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Um candidato que desconsidera valores humanos e sociais
Bolsonaro, um candidato que desconsidera valores humanos e sociais, que faz piadas sobre tortura, negros, gays e quilombolas; que acha normal desrespeitar mulheres; que não vê palestinos como cidadãos; que diz que “índio” não tem que viver no mato, mas sim aprender a se virar na cidade (não respeitando valores culturais); que fala em destruir o meio ambiente com a maior naturalidade possível, alegando que temos “áreas de proteção ambiental demais”; que chama caça de “esporte saudável”; que é o primeiro candidato à presidência do Brasil recente a ter apoio massivo das bancadas mais perigosas do congresso (BBB), que sempre colocaram os interesses pessoais e econômicos muito acima dos interesses humanos. Como isso pode ser aceitável?
Nada disso é ser sincero, verdadeiro ou do tipo que “fala o que tem pra falar”, mas sim apenas uma figura arbitrária que ao longo de sua vida não aprendeu a lidar com a pluralidade; alguém que não tem um arcabouço cultural sobre a premência de valores sociais porque esteve sempre imerso em vaidades, veleidades e em uma realidade unilateral. Estou falando de um candidato que foi despejado pelo Exército, que se exalta e fica nervoso diante de contrariedades, que em sua ficha militar consta: “Tinha permanentemente a intenção de liderar os oficiais subalternos, no que foi sempre repelido, tanto em razão do tratamento agressivo dispensado a seus camaradas, como pela falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos.”
Basicamente, uma pessoa que não tem perfil para ser o presidente do quinto maior país do mundo. Como um sujeito que desconsidera valores básicos como o respeito, as diferenças, tem condições de melhorar a realidade de um país? Se você não respeita as diferenças e as margens sociais de uma nação você está fadado a continuar sacrificando pessoas em benefício de interesses que você, na sua ignorância ou indiferença, considera mais urgentes.
Nas sociedades contemporâneas mais evoluídas, o tratamento dispensado às chamadas minorias é sempre um indicativo dos níveis de progresso de uma nação. Porque há um entendimento de que se você respeita “um diferente” você naturalmente respeita “um igual”. Não existe boa economia que beneficie toda uma população quando valores sociais são desconsiderados. Não existe boa economia se isso ofusca ou suprime outros valores. O Brasil precisa é de políticas econômicas que se voltem para modelos de referência como aqueles defendidos pelo sueco Olof Palme, modelos econômicos que consideram os valores humanos e sociais na formulação de um plano econômico, valores que combinam economia justa com bem-estar social.
O que vejo nos discursos e nas propostas do candidato, que me parecem vagas ou confusas, é apenas interesse em sacrificar todos ou quaisquer valores visando elevar a economia sem considerar de que forma isso pode efetivamente beneficiar quem mais precisa, não somente uma pequena parcela da população. Vamos considerar que o candidato consiga elevar a geração de renda. Se a apropriação dessa renda continuar, por exemplo, nas mãos dos 10% mais ricos, não há como alcançar mudanças substanciais, e pelo discurso de desconsiderações de outros valores, não tenho dúvida de que é isso que vai acontecer. O Brasil é um país que só vai ser capaz de melhorar quando a social-democracia for levada a sério.
O preconceito e o preconceituoso
Descartes dizia que um dos maiores desafios do ser humano é se livrar dos preconceitos com o qual cresce e é educado, até porque o preconceito, como um juízo mecânico aprendido, só deixa de ser desconhecido a partir do momento que alguém reconhece a sua existência. Muitas pessoas que são preconceituosas, mesmo crentes de que não são, recobrem o preconceito com uma couraça de tradição, normalização e demérita transigência – pretextos de todos os tipos para justificar suas ignorâncias, vaidades, veleidades e iniquidades.
Um sujeito preconceituoso jamais dirá que é preconceituoso se a ele o preconceito não é preconceito. Ele nega não apenas que seja preconceituoso, mas a própria essência e existência do preconceito. Assim como rejeita a plena moralidade para reduzi-la à meia moralidade, ou chamada moralidade de conveniência, ou mesmo imoralidade. Nisso subsiste algo morbígero, que é naturalização do que não deveria ser naturalizado.
E assim, incorre-se em prejuízos de montas gerais, consequências mais destrutivas na coletividade do que na individualidade, porque o preconceito é tão deletério que sobrevive à morte e se multiplica na celeridade do desconhecimento, na extensão de seus tentáculos, na ignorância e na ausência de valores humanos, assim ganhando vozes tão altas que muitas vezes nem toda a boa e justa informação possível é capaz de corrigir isso. Provavelmente porque até mesmo a assimilação do conhecimento em direção oposta ao preconceito exige uma sensível predisposição. E a verdade é que quando interesses mesquinhos são supervalorizados, às vezes resta-nos, não por opção, mas sim por imposição, as trevas.
Os equívocos no discurso de Anderson França contra os veganos
Sobre veganismo, França revela incompreensão, talvez por pré-conceito baseado em recortes unilaterais
Anderson França é um escritor com muitos seguidores no Facebook. Admito que até pouco tempo atrás eu não sabia quem ele era, até que alguém me mostrou algumas de suas publicações fazendo críticas e oposição aos veganos e ao veganismo. Antes de escrever este texto, decidi dar uma rápida olhada no trabalho dele. Me parece um autor com uma perspectiva interessante da vida e do mundo, que tem uma preocupação com a questão da justiça racial e social; que não recorre a subterfúgios para abordar a realidade como é, de forma direta e clara. Porém, quando publica alguma crítica a veganos ou ao veganismo revela falta de entendimento do assunto, talvez por pré-conceito baseado em recortes unilaterais.
No dia 6 de fevereiro, ele publicou um texto declarando que “quando veganos dizem ‘humanos’, eles não querem assumir a responsabilidade dos humanos BRANCOS pelo consumo em massa de carnes. Eles mandam um ‘humanos’ pra tu pegar no ar.” Desculpe-me, mas essa interpretação não condiz com a realidade. O uso do termo “humanos” se sustenta em uma questão óbvia de semântica e literalidade. O veganismo é sobre nossas responsabilidades enquanto espécie, independente de cor, etnia ou qualquer outra coisa. Não se trata de amortização de responsabilidades, e isso parece incomodá-lo.
A questão é que se dizemos que os “brancos são os grandes culpados pela exploração de animais”, isso significa então que está tudo bem se os outros continuarem explorando e consumindo animais porque pretensamente a responsabilidade deles seria menor. Não, isso não é coerente e justo. Do ponto de vista do veganismo, qualquer ser humano envolvido na desnecessária exploração e objetificação animal contribui com esse sistema, de forma consciente ou inconsciente, já que atua como um reforçador dessa trivialização em menor ou maior proporção. Se me alimento de animais, não interessa a qual grupo étnico eu pertenço, porque evidentemente ajudo a endossar esse sistema exploratório.
Sim, “os brancos” foram os maiores responsáveis pela introdução do sistema industrial de criação de animais após a Segunda Revolução Industrial, até por uma questão óbvia de maior controle dos meios de produção. Não creio que isso seja novidade para vegetarianos e veganos. Não conheço ninguém que negue isso. Contudo, em menor ou maior nível, praticamente todos os povos humanos contemporâneos estão envolvidos na exploração e na objetificação animal.
O que muda basicamente são as motivações dessa exploração e desse consumo. Há minorias, como os inuítes e alguns outros povos nativos que vivem em áreas remotas, que fazem isso, de fato, por uma questão de sobrevivência. E há populações maiores, de bilhões de pessoas, às quais pertencemos, que estão nessa por fatores históricos e culturais. Afinal, desde muito cedo, nós, assim como nossos ancestrais, somos motivados a consumir animais porque estamos imersos na ilusão de que se alimentar de seres não humanos é essencial, por força de uma propaganda que visa apenas o lucro e que se fortaleceu a partir do início do século 20.
Segundo Anderson França em 18 de março de 2017: “São 9 da manhã, e Maria, vó de 4 filhos, pede pra um deles ir no mercadinho comprar uma caixinha de Nuggets. Ou como minha mãe, que no aperto, era linguiça da mais barata, UMA, pras bocas dividirem com arroz. Seco. Ou na família de milhões de pessoas, onde ‘a opção da proteína’ não é uma opção, as pessoas não comem carne porque querem, veganos.” O exemplo acima se enquadra na frágil crença na necessidade da proteína de origem animal. A população humana tem necessidades proteicas bem modestas, com exceção de atletas e praticantes de atividades físicas de alta intensidade. Se Maria ou a mãe de Anderson França tivessem descartado os nuggets ou a linguiça, a refeição teria sido mais saudável. Mas não o fizeram por costume e desconhecimento, o que é muito comum.
Negamos que, por falta de informação ou não, muitos comem animais porque gostam ou por hábito, e até mesmo quando escolhem as chamadas “piores opções” ou as “opções mais baratas”. Afinal, que tipo de nutriente essencial à vida alguém pode obter consumindo empanados, linguiças e salsichão? Não seria um gesto de amor ou altruísmo alertar as pessoas sobre os malefícios desses alimentos em vez de defender esse consumo apenas para fazer oposição ao veganismo?
E por que as pessoas insistem no discurso que devemos comer arroz, feijão e carne? Mero costume, e a carne quase sempre é destacada até com mais importância do que outros alimentos vegetais nutritivos e mais baratos. Duvida? Procure por promoções em feiras e mercados. Eu, por exemplo, compro mais de 10 quilos de vegetais com R$ 15 a R$ 20 em promoções semanais; e são alimentos que suprem diversas das minhas necessidades nutricionais. Acha isso impossível? No Facebook, há grupos e páginas como Veganismo Popular, Veganos Pobres Brasil, Vegana Pobre e outros que auxiliam quem acredita que não tem condições financeiras para ser vegetariano ou vegano. Os participantes podem inclusive interagir com moradores da mesma cidade, tirarem dúvidas, etc.
Quando me falam da impossibilidade em ser vegano, costumo contar a história do poeta sírio cego Al Ma’arri que viveu no século XI e enfrentou grandes períodos de miséria em sua vida. Ele se alimentava principalmente de feijões e teve uma velhice tranquila. Al Ma’arri não consumia nada de origem animal. Então como alguém pode dizer que hoje é impossível não se alimentar de animais? Que hoje é difícil ser vegano se há centenas de anos outros trilharam esse caminho?
Em crítica aos veganos, Anderson França declarou em 18 de março de 2017 que “O agricultor SOCA veneno na fruta, e você compra, no seu supermercado da Zona Sul, após uma sessão de meditação no Jardim Botânico, tudo em harmonia, coloca na egobag, vai de bicicleta, passa sem falar com o porteiro, continua sendo um/uma egoísta que, agora, acha que é o momento de dizer pra milhões de pessoas, o quanto você estava certo. Que vida mesquinha, caras. Sai desse quadrado. Milhões de trabalhadores comem mal, comem comida processada, porque o tempo que gastam no trânsito, no trem, ônibus, BRT, Kombi, ida e volta, e o tempo no trabalho, lavando, descascando, embalando a fruta que você come depois do Ioga, isso tudo tira deles o momento com a família, tipo Fátima Bernardes no comercial com sorriso de orelha a orelha, servindo um prato com comida de plástico feita na agência de publicidade, com carininha, cenorinha, poesiazinha.”
Bom, eu não sei em quem o autor se baseou para fazer tal afirmação, mas é estranho usar um exemplo tão caricato e pejorativo para se referir a veganos de forma generalizada. Quem se preocupa com vidas não humanas é egoísta? Todos os veganos vivem na “Zona Sul”? Todos os veganos ignoram o porteiro? Todos os veganos têm tempo de sobra? É importante entender que veganos também lutam contra o uso de agrotóxicos, que por sinal é consumido em maior quantidade por quem consome animais do que por quem não consome, já que os animais criados para consumo se alimentam de enormes quantidades de vegetais contaminados com defensivos agrícolas, para não dizer pesticidas, praguicidas ou biocidas. Afinal, o ser humano tem predileção por matar e consumir animais herbívoros, já que a ideia de consumir um animal que comeu outro animal o enoja, a não ser quando ele é o próprio comedor de animais, o que é um ruidoso paradoxo.
Sobre as pessoas se alimentarem mal, como citado pelo escritor, creio que tenha mais relação com desinformação do que com tempo. Não considero a falta de tempo uma justificativa válida para não se alimentar um pouquinho melhor. A maioria dos veganos que conheço têm uma rotina bem atribulada. Há aqueles que saem de casa às 4h e retornam à noite. Quando o tempo é escasso, dedicam algumas horas do final de semana a prepararem alimentos e congelá-los para consumirem no decorrer da semana. Ou então improvisam com alimentos de rápido consumo, até mesmo frutas. Sou da seguinte opinião, se você não se importa com a sua própria vida, e prefere sabotá-la, siga em frente, mas saiba que talvez amanhã você não esteja aqui para amparar seus filhos e outros familiares. Não há nada que justifique o consumo de animais no mundo em que vivemos, muito menos o pretexto da saúde.
Também me chamou a atenção uma publicação de Anderson França do dia 27 de junho de 2017 em que ele faz publicidade de um prato de “salmão com arroz basmati e legumes” por R$ 38 + taxa de entrega. Partindo de alguém que publica textos sobre acessibilidade e critica o veganismo por ser um “movimento elitista” e inacessível, reconheço que foi uma estranha surpresa. Fiquei imaginando quantas frutas, legumes, tubérculos e leguminosas eu poderia comprar com R$ 38 + taxa de entrega. Daria para alimentar ocasionalmente vários veganos. Provavelmente, eu compraria mais de 30 quilos de vegetais em um bom dia de promoção, e sem incentivar a exploração animal ou desconsiderar o risco de intoxicação por consumo de salmão criado em cativeiro e colorido artificialmente.
Outro ponto de reflexão é que a idealização de “qualidade de vida” associada ao consumo de “carnes nobres”, que parte de um equivocado senso comum, e é reproduzida por tanta gente, é a mesma dos glutões burgueses britânicos da era vitoriana, dos abastados da Grécia Antiga e dos imperadores romanos, que faziam da carne um símbolo de ostentação, de segregação social. Sendo assim, será que é coerente o oprimido buscar tomar parte em hábitos perpetuados a partir de uma consciência opressora? Não seria isso uma contradição? Ou será que o discurso de oprimido deve girar apenas em torno do que não diz respeito às nossas próprias inconsistências?
Anderson França enfatizou também que veganos brancos fazem parte de “uma civilização baseada na conquista e submissão de outros povos, e criam narrativas que sempre os coloca no centro.” Como veganos podem se colocar no centro se eles lutam contra o antropocentrismo e o especismo? Tomar para si o protagonismo de algo pode ser uma falha humana, mas sem relação com ser vegano. Uma rápida consulta sobre o conceito de veganismo rebate essa concepção não apenas incorreta como capciosa.
Eu já acredito que ao defender o consumo de animais o autor está endossando exatamente o que critica: “a civilização baseada na conquista e submissão de outros povos”. Se uma pessoa financia esse sistema, usufruindo do que ele oferece, ela tem responsabilidade sobre isso, não importando sua cor ou etnia, já que quando falamos em objetificação ou coisificação visando lucro o que importa é apenas uma coisa – números, tanto faz a cor ou etnia de quem está consumindo ou pagando.
Segundo Anderson França sobre o “pensamento eurocentrado” e o veganismo em 6 de fevereiro: “Visa manter os privilégios do sujeito branco, e de seus descendentes. Portanto, não seria demais revisitarmos o que estamos chamando de SISTEMA nos últimos 2 mil anos, uma vez que esse sistema passa por cima de outros para manter a sua narrativa. É aí que mora o perigo. Não é nem sobre o que você põe na sua boca ou no seu corpo, ou porque ‘ama’ animais, ou porque entende que isso seria justo com o ecossistema. É porque, por trás disso, ainda persiste a mão dessa cultura sobre outras.”
Veganos podem ter atitudes equivocadas como qualquer pessoa que luta por outra causa. No entanto, é importante ter o cuidado de não reproduzir inverdades, dando a entender que o veganismo é um movimento de “perpetuação do poder dos brancos”. Em 1944, o movimento vegano surgiu sim e formalmente por iniciativa de um inglês, logo caucasiano, chamado Donald Watson. Sim, em uma realidade europeia, mas por interesse de um carpinteiro que vivia na pequena Keswick, e que não tinha qualquer pretensão financeira em criar um movimento, mas apenas um anseio de fazer com que outras pessoas, assim como ele, passassem a reconhecer os animais como sujeitos de uma vida. Watson não pertencia a qualquer elite e se dedicava a isso voluntariamente.
Não vejo sentido em rivalidades desnecessárias que tencionam desmerecer uma causa simplesmente porque do alto de nossas predileções individuais não nos interessa porque não são sobre nós, mas sim sobre outras espécies. Todo tipo de exploração é tema de grande urgência se envolve vidas imersas em um universo de desconsideração. E nesse momento, o mais importante talvez seja um outro olhar para além do que chamamos de “nossas prioridades”.
Há muitas pessoas de causas humanitárias, e me incluo entre elas, que se tornaram veganas e ativistas dos direitos animais. O veganismo, como uma questão de justiça social não concorre com outras causas. Muito pelo contrário. Sobre o veganismo ser elitista, sim, isso é inegável se partirmos de uma perspectiva de acesso à informação e oferta de produtos industrializados. Há produtos que realmente são caros, até porque a oferta corresponde à demanda. Porém, é possível viver muito bem sendo vegano sem consumir esses produtos.
Para reforçar a minha contrariedade em relação a esse discurso do Anderson França, de que o veganismo é inacessível, cito o exemplo de Thallita Xavier, autora do artigo “Como é ser vegana e favelada”. Thallita inclusive ministra palestras simplificando o veganismo, mostrando como ele é facilmente praticável – bastando querer. Anderson França aparenta desconhecer a existência do Movimento Afro Vegano e da Feira Afro Vegan, realizada no Rio de Janeiro, e que tem motivado a criação de outras feiras nos mesmos moldes em outras capitais brasileiras.
O escritor ignora também que a defesa dos direitos animais não é sobre privilégios para não humanos, mas sim sobre o direito à vida, o direito de não sofrer por intervenção humana. Veganos têm o claro entendimento de que os animais são sencientes, conscientes e inteligentes; e não existem para nos servir, já que isso demanda privação, sofrimento e morte. Infelizmente, matamos por ano cerca de 60 bilhões de animais terrestres e pelo menos um trilhão de animais marinhos. Isso deveria ser aceitável? É um motivo bastante justo para abdicar desse consumo.
Sempre que me deparo com alguém publicando algo contra o veganismo, imagino se essa pessoa tem ideia do impacto de seu discurso; se ela sabe a quem está beneficiando. Por quê? Porque veganos lutam contra a desvalorização da vida animal, e quem se empenha em desqualificar o veganismo, dependendo do discurso, pode contribuir involuntariamente com quem realmente se beneficia disso. Um exemplo? Muitas pessoas que dizem lutar por justiça social ignoram o fato de que a criação de animais para consumo e a produção de alimentos para nutrir esses animais movimenta muito dinheiro no mundo todo.
Além disso, fora as consequências para os animais, há também a comprovada agressão ao meio ambiente, como registrada na Amazônia, onde a pecuária responde por 65% do desmatamento, invadindo inclusive áreas protegidas, de acordo com o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia. Creio que não seja nenhuma novidade que grandes produtores e empresas desse ramo buscam favorecimento e flexibilização legal para crescerem e lucrarem cada vez mais. Então, o que eles fazem? Eles patrocinam políticos ou até mesmo se lançam na política para legislarem em causa própria – claramente perenizando as desigualdades sociais. E nesse cenário, quem são os maiores prejudicados? A população humana, os animais e a natureza.
Os perigos da generalização
Na terça-feira, um imigrante sírio foi ameaçado no Rio de Janeiro por um homem enquanto vendia esfirras. “Vai embora do meu país, sai do meu país. O Brasil está sendo invadido por esses homens bomba que matam crianças e adolescentes”, disse um homem segurando um pedaço de pau, e que recebeu apoio de transeuntes. Os caras não deixaram o homem continuar trabalhando e ele teve que sair do local.
Hoje em dia, parece que o perigo já começa quando você se refere a um país como “seu”. E como mostra a história, pessoas facilmente influenciáveis tendem a cair mais facilmente nesse tipo de armadilha falsamente travestida de patriotismo. Realmente, há situações que ilustram um ideia de “tempos sombrios”. Generalizações já trouxeram consequências bem desastrosas.
“Você não pode, você é nortista”
Os nordestinos que chegaram no Noroeste do Paraná até a década de 1950, geralmente atuavam como colonos nas fazendas de café. E como não havia muito lazer na área urbana, e se houvesse também não havia dinheiro o suficiente pra gastar com isso, as festas eram improvisadas no campo. Quando um nordestino convidava uma moça para dançar nos bailes, alguém não raramente interferia e dizia: “Você não pode, você é nortista.”
Cortando o cabelo
Enquanto um camarada cortava o meu cabelo, ouvi um cara falando alto na sala ao lado. Era um desses sujeitos que sempre se destacam por falar num tom tão hiperbólico que se torna praticamente impossível não ouvir a conversa.
Na realidade, não sei se posso considerar o que ouvi uma conversa, pois parecia mais um solilóquio, já que eu não ouvia o cabeleireiro que o atendia se manifestando. Cinco minutos depois, esse homem começou a esbravejar que os Estados Unidos, Inglaterra, França e Alemanha deveriam se juntar para explodir o Oriente Médio, já que esses “povos estranhos” que espalham o mal estão “infestando” inclusive o Brasil.
No momento em que ele disse isso, coincidiu do camarada me pedir para acompanhá-lo até a outra sala, para lavar o meu cabelo. Quando me levantei e passei pelo orador, ele arroxeou, começou a gaguejar e, antes de articular uma nova frase, parou de falar. Ele não disse mais nada até a hora em que fui embora.
Quando Antunes Filho chocou o Brasil
Antunes Filho chocou o Brasil em 1969 quando deu ao ator Zózimo Bulbul um grande papel no filme “Compasso de Espera”. Na obra, Zózimo beija uma mulher branca. Aquela foi a primeira vez que os brasileiros viram um homem negro beijando uma mulher branca em um filme nacional. A obra gerou tanta comoção que descortinou a propaganda do Brasil como um país onde supostamente se vivia a democracia racial.
O que aprendi frequentando a periferia
É um erro analisarmos ações que não são nossas a partir do nosso ideal de vida
Por meio de um amigo, o artista plástico Jesus Soares, comecei a conhecer melhor a periferia em 2009. Desde então, devo dizer que aprendi muito. Tem sido uma grande oportunidade de entendimento, sabedoria e desenvolvimento moral e ético. Gostei tanto da experiência que em 2014 produzi um documentário sobre a história da Vila Alta, um dos bairros mais pobres e marginalizados de Paranavaí, no Noroeste do Paraná.
Ao longo dos anos, conheci muitas crianças e adolescentes naquele lugar. E logo que comecei a observar seus hábitos e registrar suas experiências de vida, reconheci o balaio cultural que é a periferia. Na Vila Alta, os jovens têm linguagem própria, uma mistura curiosa de sotaques e gírias do Sul e do Sudeste do Brasil, além de neologismos tipicamente locais, o que renderia um bom trabalho de pesquisa em linguística.
Lá, os moradores buscam meios de se destacarem. Se não através da educação formal e do trabalho, pelo menos esteticamente. Crianças, adolescentes e jovens adultos pintam os cabelos com cores chamativas, fabricam brinquedos e maquininhas de tatuagem – se tatuam à sua maneira, personalizam os próprios tênis e roupas, e criam adereços jamais vistos em qualquer outro lugar, como anéis, pulseiras e colares baseados em matérias-primas inimagináveis. Também fazem arte com barbante para colocarem nos quadros das bicicletas e cantam músicas próprias sobre a realidade da periferia, só para citar alguns exemplos.
Interpreto tudo isso como consequência de um anseio. Eles não querem apenas viver, mas existir. Desejam respeito e reconhecimento, e acreditam que isso só pode ser alcançado se fizerem algo que a maioria não faz ou tiverem algo que a maioria não tem. Há muito tempo tenho notado adolescentes da periferia que sonham com roupas e calçados caros, mesmo que isso signifique gastar a maior parte do salário. E sem dúvida é uma meta normalmente depreciada por quem não faz parte daquele contexto.
Eu, por exemplo, venho de uma realidade diferente, onde roupas e calçados nunca significaram nada – cresci sem me importar com marcas. E só depois de adulto comecei a entender melhor porque jovens da periferia pagam tão caro em alguns bens. E quando penso nisso, sempre me recordo de uma situação que vivi na infância. Um dia, notei que um dos colaboradores da minha mãe, morador da periferia, usava um tênis recém-lançado que vi num comercial de TV, e aquilo me surpreendeu:
“Nossa! Que caro! Ele deve gostar muito de tênis”, pensei. Descobri mais tarde que o rapaz usava um caro par de tênis não apenas por gostar de tênis, mas porque era um meio de se destacar, de destoar da maioria. No universo dele, o tênis representava o mesmo que um carro para alguém de outro contexto social. E isso ajudava a elevar a sua autoestima.
Ponderando sobre o assunto, vejo como somos falhos ao julgar escolhas alheias, principalmente de quem vive na periferia. Afinal, todo mundo já ouviu uma pessoa criticando alguém por ter pagado tão “caro” em algo. Acho que se de algum modo aquilo proporciona algum bem-estar, que assim seja, é isso que importa, até porque não sabemos o que representa para o outro. É um erro analisarmos ações que não são nossas a partir do nosso ideal de vida. O mundo é diverso, e parece-me que temos dificuldade em aceitar o fato de que ele não se resume à universalização de nossas crenças e inclinações.
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Como o vegetarianismo entrou na vida de Franz Kafka
“Agora posso olhar para vocês em paz. Eu não como mais vocês”, disse aos peixes no aquário
Um dos escritores mais influentes do século 20, o tcheco Franz Kafka, famoso por clássicos intrapessoais como A Metamorfose, O Processo e Um Artista da Fome, é um exemplo de ser humano que, contrariando todas as expectativas, se tornou vegetariano ainda na juventude. Seu pai, Hermann Kafka, vinha de uma linhagem de açougueiros que comercializavam carnes kosher. E foi justamente por causa dessa herança cultural que em 1910 ele ficou encolerizado quando soube que o filho não se alimentaria mais de animais.
Um dia, depois de se tornar vegetariano estrito, Kafka passeava em Berlim acompanhado da namorada do seu melhor amigo – Max Brod. Ele observou alguns peixes em um aquário e disse: “Agora posso olhar para vocês em paz. Eu não como mais vocês.” Declarações como essa podem ser encontradas na biografia que Brod escreveu sobre o amigo e publicou em 1937, baseando-se em cartas e diários.
O escritor tcheco comparava os vegetarianos aos primeiros cristãos, destacando que eles também eram perseguidos e insultados na sala de jantar. Apesar dos infortúnios, ele anotou em seu diário em dezembro de 1912 que não poderia estar mais satisfeito com a sua digestão depois de um jantar vegetariano. Tudo indica que Kafka conheceu o vegetarianismo por meio do seu tio e médico Siegfried Löwy.
Inspirado no livro Mein System, do atleta vegetariano dinamarquês Jorge Peder Müller, que ministrou uma palestra em Praga em 1906, ele adotou outros hábitos saudáveis, como a prática de atividades físicas. Também aprendeu a mastigar corretamente, seguindo os ensinamentos do especialista em alimentação saudável Horace Fletcher, conhecido como “O Grande Mastigador”.
De acordo com Jan Stastny, que ministrou a palestra “Franz Kafka – Vegetarian Activist” no Congresso da União Vegetariana Internacional em Dresden, na Alemanha, em 2008, quem também ajudou Kafka na transição foi o alemão Moriz Schnitzer, da União Vegetariana Internacional, que recomendou que ele seguisse uma dieta vegetariana, tomasse ar fresco, dormisse com a janela aberta e trabalhasse com jardinagem nas horas vagas. Kafka seguiu todas as sugestões. Sempre que terminava o seu expediente como advogado, ele atuava como ajudante de jardineiro, e sem cobrar nada em troca.
Apesar de não existir nenhuma prova de que ele era um membro da União Vegetariana Internacional, o escritor aparece na edição de junho de 1911 da revista alemã Reformblatt como um doador de uma campanha antivivissecção. “Seis meses depois, o vegetarianismo, aliado aos exercícios físicos, não apenas curou o meu sistema digestivo como permitiu que eu não tivesse mais vergonha do meu corpo ao frequentar a piscina pública”, escreveu em seu diário.
Na comemoração de ano-novo de 1911, ele jantou schwarzwurzeln, um tipo de raiz comestível conhecida no Brasil como escorcioneira, com espinafre e 250 ml de suco de frutas. Era hábito comum de Kafka falar sobre a sua alimentação cotidiana em cartas enviadas a amigos e familiares. “Estou comendo repolho recheado, sopa de frutas e bebendo suco de oxicoco”, contou à sua irmã Elli em 1911. Sua empolgação aumentava a cada dia. Em 1912, ele revelou em seu diário que gostaria de fundar uma organização de cura pela natureza.
Quando entrava de férias ou precisava se internar para tratamento médico em algum sanatório, Kafka sempre escolhia lugares com opções para vegetarianos estritos. E por isso teve muitos conflitos com a família, principalmente com o pai. O novo estilo de vida incomodava tanto Hermann que por meses ele se negou a olhar para o filho durante o jantar.
Sobre o vegetarianismo, não há dúvidas de que a escolha do jovem Franz foi motivada pelo seu frágil estado de saúde. Mesmo assim, Kafka daria grandes demonstrações de que a sua ética também tinha peso sobre a sua decisão. A maior prova disso é que frequentemente ele escrevia sobre a natureza e o estado de consciência dos animais – cães, chacais, ratos, cavalos, bois e toupeiras, entre outros.
Um exemplo é o conto Ein Bericht für eine Akademie (Um Relatório para a Academia), de 1917, que conta a história de um macaco que aprende a se comportar como um ser humano para fugir do cativeiro. Nesse ínterim, o animal escreve para a academia sobre a sua transformação.
“Quando em Hamburgo fui entregue ao primeiro adestrador, reconheci logo as duas possibilidades que me estavam abertas: jardim zoológico ou teatro de variedades. Não hesitei. Disse a mim mesmo: empregue toda a energia para ir ao teatro de variedades; essa é a saída. O jardim zoológico é apenas uma nova jaula, se você for para ele, estará perdido”, narra em Ein Bericht für eine Akademie.
Entre as mais surpreendentes experiências vividas por Kafka está uma registrada em outubro de 1918, quando ele contraiu a nefasta gripe espanhola, epidemia que dizimou aproximadamente 100 milhões de pessoas no mundo todo. Enquanto jovens saudáveis de sua idade morriam às centenas, Kafka conseguiu se recuperar rapidamente e atribuiu a vitória ao seu estilo de vida vegetariano.
“O açougueiro pensou que podia ao menos se poupar do esforço do abate, e uma manhã trouxe um boi vivo. Isso não deve se repetir. Fiquei uma hora estendido no fundo da oficina com todas as roupas, cobertas e almofadas empilhadas em cima de mim, tudo isso para não ouvir os mugidos do boi que os nômades atacavam de todos os lados para arrancar com os dentes pedaços de sua carne quente. Quando me atrevi a sair, já fazia silêncio há muito tempo. Como bêbados em tomo de um barril de vinho, eles estavam deitados e mortos de cansaço ao redor dos restos do boi”, registrou no conto Ein altes Blatt (Uma Folha Antiga).
Outra característica intrigante de Kafka é que em muitas de suas histórias seus personagens comem carne crua e ensanguentada, talvez um recurso usado pelo autor para avultar a barbárie que envolve o consumo de carne. Idealista, o escritor tcheco confidenciou em um de seus diários o desejo de se mudar para a então Palestina e abrir com sua namorada Dora um restaurante vegetariano em Tel Aviv. “Eu trabalharia como garçom. Gostaria de servir as pessoas”, informou.
Perto do fim da vida, e sofrendo em decorrência de uma tuberculose laríngea que o acompanhava desde 1917, ele foi pressionado a voltar a consumir carne. Desesperado e sentindo-se impotente, fez um acordo com a irmã Ottla, pedindo que ela se tornasse vegetariana para compensar sua iminente falha jamais concretizada. “Um de nós precisa continuar salvando os animais”, argumentou ele. A irmã manteve a promessa por toda a sua vida, até que foi executada em um campo de concentração nazista em 1943.
Saiba Mais
Frank Kafka nasceu em Praga em 3 de julho de 1883 e faleceu em 3 de junho de 1924.
Seu pai também possuía uma loja de presentes para homens e mulheres em Praga.
Referências
Brod, Max. Franz Kafka, eine Biographie. Berlin S. Fischer Verlag (1937).
Kafka, Franz. Ein Landarzt – Ein Bericht für eine Akademie/Ein altes Blatt. Stroemfeld Verlag. (1920).
União Vegetariana Internacional. Stastny, Jan. Franz Kafka – Vegetarian Activist (2008).
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Supino e o direito de ser marombeiro
“Olha o naipe desse cara. Que otário! Muito músculo e pouco cérebro”, ocasionalmente dizia alguém
Na década passada, eu sempre encontrava um amigo no mesmo horário na academia. Era um sujeito bem animado, sorridente e que gostava de ser notado. Quando não percebiam sua presença, ele encontrava um jeito de chamar a atenção – dava um urro sorrateiro, falava alto ou causava algum atrito ruidoso entre as anilhas. Jamais o percebi conversando sem arquear os braços, chacoalhar a cabeça, espichar as veias do pescoço ou fazer movimentos curiosos com as mãos. Era um exibicionista de boa índole.
Ao sair da academia depois de um treino de peito ou braços, tirava a camiseta, aproveitando para mostrar o pump – aquele aspecto que faz todo cara parecer maior após os exercícios por causa do aumento do fluxo sanguíneo bombeado no músculo. “Agora vou ‘apavorar’ na rua”, comentou um dia. Nessas circunstâncias, eu apenas ria. Aquela era a sua alegria, e se ele tinha algum tipo de prazer nisso, era o que importava, não cabendo a mim nem a ninguém julgá-lo.
Supino, como eu o chamava porque ele treinava mais peito do que qualquer outro grupo muscular, tinha o costume de atravessar o centro da cidade com a camiseta sobre o ombro, ignorando comentários e olhares desdenhosos, principalmente de quem menosprezava marombeiros. Se alguém fizesse careta ou criticasse e ele percebesse, não era raro Supino reagir de forma inesperada.
“Olha o naipe desse cara. Que otário! Muito músculo e pouco cérebro”, ocasionalmente dizia alguém. Sua reação instantânea era retribuir com um sinal de joia e uma contração muscular elevando a cabeça do bíceps. “Fica sossegado, irmão! É só entrar na academia, seguir dieta e treinar certinho por anos que você chega lá”, comentava sorrindo e finalizando a breve interação com uma piscadela provocativa e um tapinha no próprio deltoide.
Quando ele atravessava a movimentada Rua Getúlio Vargas, algumas mulheres também o depreciavam às vezes, incomodadas em vê-lo na sua caminhada fruitiva, com o torso à mostra enquanto o sol aquecia o asfalto, atravessava vitrines e exasperava os mais afoitos. “Nossa, o tipo! Se acha demais! Tem gente que faz de tudo pra aparecer! Pensa que é bonito ser vagabundo e andar seminu na rua!”, ouviu numa tarde.
Sem titubear, caminhou até a moça que fez o comentário com a amiga e a observou nos olhos por alguns segundos. “Com licença, senhorita. Tu paga as minhas contas? Lava minha roupa? Prepara minha comida? Acho que não, né? Então pode parar de admirar que aqui não tem nada de graça”, declarou sorrindo e dando dois tapas no próprio peito. Constrangida, a moça puxou a amiga pelo braço e caminhou apressada até o fundo de uma loja.
Supino agiu assim por muito tempo, na sua tenra espontaneidade. Um dia, logo que saiu da academia, quando já não treinávamos mais no mesmo horário, foi surpreendido e atropelado. Ele rolou sobre o capô do carro e caiu deitado com as costas contra o asfalto tórrido de uma manhã altaneira de verão. No chão, sentiu uma luz quente bloqueando sua visão.
O motorista fugiu e Supino continuou deitado no chão. Não gemia nem agonizava. Somente ria de si mesmo e do seu próprio azar, ignorando os ferimentos pelo corpo. Surpreendendo quem testemunhou a cena, ele se levantou e limpou os ferimentos com a própria camiseta branca transfigurada em vermelha.
Joelhos e cotovelos esfolados, muitas escoriações nas costas e no peito, um corte superficial na testa e outro no topo da cabeça, nada disso o impediu de soerguer-se para assistir o autor já distante, fugindo pela Rua Pernambuco. Na manhã seguinte, Supino estava na academia praticando musculação.
E mais, na mesma semana, tomou uma decisão. Foi até uma loja no centro de Paranavaí e pediu para uma vendedora mostrar-lhe algumas camisetas. Enquanto ele as observava, em dúvida sobre quais escolher, as mãos da moça tremiam e as frases saíam incompletas de sua boca. “Você precisa tomar um copo de água com açúcar ou maracugina, moça. Não parece nada bem!”, sugeriu.
De repente, ela começou a chorar e a pedir desculpas. Supino não disse nada. Complacente, assistiu a reação dela em silêncio. Comprou três camisetas e saiu da loja com a consciência tranquila. Lá fora, a observou pela última vez antes de partir. Ele sabia e ela sabia. Supino descobriu que a mesma jovem que antes se incomodou com sua presença, fazendo um comentário preconceituoso que ele retribuiu quando ela o viu sem camiseta, pediu ao namorado que o atropelasse, alegando que Supino deu em cima dela.
À época, o questionei sobre o porquê de não ter procurado a polícia. Ele deu uma de suas respostas minimalistas e filosóficas: “Sua consciência é o seu único e verdadeiro guia.” O episódio me traz lembranças de uma subjetiva frase escrita por Balzac no século 18: “Quando todo o mundo é corcunda, o belo porte torna-se a monstruosidade.”