele tá tão perto de mim?”
Logo lembrei das vezes em que fiquei de castigo na escola por mau comportamento, do dia em que não obedeci minha mãe e tomei banho de chuva. Claro, também de quando comi escondido doces que não eram meus. “Será que o capeta sabe que peguei umas figurinhas do álbum do Campeonato Brasileiro do meu irmão? E aquele dia que faltei na catequese? Tô lascado se hoje for o dia do acerto de contas”, refleti enquanto sentia um gosto de fel na ponta da língua.
Quando entrei receoso, e a passos leves e curtos no elevador panorâmico da Furna 1, percebi uma abrupta revoada de morcegos. Ouvi um guia contando a um visitante que um dia uma noiva cometeu suicídio, saltando lá de cima. Eu que pouco entendia sobre o significado da morte me recordei de um episódio da série Contos da Cripta que assisti escondido dos meus pais. Pensei na possibilidade da mulher reaparecer por aquelas bandas, quem sabe até emergindo das águas caliginosas da lagoa para me levar com ela a contragosto. Pelo menos fiquei mais aliviado quando vi de longe que não havia fogo nem diabo.
Conforme o elevador descia, me senti mais minúsculo e curioso diante daquela enorme e profunda cratera onde uma vegetação primitiva e predominantemente rasteira adornava o cenário. Notei também no entorno algumas lâminas rochosas pontiagudas e assimilei com a matéria-prima do caricato tridente do capeta. Lá embaixo, caminhei sobre a plataforma de madeira, tentando identificar o que havia sob a água. Divaguei, aventando a possibilidade da Furna abrigar algum animal tipo o Monstro do Lago Ness. “E se isso aqui quebrar e a gente cair na lagoa?”, uma reflexão constante cada vez que eu observava a pequena distância entre as águas turvas e os meus pés.
Meu pai se aproximou e disse que o local era território de peixes cegos e albinos, então imaginei como seria viver em um ambiente como aquele – um mundo pequeno e escuro, uma masmorra fluvial, onde animais eram punidos por motivos secretos, condenados à infelicidade até os seus últimos dias. Não! Eu poderia estar errado. Por que pensar no pior? Talvez existissem muitas belezas no fundo daquele caldeirão, coisas tão belas que jamais poderiam ser vistas, mas apenas ouvidas e sentidas, aguçando somente a imaginação. Quem garante que o meu mundo não poderia ser mais limitado do que o deles?
Naquela época, eu tinha lido “Vinte Mil Léguas Submarinas”, de Júlio Verne, o que me influenciou a julgar num rompante de ingenuidade e pessoalidade que houvesse uma maneira de saber se aqueles peixes que viviam nas Furnas eram felizes. Me agachei vagarosamente e com muito esforço fiz um círculo na água com o miúdo dedo indicador da mão direita, o suficiente para emitir uma vibração diferente daquela com a qual os animais da Furna 1 estavam acostumados. Menos de um minuto depois, três peixes pequenos se aproximaram da superfície. Após o contato de breves segundos, mergulharam nas profundezas, numa sequência que parecia ensaiada.
Para qualquer outra pessoa quem sabe não significasse nada, mas pra mim, no meu universo peculiar de criança com nove anos, era um sinal de que a vida naquele lugar não era hostil. Interpretei que aqueles peixes ainda não tinham motivos para desgostarem do ser humano, ainda um visitante, não um invasor. “É, acho que ainda são felizes”, concluí com um sorriso enviesado e a fé cândida de que aquele lugar que me pareceu tão aterrorizante em um primeiro momento era belo, harmonioso, justo e cabalístico à sua maneira.
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A história do Preto Velho
Em Cafundó, João de Camargo representa o Brasil miscigenado e heterogêneo
Lançado em 2005, Cafundó, dos cineastas Paulo Betti e Clovis Bueno, é um filme recheado de simbologias que narra a trajetória de João de Camargo (Lázaro Ramos), o mais emblemático preto velho brasileiro. Na obra que teve como cenário várias cidades do Paraná, como Ponta Grossa, Paranaguá e Antonina, João de Camargo representa um símbolo de fé e a figuração de um Brasil marcado pela miscigenação, heterogeneidade e fusão de valores.
Exemplo de toda essa mistura é a ideia do protagonista em criar a Igreja de Bom Jesus do Bonfim que une elementos de umbanda e cristianismo; um revolucionário artifício que pode não ter sido determinante na aceitação dos símbolos religiosos africanos, mas contribuiu para mostrar uma nova realidade que se distanciava daquele contexto europeizado.
A iniciativa de construir uma igreja diferente só surge quando o protagonista decide, após uma vida errante de muito sofrimento, viver para a fé. João de Camargo rompe sua relação com o passado na busca pela redenção. A entrega às crenças religiosas também se relaciona ao fato do personagem assumir o dom para a mediunidade, não ignorando mais as vozes que o acompanhavam, e sim as usando para curar enfermidades.
O Preto Velho era um homem muito à frente de seu tempo, tanto que os primeiros indícios de seu perfil como líder aparecem em 1866, quando o personagem começa a aceitar a vida e o próprio talento para lidar com as multidões e o preconceito racial. Camargo não só estimulava a fé das pessoas em uma divindade, mas também as fazia acreditar no valor da vida e na importância de cada ser humano, independente de credo ou origem.
Embora tenham se passado quase 150 anos, até hoje as influências do Preto Velho na cultura brasileira se estendem por diversas esferas artísticas e religiosas. Mesmo que desde 1988 o Cafundó, remanescente do quilombo situado na região de Sorocaba, em São Paulo, tenha deixado de ser um folclórico espaço físico de casinhas de barro e pau trançado, o lugar ainda é grande como um ambiente imaterial que se multiplica no ideário de quem se preocupa em preservar uma cultura pouco valorizada.
Além da interpretação inesquecível de Lázaro Ramos, é preciso destacar os papéis de Leona Cavalli, Leandro Firmino, Alexandre Rodrigues, Ernani Moraes, Luís Melo, Renato Consorte, Francisco Cuoco e Abrahão Farc. Outro grande atrativo de Cafundó é a trilha sonora de André Abujamra que a cada cena se mostra um exímio manipulador de emoções, introduzindo o espectador por viagens transcendentais. A rabeca entra na história como um recurso estilístico que pauta o tempo e os rompantes do acaso.
O declínio econômico de Paranavaí
Quando o desenvolvimento foi comprometido pela monocultura e ausência de políticas públicas
A história mostra que Paranavaí, na região Noroeste, poderia ser um dos municípios mais importantes do Paraná, no entanto, em função da falta de diversificação econômica e ausência de políticas públicas para o setor agrícola, a cidade entrou em declínio a partir de 1970.
Paranavaí teve um progresso exemplar até o início da década de 1960. À época, a cidade era vista como símbolo de progresso no Paraná, uma imagem que ganhou solidez em 1956, quando uma pesquisa da Associação Brasileira dos Municípios apontou Paranavaí como uma das cinco cidades com maior índice de desenvolvimento do país.
As consequências humanas
Contudo, como tinha um perfil essencialmente agrícola, baseado na monocultura cafeeira, a ex-Fazenda Brasileira experimentou um declínio sem precedentes. As primeiras geadas que castigaram as lavouras da região de Paranavaí e atingiram profundamente a economia local foram registradas em 1962 e 1964, de acordo com informações da Secretaria Nacional de Defesa Civil. “Na segunda geada, o prejuízo foi tão grande que tive que vender meu sítio. A partir do acontecido, nunca mais quis mexer com a cafeicultura”, revelou o pioneiro paranaense Orlando Otávio Bernal.
Para piorar, a intempérie voltou a devastar as propriedades do Noroeste Paranaense em 1969, destruindo pelo menos 80% da produção cafeeira regional. “Quando meu pai viu aquela camadinha fina de gelo sobre o cafezal, ele entrou em pânico. Nunca o tinha visto chorar daquele jeito, jogado sobre um pé de café. Perdemos tudo, não deu pra recuperar nada”, confidenciou o empresário Fabrício Gomes Soares. Dias depois, a mãe de Soares flagrou o pai se preparando para ingerir um rodenticida conhecido como chumbinho. Felizmente, conseguiu evitar o pior.
A mesma sorte não teve o pai da aposentada Catalina Prado Ruiz que tinha uma propriedade rural às margens da Rodovia BR-376. “Ele contraiu muitas dívidas com as geadas anteriores, então quando veio a mais forte, em 1969, não aguentou”, enfatizou Catalina com a voz calma e pausada, sem velar os olhos marejados. O homem foi encontrado morto, após um ataque cardíaco fulminante, agarrado à base de um cafeeiro.
O agricultor capixaba Orlando Brás de Mello, radicado em Paranavaí desde 1957, preferiu não citar nomes, mas contou que teve vários conhecidos que não superaram os prejuízos, se endividaram e cometeram suicídio. “Meu cunhado quase enlouqueceu. Ele pôs fogo no cafezal e num barracão enorme onde costumava estocar o café”, complementou.
As consequências econômicas
Como consequência econômica das geadas, o preço do café subiu, surgindo um ciclo de especulações que pareceu infindável. “A situação era preocupante demais, muito triste. Quase ninguém tinha ânimo pra continuar porque aqui a gente já tinha outro problema grave que era o solo empobrecido”, relatou o pioneiro cearense João Mariano, se referindo também ao surgimento das erosões hídricas que se intensificaram a partir dos anos 1960.
Com a queda da cafeicultura, que preservava um caráter familiar na região Noroeste do Paraná, houve grande abertura para a formação dos latifúndios, o que intensificou mais ainda as desigualdades sociais. Logo as lavouras começaram a ser substituídas por pastagens e, como a pecuária absorveu pouca mão de obra, milhares de trabalhadores rurais ficaram desempregados. “Que eu me lembre, quando deixei o trabalho na lavoura e não consegui nada na área urbana de Paranavaí, pelo menos da fazenda onde eu trabalhava e de outra propriedade vizinha mais de 200 pessoas foram embora pra Maringá”, disse o taxista Jurandir Romano de Paula.
No Noroeste do Paraná, entre as cidades mais prejudicadas pela intempérie estavam Paranavaí, Tamboara, Paraíso do Norte, Nova Aliança do Ivaí e Mirador que em 1960 representavam 1/3 de toda a produção agrícola regional, conforme registros do extinto Instituto Brasileiro do Café (IBC). Em 1970, a região de Paranavaí somou 336 mil habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dez anos depois, em 1980, perdeu quase 50 mil habitantes, somando 288 mil moradores.
Foi um retrocesso para a região que em 1960 contou com mais de 307 mil habitantes. “Em 1970, tive que fechar minha mercearia porque fazia mais de seis meses que estava trabalhando no vermelho. Teve mês que não vendi nada porque ninguém tinha dinheiro. Nem conseguia mais honrar os compromissos com fornecedor”, destacou o ex-comerciante Geraldo Marques.
Em 1980, a produção cafeeira do Noroeste Paranaense foi quase reduzida pela metade, caindo de 30 milhões de cafeeiros para 16 milhões. O solo frágil e comprometido pela falta de técnicas adequadas de plantio, manejo e cultivo fez com que o milheiro de pés de café rendesse apenas 27 sacas, quantia muito inferior as 150 da década de 1960, revelou estatísticas do extinto IBC.
Do melhor ao pior índice de desenvolvimento
Orlando de Mello frisou que a lavoura era o “carro-chefe” da economia regional de Paranavaí, por isso, o impacto foi tão grande. “Eu mesmo não tinha nenhum conhecido, amigo ou parente que trabalhasse com outra cultura que não fosse o café”, assinalou Jurandir de Paula. A falta de diversificação econômica deu ao Noroeste Paranaense reflexos muito negativos. Nos anos 1970, a região encabeçada por Paranavaí teve os piores índices de desenvolvimento do Paraná.
O que ilustra bem esse fato é uma pesquisa do IBGE que foi lançada em 1980 sobre industrialização e geração de empregos. A microrregião de Paranavaí ocupou a última posição, com uma ínfima contribuição estadual de 0,5% enquanto as regiões de Ponta Grossa e Londrina despontaram com 10,4% e 9,5%. “Na cidade, não tinha emprego, então a gente tinha que ir pra onde dava. Cheguei a passar uma temporada trabalhando em lavouras em Minas Gerais pra poder sobreviver. Tinha mulher e filhos pra sustentar”, argumentou o aposentado Bernardo Ricardi Proença.
Conforme a pecuária se desenvolveu, o homem se afastou cada vez mais do campo. Um estudo do escritor Paulo Marcelo Soares da Silva indicou que nos anos 1980, o gado já ocupava mais de um milhão de hectares na região de Paranavaí enquanto as lavouras mal ultrapassavam 180 mil. “Eu era acostumado a ver muitas plantações e muita gente trabalhando no campo. Isso acabou. O que a gente viu depois foi só boi e deserto”, desabafou Proença.

Paulo Marcelo apontou ausência de uma política oficial para o setor agroindustrial (Foto: Estúdio Guto Costa)
No livro “História de Paranavaí”, o escritor Paulo Marcelo levantou duas hipóteses sobre o declínio econômico de Paranavaí a partir de 1969. A primeira foi a ausência de uma política oficial para o setor agroindustrial. Já a segunda, a adoção de um sistema tributário centralizador que prejudicou os municípios da microrregião, inviabilizando o surgimento de novos incentivos fiscais.
Pesquisadores e pioneiros são unânimes em afirmar que o retrocesso de Paranavaí nos anos 1970 e 1980 teve raízes na supervalorização da monocultura. “Muita gente fez o mesmo depois com a pecuária. Mas o problema é que criar gado só beneficiou uma minoria, não teve um aspecto social, ao contrário da cafeicultura, apesar da exploração do trabalho rural ter surgido na nossa região logo nos primórdios da colonização”, avaliou o sociólogo Otávio Bernal Filho, acrescentando que os nordestinos foram os mais lesados pelas injustiças sociais que transcorriam no campo.
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