David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

Archive for the ‘Prêmio Nobel de Literatura’ tag

Bashevis Singer: “Não sou vegetariano pela minha saúde, mas pela saúde dos animais”

without comments

“Vou continuar sendo vegetariano, mesmo que o mundo inteiro comece a comer carne”

isaac-bashevis-singer-7

Singer se tornou vegetariano por compaixão aos animais (Foto: Reprodução)

Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1978, o escritor polonês Isaac Bashevis Singer foi uma importante voz em defesa dos direitos dos animais no século 20. Vegetariano, o autor de clássicos como “A Família Moscat”, “O Mágico de Lublin”, “Spinoza da Rua do Mercado” e “Gimpel O Tolo”, abordou o animalismo em muitas de suas histórias. Entre as mais impactantes estão “O Açougueiro”, “O Escritor de Cartas”, “Sangue” e “Debaixo da Faca”.

Em “O Açougueiro”, que assim como muitos contos de Singer possui elementos surrealistas, ele narra os conflitos de um açougueiro kosher que reconhece a própria negação moral na morte de cada animal reduzido à carne, além da legitimação da injustiça e da naturalização da crueldade. A história se passa no século 19, em um shtetl, ou seja, em uma cidadezinha de população predominantemente judia.

No matadouro, o protagonista começa a ter devaneios com vacas e galinhas se preparando para uma retaliação. Elas querem se vingar por toda a violência perpetrada contra os de suas espécies. Em um determinado momento, os animais berram: “Todo mundo pode matar e todo assassinato é permitido.” Embora tenha sido publicado na revista The New Yorker em 25 de novembro de 1967, “O Açougueiro” continua sendo um conto bastante atual, em que o escritor judeu aborda a realidade da produção de carne e atua como uma consciência moral, uma luz para a sociedade.

Singer dedicou pelo menos 35 anos de sua vida ao vegetarianismo, qualificado por ele como a sua própria religião. Sua principal motivação era a compaixão pelos animais. Antes de falecer em 24 de julho de 1991, aos 88 anos, o polonês concedeu uma entrevista ao escritor estadunidense Rynn Berry que o questionou se ele havia se tornado vegetariano por questões de saúde. “Não sou vegetariano pela minha saúde, mas pela saúde dos animais”, respondeu.

Isaac Bashevis, que escrevia principalmente em iídiche, não raramente questionava em seus contos a hipocrisia humana de consumir carne, e a incapacidade de ponderar sobre o real custo dela. Exemplo disso é um excerto do conto “Sangue”, do livro “Breve Sexta-Feira”, lançado em 1963.

Segurando o ganso, Reuben olhou Risha com intensidade, o olhar subindo e descendo e, afinal, detendo-se no peito. Ainda a fitá-la, golpeou o ganso. As penas brancas tingiram-se de sangue. O ganso torceu o pescoço, ameaçador, e súbito pulou, conseguindo voar alguns metros. Risha mordeu o lábio.

— Dizem que vocês nascem com instinto de assassinos, mas tornam-se açougueiros — disse ela.

— Se é tão delicada assim, por que me trouxe as aves?

— Por quê? Ora, é preciso comê-las!

— Pois para comer carne é preciso matar.

"O Açougueiro", um dos contos em que o escritor questiona a relação do ser humano com os animais (Arquivo: The New Yorker)

“O Açougueiro”, conto em que o escritor questiona a má relação do ser humano com os animais (Arquivo: The New Yorker)

Em “O Escritor de Cartas”, publicado na revista The New Yorker em 13 de janeiro de 1968, Singer narra a história de Herman Gombiner, um sobrevivente do Holocausto que vive em companhia de um rato. O vínculo entre os dois é tão intenso que Gombiner desenvolve uma consciência animalista: “O que eles sabem? Todos esses filósofos, todos os líderes do mundo? Convenceram-se de que o homem, o pior transgressor de todas as espécies é a coroa da criação. Todas as outras criaturas foram criadas apenas para fornecer-lhe comida e pele, para serem atormentadas e exterminadas. Em relação a elas, todas as pessoas são nazistas. Para os animais, há uma Treblinka eterna.”

O escritor polonês viu semelhanças entre a realidade das vítimas do Holocausto e dos animais transformados em comida, isto porque os dois viveram a experiência do confinamento em espaços apertados, sendo transportados sem água e alimento. “A diferença é que os nazistas tentaram varrer os judeus da face da Terra enquanto os pecuaristas visam sempre aumentar a produção e a quantidade de vítimas”, avalia o escritor Jeffrey Cohan, autor de “Isaac Bashevis Singer, Yiddish Food Writer”.

“Três açougueiros matavam aves sobre uma pia de mármore que refletia a luz de um lampião de querosene, estendendo-as depois a depenadores, que as depenavam e amontoavam-nas, ainda vivas, num cesto.” Excerto de “Debaixo da Faca”, página 66 de “Breve Sexta-Feira”.

De acordo com Isaac Bashevis Singer, quando um ser humano mata um animal para comer, ele negligencia sua própria fome de justiça. “O homem reza por clemência, mas não se dispõe a estendê-la aos outros. Por que então ele deve esperar misericórdia de Deus? É injusto esperar algo que você não está disposto a oferecer”, registrou no texto publicado como prefácio do livro “Diet for Transcendence: Vegetarianism and the World Religions”, de Steven Rosen, de 1987.

Questionado sobre o que diz a Bíblia em relação à sua filosofia de vida, Singer argumentou que a defesa do vegetarianismo pode ser encontrada no Velho Testamento. “Às vezes, eles dizem que Deus quer que animais sejam sacrificados e mortos. […] Mas eu acredito que Deus é sábio e mais piedoso do que isso. E há interpretações das escrituras religiosas dizendo que o vegetarianismo é um grande ideal. Se as pessoas aceitam ou não a interpretação do que é ser vegetariano no contexto da religião, isso não me importa. […] Vou continuar sendo vegetariano, mesmo que o mundo inteiro comece a comer carne”, declarou o premiado escritor na obra “Diet for Transcendence”.

Para Bashevis Singer, ser vegetariano é um protesto, um ato de discordância em relação ao status quo. “Poder nuclear, fome, crueldade, nós temos que nos posicionar contra essas coisas”, recomendou. Mas nada o entristecia mais do que o sofrimento animal. Citava como exemplo o fato dos animais serem capazes de demonstrar benevolência mesmo diante de uma faca ou outra arma a ser usada para matá-los.

o homem não tem o direito de matar um animal e tortura-lo simplesmente para “encher sua barriga de carne” (Foto: Reprodução)

“O homem não tem o direito de matar um animal e torturá-lo simplesmente para ‘encher sua barriga de carne'” (Foto: Reprodução)

“Isso me dá um sentimento de miséria e às vezes de raiva em relação a Deus. Você precisa de sua glória para estar conectado com o sofrimento de tantas criaturas ingloriosas, que apenas gostariam de passar alguns anos em paz. Sinto que os animais estão tão confusos quanto nós, exceto que eles não são capazes de comunicar isso”, desabafou em entrevista à revista Newsweek em 16 de outubro de 1978, após receber o Prêmio Nobel de Literatura.

Segundo o escritor polonês, o homem não tem o direito de matar um animal e torturá-lo simplesmente para “encher sua barriga de carne”, ainda mais levando em conta que os animais podem sofrer tanto quanto os seres humanos. Na realidade, a sensibilidade e as emoções animais são ainda mais intensas porque eles não têm a capacidade de verbalizá-las. “Vários religiosos e filósofos tentaram convencer seus discípulos e seguidores de que animais não são nada mais do que máquinas sem alma, sem sentimentos. No entanto, qualquer pessoa que viveu com um animal, seja um cão, um pássaro ou um rato, sabe que esta teoria é uma mentira descarada, inventada para justificar a crueldade”, critica.

“O vento não era dos mais fortes, e no entanto Cunegunde sabia de onde vinha. Tinha o poder de sentir o odor de carvões fumegantes, carne e outra coisa oleosa e rançosa, cuja fonte somente ela podia perceber. Sua boca desdentada franziu-se num arreganho: “É uma pestilência, uma pestilência. A aproximação da morte…” Excerto de “Cunengunde”, página 138 de “Breve Sexta-Feira”.

Isaac Singer jamais deixou de se surpreender quando lia sobre humanistas, poetas altamente sensíveis, pregadores da moralidade e benfeitores de todos os tipos que sentiam prazer em caçar – perseguindo pobres lebres e raposas, e ensinando seus cães a fazerem o mesmo. “Pessoas dizem que quando se aposentar vão se dedicar à pesca. Falam isso com um entendimento de que  a partir de então não farão mais mal a ninguém. Como se uma época de caridade e tranquilidade fosse começar em suas vidas. Nunca lhes ocorre por um momento que esses seres inocentes vão sofrer e morrer por causa de um esporte ‘inocente’. Às vezes, tenho medo de que a caça aos seres humanos também se torne um esporte”, lamentou.

No livro “Food for the Spirit: Vegetarianism and the World Religions”, de Steven Rosen, lançado em 1987, Singer afirmou que os seres humanos não terão paz enquanto continuarem derramando o sangue dos animais. “Foi necessário um pequeno passo baseado na matança de animais para que fossem construídas as câmaras de gás de Hitler e os campos de concentração de Stalin. Todas essas ações foram praticadas em nome da justiça social. Não haverá justiça enquanto o homem empunhar uma faca ou outra arma para destruir seres mais fracos que ele”, queixou-se. Por outro lado, o escritor reconheceu que sempre vão existir pessoas dispostas a protestarem contra a tortura e a matança de animais.

“Antes de morrer, chamou o rabi e os sete anciãos e informou-lhes que seu nome era Reuben, o açougueiro, com quem Risha cometera pecados. Durante anos vagueara ele de cidade em cidade, sem comer carne, jejuando às segundas e quintas-feiras, usando um saco à guisa de camisa e arrependendo-se de suas abominações.” Excerto de “Sangue”, página 31 do livro “Breve Sexta-Feira”.

Saiba Mais

Isaac Bashevis Singer nasceu em 21 de novembro de 1902 em Leoncin, na Polônia, e faleceu em 24 de julho de 1991 em Surfside, Flórida, nos Estados Unidos, em decorrência de um acidente vascular cerebral (AVC).

Em Tel Aviv, em Israel, foi construído o Isaac Bashevis Singer Humane Education. O centro, que possui uma extensa biblioteca e uma grande videoteca, faz um trabalho de prevenção à crueldade contra animais. A entidade possui um programa específico para educar crianças judias e árabes sobre como elas podem ajudar os animais.

Referências

Singer, Bashevis Isaac. Breve Sexta-Feira (1963). Tradução de Hélio Pólvora. Livraria Francisco Alves Editora (1978).

Singer, Bashevis Isaac. The Collected Stories of Isaac Bashevis Singer. Farrar, Straus and Giroux (1983).

Noiville, Florence. Isaac B. Singer: A Life. Northwestern University Press (2008).

Berry, Rynn. Famous Vegetarians and Their Favorite Recipes: Lives and Lore from Buddha to the Beatles. Pythagorean Publishers (1993). Eight Printing (2003).

Rosen, Steven. From Food for the Spirit: Vegetarianism and the World Religions. Bala Books (1987).

Rosen, Steven. Diet for Transcendence: Vegetarianism and the World Religions (1987). Torchlight Publishing; Revised Edition (1997).

Cohan, Jeffrey. Isaac Bashevis Singer, Yiddish Food Writer (20 de novembro de 2012). Disponível em http://forward.com/food/166228/isaac-bashevis-singer-yiddish-food-writer/

Contribuição

Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:





Coetzee: “Animais não precisam do meu amor. Não me preocupo com amor, me preocupo com justiça”

without comments

“Basta apenas um olhar para que uma criança se torne vegetariana por toda a sua vida”

j-m-coetze_1-jerry-bauer

Coetzee: Dada a chance, as crianças sempre verão além das mentiras com as quais somos bombardeados pelos anunciantes (Foto: Jerry Bauer)

Basta apenas um olhar para que uma criança se torne vegetariana por toda a sua vida. Com essas palavras, o escritor sul-africano John Maxwell Coetzee, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 2003, e considerado um dos maiores autores de língua inglesa da atualidade, emocionou uma grande plateia em Sidney, na Austrália, no dia 22 de fevereiro de 2007, quando falou sobre os direitos dos animais. A repercussão foi tão positiva que seu discurso foi publicado em alguns dos mais importantes jornais do mundo.

“Animais felizes transformados de forma indolor em nuggets, o sorriso da vaca do comercial de leite que diz doar o próprio leite para nós. Dada a chance, as crianças sempre verão além das mentiras com as quais somos bombardeados pelos anunciantes. A respeito disso, crianças nos fornecem as mais brilhantes esperanças. Elas têm corações ternos, que não foram endurecidos por anos de conivência com a crueldade e com o comportamento antinatural”, declarou o vegetariano J.M. Coetzee.

Para o escritor avesso a entrevistas, qualquer pessoa disposta a refletir sabe que há algo de muito errado na relação entre os seres humanos e os animais, e isso se tornou mais aberrante nos últimos 100 anos, quando a pecuária se apropriou dos métodos industriais de produção. “A indústria de alimentos supera o comércio de peles e o uso de animais em laboratórios quando falamos em números de vidas animais afetadas. A grande maioria usa e consome produtos dessas indústrias, mas se sente mal quando pensa no que acontece nas fazendas industriais e nos matadouros. Por isso, eles organizam suas vidas de tal maneira que eles evitam pensar nisso. Também fazem de tudo para garantir que seus filhos sejam mantidos na escuridão, porque sabemos que crianças têm bom coração e mudam facilmente”, enfatizou.

Para Coetzee, o primeiro sinal de que os animais já não eram mais vistos como algo além de produtos apareceu no século 19, com o surgimento das primeiras fazendas industriais. Desde então, a humanidade tem se negado a reconhecer que animais não são meras unidades disponíveis à exploração humana. “Este aviso veio tão alto e claro que parecia ser impossível ignorá-lo. Mais tarde, um grupo sanguinário da Alemanha [em referência aos nazistas] teve a ideia de adaptar a metodologia dos currais industriais. Eles foram pioneiros nesse sistema que eles não chamavam de matadouro, mas sim de área de processamento de seres humanos”, assinalou.

Segundo o escritor, naturalmente esse horror chocou a humanidade. Muitos diziam: “Que terrível! Tratar seres humanos como gado!” Considerando isso, ele observou que se talvez as pessoas tivessem refletido um pouco mais à época, a queixa teria sido bem diferente: “O mais justo seria falar: ‘Que crime terrível! Tratar seres humanos como meras unidades de um processo industrial.’ E assim veríamos com outros olhos a proporção desse crime, já que é um crime contra a natureza resumir qualquer ser vivo a uma unidade de um processo industrial”, ponderou.

Independente do que diz os utilitaristas, Coetzee argumentou que a pecuária tradicional sempre foi suficientemente brutal. Sobre a exploração animal, pessoas sempre dirão: “Sim, é terrível a forma como vivem as porcas reprodutoras e os vitelos. Mas, quem vai, em seguida, encolher seus ombros e perguntar: ‘O que posso fazer sobre isso?’”, criticou o escritor sul-africano.

O papel do movimento em defesa dos direitos dos animais é oferecer opções para que as pessoas saibam o que fazer logo que descobrem o que acontece com os animais. “As pessoas precisam saber que há alternativas aos produtos de origem animal. Que essa alternativa não exige sacrifícios em saúde e nutrição, e nem mesmo são caras. O único sacrifício envolvido nisso é dos próprios animais não humanos”, destacou J.M. Coetzee.

O escritor também apontou para um fenômeno alentador. O fato de que atualmente as indústrias que exploram animais estão sendo empurradas para a defensiva. Ou seja, hoje, elas são sempre questionadas sobre suas ações. “As organizações de direitos dos animais mostram que as práticas indefensáveis e injustificáveis da indústria têm tão e somente motivações econômicas. A indústria está indo ladeia abaixo e já prevê que uma tempestade vai arrastá-la. Na medida em que há uma guerra de relações públicas, a indústria prova que já perdeu essa guerra”, analisou.

No dia 30 de junho de 2016, J.M. Coetzee também abordou os direitos dos animais no auditório do Museu Reina Sofia, em Madrid, na Espanha. “Eu não sou um amante dos animais. Animais não precisam do meu amor. Não me preocupo com amor, me preocupo com justiça”, informou Coetzee de antemão. Vegetariano, o escritor sul-africano tem ajudado a promover os direitos dos animais há várias décadas.

Uma de suas obras mais importantes, e que fala justamente sobre o assunto, é a novela metaficcional “The Lives of Animals”, publicada pela editora da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, em 1999. A obra de caráter filosófico gira em torno dos conflitos vividos por uma professora e conferencista vegetariana que, ao advogar os direitos dos animais, encontra resistência no âmbito familiar e no trabalho. “Humanos pensam que são muito mais importantes do que os animais. Por isso, rejeitam a consciência animal. As pessoas precisam cultivar sua empatia”, defendeu J.M. Coetzee.

Saiba Mais

John Maxwell Coetzee nasceu em 9 de fevereiro de 1940 na Cidade do Cabo, na África do Sul.

Referências

Coetzee, J.M. Exposing the beast: factory farming must be called to the slaughterhouse. Opinions – Article. The Sydney Morning Herald, Austrália (22/02/2007).

Coetzee, J.M.. Animals can’t speak for themselves – it’s up to us to do it. Opinions – Article. The Age, Austrália (22/02/2007).

AFP. Nobel laureate J.M. Coetzee speaks against animal cruelty. Daily Mail, Reino Unido (01/07/2016).

Contribuição

Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:





Bernard Shaw: “Animais são meus amigos…e eu não como meus amigos”

with 2 comments

Enquanto formos os túmulos vivos dos animais assassinados, como poderemos esperar uma condição ideal de vida nesta terra?

george-bernard-shaw3

Shaw: “A vida me foi oferecida na condição de comer bifes. Mas a morte é melhor que o canibalismo” (Foto: Reprodução)

Embora pouco conhecido no Brasil, o irlandês George Bernard Shaw foi um dos maiores nomes da literatura inglesa dos séculos 19 e 20. Com uma bibliografia idealista e humanitarista pautada na sátira heterodoxa e na singular beleza poética, o autor recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1925 e um Oscar em 1938, pela adaptação de Pygmalion para o cinema. Um literato que vivia o que escrevia, Shaw também compartilhava suas inclinações e reflexões sobre o vegetarianismo.

 Pygmalion, Major Barbara, Arms and the Man, The Devil’s Disciple e Man and Superman são algumas das obras mais importantes do irlandês que em uma carta de 30 de dezembro de 1929 se mostrou enraivecido com a possibilidade de ser homenageado com um banquete. “Um jantar! Que horrível! Estão me usando como pretexto para matar todos aqueles pobres animais. Obrigado por nada. Agora se fosse um jejum solene de três dias, em que todos ficassem sem comer animais em minha honra, eu poderia pelo menos fingir que estou desinteressado. Mas não, sacrifícios de sangue não estão na minha lista”, reclamou.

O escritor se tornou vegetariano em 1881, e aparentemente por influência de uma palestra do ativista H.F. Lester e das obras do poeta britânico Percy Shelley que ele conheceu no Museu Britânico, em Londres. O que também teve peso sobre sua decisão foram os artigos do compositor alemão e ativista vegetariano Richard Wagner, de quem o irlandês era fã. “Minha situação é solene. A vida me foi oferecida na condição de comer bifes. Mas a morte é melhor que o canibalismo. Meu testamento contém instruções para o meu funeral, que não vai ser conduzido por um agente funerário, mas por bois, ovelhas e aves de capoeira, todos vestindo um lenço branco em homenagem ao homem que preferiu perecer do que comer seus semelhantes”, escreveu em seu diário.

George_Bernard_Shaw_1936

“Vivissecção é um mal social porque ela garante o avanço do conhecimento humano às custas do caráter humano” (Foto: Reprodução)

Quando viajava pela Inglaterra, Bernard Shaw sempre ficava satisfeito ao encontrar dúzias de restaurantes vegetarianos, como bem descritos em seus registros pessoais. No entanto, o mesmo não ocorria quando ele viajava para países como Alemanha e Itália. Com uma alimentação diversificada, o irlandês que adorava doces também consumia cerveja de gengibre, limonada, sopas, nozes, pães, mingaus, bolos, cogumelos, lentilhas, arroz, vegetais, frutas e feijões. Apesar da sua predileção pelo que não era muito saudável, Shaw viveu 94 anos. Do total, 66 foram dedicados ao vegetarianismo.

Ao longo da vida, o escritor lutou contra a vivissecção e a prática de “esportes” envolvendo animais. “Vivissecção é um mal social porque ela garante o avanço do conhecimento humano às custas do caráter humano. Atrocidades não deixam de ser atrocidades porque são realizadas em laboratórios e chamadas de pesquisas médicas. Animais são meus amigos…e eu não como meus amigos. Enquanto formos os túmulos vivos dos animais assassinados, como poderemos esperar uma condição ideal de vida nesta terra? Quando um homem mata um tigre, ele chama isso de esporte, mas quando um tigre mata uma pessoa dizem que isso é ferocidade”, registrou em seu diário.

E a consciência vegetariana do escritor irlandês sempre o acompanhou em tudo que ele fez. Um exemplo é um excerto de um diálogo da peça The Simpleton of the Unexpected Isles: A Vision of Judgement, lançada em 1934.

Uma jovem mulher: Você sabe, para mim esse é um tipo engraçado de almoço. Você começa com a sobremesa, nós começamos com as entradas. Eu suponho que esteja tudo certo, mas eu tenho comido tantas frutas, pães e outras coisas que não sinto falta de qualquer tipo de carne.

Padre – Nós não a serviremos com nenhuma carne. Nós não comemos carne.
 
Uma jovem mulher – Então como você mantém a sua força?
 
Padre – O que servimos já garante boa disposição.
Publicados entre 1878 e 1881, os primeiros quatro livros de Shaw – My Dear Dorothea, Immaturity, The Irrational Knot e Love Among the Artists, foram praticamente ignorados por editoras, críticos e leitores. Sua renda era tão insignificante que ele teve de contar com subsídios de sua mãe para continuar escrevendo. Ainda assim, manteve-se fiel ao que acreditava. No auge da carreira como dramaturgo, Shaw conheceu Mahatma Gandhi. Os dois, de origem completamente distintas, porém com o humanitarismo e o amor aos animais em comum, trocaram elogios e tornaram-se amigos, como num complemento entre o Ocidente e o Oriente.

Em 1924, durante entrevista ao biógrafo, professor e amigo Archibald Henderson, Shaw foi questionado sobre o motivo dele parecer tão jovem aos 68 anos. “Eu não! Acredito que pareço com alguém da minha idade. São as outras pessoas que parecem mais velhas do que realmente são. O que você pode esperar de quem come cadáveres e bebe espíritos?”, replicou o homem que se manteve vegetariano até o dia 2 de novembro de 1950, quando faleceu em decorrência de falhas renais após sofrer uma grave lesão ao cair da árvore que podava em seu jardim.

Saiba Mais

George Bernard Shaw nasceu em Dublin, na Irlanda, em 26 de julho de 1856 e faleceu no vilarejo de Ayot St Lawrence, na Inglaterra, em 2 de novembro de 1950.

Ele deixou a barba crescer na época em que se tornou vegetariano.

Referências

Henderson, Archibald. George Bernard Shaw: Man of the Century. N.Y. Appleton-Century-Crofts (1956).

Adams, Elsie Bonita. Bernard Shaw and the Aesthetes. Columbus: Ohio State University Press (1971).

Carr, Pat. Bernard Shaw. New York: Ungar (1976).

Martin, Stanley. George Bernard Shaw. The Order of Merit. London: Taurus (2007).

Contribuição

Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar: