Archive for the ‘Pressa’ tag
A senhorinha da fila
A maioria das pessoas se irrita com filas. Acho que sou estranho, pois não reclamo, quero dizer, não quando tenho algum tempo livre. Na última vez, fiquei cerca de 40 minutos na fila do caixa rápido. Irônico, não? Três pessoas sorriram pra mim na fila, o que significa que notaram muito bem minha presença. Quem sabe, até mais do que eu gostaria no meu anseio de parecer invisível, um voyeur. Brincadeira. Ou talvez não.
Na fila do caixa rápido, que atravessava o setor de hortifruti e de frios, notei um carrinho à minha frente, mas ninguém o estava guiando.
— A senhora sabe de quem é esse carrinho? — perguntei a uma moça acompanhada da filha que sorria timidamente.
— Não! Não sei. Quero dizer, de uma senhora aí, mas eu que não vou empurrar.
Empurrei o carrinho mais à frente, para acompanhar a fila, e uma senhora se aproximou:
— Obrigada! Fui pegar uma coisinha ali – justificou com um sorriso largo.
— Tudo bem – respondi.
Atrás de mim, três homens conversavam. Um deles parecia o Casagrande, tanto no aspecto físico quanto no tom de voz grave e ansioso, que não permitia folga nem para recuperar o fôlego. Falavam de lanches, violência, desenvolvimento urbano, pedágio, estradas, entre outras coisas.
— Londrina está cheia de mafiosos. Você não é mafioso, né? Sou doido de perguntar isso, porque se for, tu não vai deixar eu chegar nem na porta do meu carro depois dessa.
Os outros dois riram.
A senhorinha abandonou o carrinho outra vez. A moça e sua filha olharam pra mim, talvez aguardando alguma reação enérgica de minha parte.
Continuei no mesmo lugar, assistindo um rapaz alto e extremamente magro analisando uma bandeja de morangos. Ele nem piscava; deslizou os dedos pelo invólucro, e mudou a bandeja de posição inúmeras vezes. Talvez procurando algum resquício de podridão entre as frutas.
Um garotinho acompanhando o pai na fila pediu chocolate, e o pai respondeu que não, que ele já havia comido ontem, e o trato é um chocolate por semana.
À minha frente, a mesma moça de antes oferecia um desses bolinhos recheados e industrializados para a filha. E a menina se mostrava desinteressada.
— Vou pegar um doce bem gostoso pra você.
— Não ligo, mãe.
— Ah, você vai adorar.
E assim nasce uma criança condicionada a gostar de doces industrializados.
Um pouco mais à frente, um homem muito parecido com o Eduardo Cunha atraía olhares curiosos. Mas ninguém dizia nada.
— Eu que não queria estar na pele desse senhor.
Alguém comentou que Paranavaí é um buraco. Outro rebateu:
— Se é um buraco, então você pulou dentro, porque você também mora nele.
Levei cotoveladas de pessoas que andavam como se estivessem pogando em uma roda punk. Nem percebiam que me atingiam. “Sem problema!” Deve ser pressa ou o costume da pressa. Ela toma conta das pessoas até quando não estão fazendo nada. Vez ou outra, eu saía da fila para que alguém atravessasse até o outro lado. Uma senhora agradeceu, os outros não. “Tudo bem!” Cerca de 20 minutos depois, o rapaz continuava observando os morangos. O vi movendo os lábios.
— Acho que esse cara fala com os morangos. O que será que o morango disse pra ele? — me perguntei.
A senhorinha continuava abandonando o carrinho e enchendo uma cestinha sobre ele. Kiwi, batata, abacate, manga, limão, cenoura, berinjela, caqui. Foi tudo que vi ela indo e voltando para colocar no carrinho desde que entrei na fila. Alguns a reprovavam. Eu não me importava. Nem o cara logo atrás, distraído conversando com seus amigos.
A moça e a filha seguiam incomodadas com a mulher. A menina olhava para mim de tempo em tempo, como se ainda aguardasse uma reação minha ou dissesse com os olhos:
— Po, você não vai fazer nada mesmo? Nem falar nada?
— Não, não vou – eu não disse.
A fila crescia, crescia, sem parar. Já estava com o dobro do tamanho.
Perto da minha vez no caixa, a senhorinha chamou-me a atenção:
— Filho, esqueci mais uma coisinha, você pode cuidar aqui pra mim?
— Posso sim. Tudo bem.
Logo despareceu entre as bancas.
— Cara, como você tem paciência. Como você aguenta tudo isso? — questionou a moça.
Apenas dei um sorriso enviesado.
A senhorinha passou pelo caixa e ficou parada em uma das entradas do mercado. Assim que paguei e caminhei em direção à saída, ela chamou-me a atenção:
— Olhe, filho. Isso aqui é pra você. Muito obrigada mesmo – disse sorrindo e me entregando uma caixinha de figos orgânicos e selecionados.
— Que isso! Poderia ser eu no lugar da senhora. Não é necessário.
— Eu insisto, por favor.
— Tudo bem. Muito obrigado pela gentileza – respondi timidamente.
A observei caminhando em direção ao carro, onde havia um jovem casal em roupas bem surradas. A moça carregava um bebê.
— Deus abençoe a senhora.
— A senhora é uma boa pessoa.
— Imagina…
— Querem uma carona?
— Não. A gente vai pegar o ônibus aqui na frente. A gente conseguiu o dinheiro da passagem com um moço antes de falar com a senhora.
— Então tá bom. Fiquem em paz.
— A senhora também.
Ela entrou no carro carregando apenas uma sacola. As outras foram entregues ao homem que caminhou até a parada de ônibus com a companheira e o bebê.
Contribuição
Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:
Na saída da academia
Dias atrás, saindo da academia com a minha mala esportiva à mão esquerda, me recordei que assumi o compromisso de passar na casa de uma amiga antes das seis horas da tarde para buscar um livro. Como faltavam apenas dez minutos, corri até o meu carro que estava estacionado na Rua Luiz Spigolon. Nesse ínterim, notei que quatro pessoas também começaram a correr, e inclusive a atravessar a rua, se distanciando de mim.
Estranhei porque as duas moças e os dois rapazes usavam uniformes. Provavelmente não estavam se exercitando. “Por que estariam correndo?”, me questionei subitamente, sem dar grande margem para interpretações. Ainda suspeito que ouvi um ou dois gritos, mas como eu estava com fones de ouvido, não posso confirmar. De repente, me vi sozinho na calçada. Joguei a mala no banco direito, entrei no carro, ajeitei a barba e fui embora.
O fura-fila
Voltando para casa, entrei em Nova Esperança e passei em um supermercado. Caminhei até o fundo e vi uma fila modesta em frente à padaria. Algumas pessoas conversavam e outras mantinham-se em silêncio. De repente, um senhor ficou ao lado de uma mulher que aguardava alguns pães. Ele furou a fila.
Quando olhou para mim, mantendo o corpo recôndito pela senhora que nos separava, ele sabia que eu sabia o que ele estava fazendo. Então desviou o olhar algumas vezes e sorrateiramente voltou a me observar. “Me vê quatro pães”, pediu à atendente com voz em tom baixo e tapando parcialmente a boca com a mão direita, como se quisesse impedir que eu o ouvisse.
Continuei assistindo aquele senhor. Arreliado e claudicante, ele desviava a cabeça, coçava os parcos cabelos brancos e esfregava o par de sandálias no piso esmerado. Seus olhos iam de caroço de azeitona à caroço de abacate em segundos. Quando a atendente entregou os quatro pães, foi como se ele se sentisse livre do meu olhar que talvez espelhasse uma confissão, revelando mais do que ele gostaria de ponderar – ou talvez não, vai saber.