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O dilema do chouriço
Alexandre Dumas escreveu no “Grand Dictionnaire de Cuisine”, de 1873, que o chouriço de porco tem, em todo o caso, todas as más qualidades desse animal, e a maneira como é preparado o torna ainda mais indigesto. Permita-me discordar. Creio que o chouriço carrega a tradição sedimentada na centelha da barbárie, e esta não diz respeito às “péssimas qualidades” do suíno, mas sim do ser humano, embora isso não signifique que o faça amiúde conscienciosamente.
E a indigestão talvez seja conchavo da ferocidade e da teimosia projetando franca manifestação. Esqueça! Deixe me perguntar. Você já foi a uma pequena fábrica de chouriço? Ah! Normalmente o animal não é seviciado, morto e destrinchado tão distante do local onde se prepara o embutido – uma iguaria à base de gordura, sangue e pedaços de carne temperados com uma pequena diversidade vegetal. Vísceras! Vísceras! Entranhas! Cabidelas! Sortidas! Fornidas! Envolvidas…Tudo aquilo que nos enoja em seu estado natural, cruento, porém honesto.
Não parece-te um ritual? O sangue como elemento axial; aquele sangue soalheiro que verte como calor de água termal e torrente de bica de mina – sem igual. A tradição diz que é mais saborido quando colhido enquanto o animal respira, barafusta-se, agoniza e luta pela vida no tenro desconhecimento da impossibilidade. Quiçá, entrementes perguntaste: “Por que então me alimentaste? Me abraçaste? Deste-me um nome? O que fui para ti?” Pobre animal, nunca imaginou que a mão que afaga é a mão que apaga. Quem se importa? Quem come, pretere, omite, anui? Hã? Será? Veras?
Se o porco for morto sobre a mesma mesa em que o chouriço é preparado? Sem dúvida, sabor sui generis! “Tremendo!”, berram os lambe-beiços. Imagine só. Lanham as tripas do porco para embalá-lo em novas ou velhas tripas – orbiculares, unímodas. Talvez dele mesmo, talvez d’outros. Ou talvez artificiais caso o freguês não queira ter contato nu-a-nu com as “tripas” da vítima. Ah, alegórica sensibilidade…Claro, pelo menos não manualmente, no rostir de dedos. Já garganta abaixo é outra história, pois não?
“E se você estiver em uma ilha deserta, só você e um porco?”
— Me falaram que você é vegano.
— Sim…
— E isso significa que você não come nada de origem animal?
— Isso mesmo.
— E posso fazer a piada do peixe?
— Não seria muito original, creio eu…
— Ah! Ok…
— Mas e se você estiver em uma ilha deserta, só você e um porco?
— Por que um porco?
— Sei lá, porco, galinha, vaca, avestruz…
— Acho que seria lindo…
— Lindo?
— Sim…
— Mas e a comida? Você teria que comê-lo!
— Por quê?
— Por que só vocês dois estariam lá.
— E quem determinou isso?
— Hã? É uma hipótese.
— Isso significa que tudo desapareceria, as árvores, os frutos, a natureza, todos os tipos de vida, restando enigmaticamente eu e um porco?
— Claro que não.
— Certo. Então em que tipo de ilha isso seria possível? Simplesmente eu e um porco.
— Ah, cara, não complica, né?
— Diga aí, você come o porco ou não.
— Não, hein?
— Mas como você sobreviveria?
— Tem certeza que isso é uma ilha? Não está faltando mais nada para ser uma ilha? Vegetais, por exemplo? Que poderiam servir de alimento tanto para mim quanto para o porco. Se a minha alimentação fora de uma ilha é mais rica em carboidratos do que em proteínas, por que eu iria me preocupar prioritariamente em matar um animal para me alimentar? Você já percebeu o quão clichê é essa ideia de um suposto retorno a um estado pretensamente primitivo em estado de privação? Não estamos na Era do Gelo. Por que o ser humano perdido na natureza deve em primeiro lugar matar animais para se alimentar? Se eu me perdesse em território inuíte inabitado ou em algum lugar perdido ao norte de Oymyakon, talvez eu fosse obrigado a repensar a minha situação, mas qual é a probabilidade disso acontecer? Eu morreria de frio antes.
— Como você é chato, cara! Deus me livre! Esqueça! Esqueça!
— Não, sou apenas vegano mesmo.
Você já colocou a mão dentro da boca de um porco criado para consumo?
Você já colocou a mão dentro da boca de um porco criado para consumo? Se fizer isso, você pode perceber um leve aclive. Isto porque normalmente os dentes dos leitões são removidos, serrados ou desbastados precocemente. Sim, eles nascem com oito dentes, e alguns são extraídos e outros encurtados rente à gengiva porque segundo normas industriais isso pode colocar em risco o próprio animal, a mãe durante o processo de amamentação e mais tarde aqueles com quem ele convive.
Mas se esses dentes são inúteis ou nocivos porque eles nascem com eles? Por que durante milhares de anos ninguém se preocupou em remover os dentes dos porcos selvagens? Basicamente, isso não faz muito sentido fora de uma contextualização mercadológica. Porcos não são animais estúpidos. Na realidade, eles são mais inteligentes do que cães. A verdade é que muitas vezes os dentes são removidos simplesmente porque, em algum momento, os animais podem enlouquecer e consequentemente agredirem uns aos outros, chegando até mesmo a praticar canibalismo.
Sejamos honestos, se uma pessoa vai se alimentar de porcos não vejo problema nenhum em divulgar tal informação. Que sejamos responsáveis por aquilo que consumimos, mesmo que isso signifique arrancar dentes de animais dóceis, sem anestesia e talvez até usando alicates. Então quando alguém compra bacon, pernil, bisteca, copa-lombo, pancetta, ossobuco, maminha, costela, entre outras partes, sim, está a financiar tais ações. Ademais, sabemos que a verdade é que a maioria não se preocupa, de fato, com a origem do que consome.
Sobre a linguiça suína
Tolstói: “O porco gritava de um modo desesperado, com gritos que pareciam humanos”
Entramos numa aldeia, e vimos, com perdão seja dito, um porco engordado, branco rosado, que pegaram em uma casa para matá-lo. O porco gritava de um modo desesperado, com gritos que pareciam humanos. No momento preciso que passávamos por ali, começaram a degolá-lo.
Um homem cravou-lhe a faca na garganta. Os grunhidos do porco foram mais fortes e agudos; o animal escapou, mas o seu sangue escorria. Sou míope, e não vi todos os detalhes da cena: vi unicamente um corpo rosado como o de um homem e ouvi os grunhidos desesperados. O carroceiro observava tudo aquilo sem afastar a vista. Pegaram de volta o porco, o derrubaram e o submeteram.
Quando cessaram seus gritos, o carroceiro lançou um profundo suspiro:
— Como pode Deus permitir isso?
Tal exclamação demonstra o profundo asco que inspira ao homem a matança. Mas o exemplo, o costume da voracidade, a afirmação de que Deus admite tais coisas, fazem com que os homens percam por completa esse sentimento natural.
Liev Tolstói, O Primeiro Passo, página 20, publicado originalmente em 1883, como prefácio de A Ética da Dieta, de Howard Williams.
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Quando um garoto assume o papel de um porco no matadouro
Lexington, um jovem que cresceu como vegetariano estrito, vai a um restaurante e experimenta um prato baseado em repolho e carne de porco. Ele nunca tinha comido aquilo e fica maravilhado com a experiência, tanto que decide descobrir a origem da carne. Então viaja até um matadouro, onde assiste o sofrimento dos porcos preparados para o abate.
O primeiro porco é mantido imóvel por meio de uma corrente que envolve seus pés. E essa corrente é presa a um cabo que se move para cima e para baixo. Logo o porco é arrastado enquanto emite grunhidos desesperados ao longo da linha de abate. Apesar da crueldade, Lexington acha o processo fascinante, enquanto os funcionários da linha de produção se mostram entediados.
De repente, por um descuido, uma das pernas do rapaz fica presa a uma corrente e ele é arrastado por um cabo. Os funcionários não se importam, indiferentes ao processo que se repete diariamente. A descrição do que acontece com Lexington é extremamente gráfica e contempla todo o processo de abate. A única diferença é que há um humano no lugar de um porco.
E o maior apelo da história subsiste na associação que o escritor Roald Dahl faz entre suínos e humanos. Sua abordagem vai ao encontro da ciência, que qualifica os porcos como animais inteligentes. Porém, a diferença mais significativa está na incapacidade de terem pensamentos abstratos, serem esperançosos ou recorrerem a Deus. E por isso sua dor é mais avassaladora do que a humana, segundo a própria obra.
Sobre Pig, obra do britânico Roald Dahl publicada em 1960. Ao escrevê-la, o objetivo do escritor era mostrar como a violência humana é legitimada, aceita como parte de um “processo natural”.
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O menino que matava porcos
Quando eu tinha oito anos, viajamos para Batayporã, no Mato Grosso do Sul. Lá, conheci outros familiares do meu avô. Mas naquela viagem só uma pessoa me chamou a atenção – um primo de terceiro grau. Ele tinha sete anos e olhos avermelhados.
Na fazenda, o vi de longe, expulsando alguns animais que circulavam pela casa principal. Me falaram que ele matava porcos desde os cinco anos, e que gostava de eviscerá-los com um punhal resguardado por gerações. “Mato mesmo!”, confirmou o menino rindo e ouvindo o comentário do sobrinho do meu avô.
Caminhando pela fazenda, eu evitava ficar sozinho, e sempre olhava ao meu redor, na tentativa de saber se o menino de olhos avermelhados estava por perto. Criança, eu nunca tinha visto ou ouvido falar de alguém que tivesse matado um porco.
Com o cair da tarde, e o sol despontando baixo e avermelhado no horizonte, assim como os olhos do menino, fiquei sabendo que meus pais pretendiam passar a noite na fazenda. Me aproximei de minha mãe e a questionei, garantindo a nossa partida: “Não quero dormir aqui. Se esse menino mata porco, um bicho que não fez nada pra ele, quem garante que ele não é capaz de fazer o mesmo comigo de madrugada?”
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