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Reflexões de um minuto – Imagine passar a sua vida confinado como um animal criado para consumo
O tratamento que dispensamos aos não humanos
Para que as pessoas possam se alimentar de uma “carne de qualidade”, os animais, por padrão, são deixados em jejum prolongado. Isto, claro, para que suas reações fisiológicas associadas à última refeição não comprometam a qualidade da carne. Como isso pode parecer justo? Aceitável? Você já considerou o fato de que até mesmo serial killers, ou seja, assassinos que não raramente são considerados os piores seres humanos, recebem melhor tratamento?
Um exemplo? Sujeitos que estupraram e mataram dezenas de pessoas e que são condenados à morte nos Estados Unidos costumam ter o direito de escolher uma última refeição com tudo que lhes agrada. Já os animais não humanos, relegamos à fome antes do golpe mortal. Sendo assim, como alguém pode dizer que reprovar o consumo de animais e lutar pelo direito à vida não humana não é importante? Seres não humanos estão na pior escala de tratamento da história da humanidade. Muito abaixo daqueles que são considerados alguns dos piores criminosos da nossa história contemporânea.
Por que animais criados para consumo chegam a praticar canibalismo
Você já pensou em quais circunstâncias um animal domesticado e criado pelo ser humano com finalidade de consumo pratica canibalismo?
Quando ele passa por um processo visceral de despersonalização, de completa perda de identidade e individualidade. Ele se torna algo desconhecido para os outros e para ele mesmo. E como isso acontece? Como consequência de níveis constantes e excruciantes de privação, ansiedade e estresse, entre outros fatores que podem envolver ou não agressão física.
Animais não humanos, diferentemente de nós, não verbalizam o que sentem e por isso podem sofrer mais perante a incomunicabilidade no contato com seres humanos. Afinal, o seu desespero e ânsia pela vida podem ser facilmente desconsiderados levando em conta as diferenças no código de comunicação. E, evidentemente, podem ser interpretados ou distorcidos à revelia.
Essa incomunicabilidade com o ser humano, logo animal de outra espécie, amplifica o desespero e o sofrimento no esteio de uma vida não natural que tem como consequência ordinária a figuração da violência em suas mais diferentes formas. Afinal, a violência contra um animal está muito além de espancá-lo ou de matá-lo.
A violência pode ser manifestada a partir do simples e iterado ato de privá-lo de sua natureza, do trivial e pernicioso ato de não permitir que ele seja ele mesmo; de não permitir que ele crie vínculos sociais à sua maneira, nem mesmo desenvolva uma rotina condizente com seus anseios inerentes ou atávicos.
A natureza de um animal criado para consumo, logo objetificado, é comumente suplantada para dar lugar a uma natureza de viés mecanicista, em que ao animal não é permitido nenhum direito de escolha no decorrer de sua vida, nem mesmo o direito de escolher com quem se relacionar, como se alimentar. Enfim, nenhum direito em relação a nada.
Assim, seus hábitos são precocemente suprimidos e sua natureza inerente gradualmente obliterada. Dependendo do nível de obliteração, ele pode praticar ou não o canibalismo, que neste caso talvez seja um dos símbolos maiores do aviltamento e da degradação não humana em uma sociedade imersa na desconsideração e na negação de direitos não humanos.
Nose flap, um artigo usado pela indústria leiteira para forçar o desmame do bezerro
Nose flaps nada mais são do que abas instaladas nas narinas dos bezerros para impedir que eles consigam mamar. Ou seja, para forçar o desmame do bezerro. O material produzido pela QuietWean, do Canadá, é leve e de plástico, o que segundo o fabricante garante que o animal não se machuque na tentativa de mamar. Eles relataram que os nose flaps têm eficácia de até 95%.
Ou seja, os filhotes realmente são impedidos de se alimentarem quando usam esse artigo. São raros os bezerros que conseguem encontrar um meio de mamar usando nose flaps. O artigo, que já se tornou um dos preferidos entre produtores de leite do mundo todo, inclusive do Brasil, é usado como um recurso que força o desmame do animal precocemente.
Segundo o porta-voz da QuietWean, a aba que impossibilita o animal de se alimentar é usada como um facilitador da separação entre vaca e bezerro. Ou seja, ela é comercializada para fazer não apenas com que o bezerro não mame, mas também com que a vaca seja condicionada a aceitar o inevitável processo de separação.
Em síntese, pode-se dizer que a vaca é enganada e o bezerro privado de mamar; e com algo preso ao nariz que é capaz de causar irritação nas narinas do animal, além de estresse. Afinal, quem não se sentiria incomodado ao ser colocado em uma situação em que é praticamente impossível se alimentar ou ter um contato íntimo com a própria mãe? Ainda mais quando falamos de um animal no início da vida.
O porta-voz da QuietWean também informou que os nose flaps impedem que o bezerro “grite muito” ou reaja de forma muito negativa quando separado da vaca. Mas essa não seria uma reação natural de um animal separado da mãe? Será que temos o direito de interferir nas ações naturais desses seres vivos?
Basicamente, o nose flap é mais uma criação voltada à naturalização de uma prática considerada aceitável no contexto da exploração animal. E nesse caso, com a finalidade de destinar o leite da vaca aos seres humanos, ou seja, animais de outra espécie e que não dependem de leite para sobreviver. Se o bezerro passa por esse tipo de privação não há como negar que isso acontece porque existe um mercado consumidor de laticínios.
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Sobre a realidade da produção industrial de carne suína
A realidade da produção industrial de carne suína pode ser chocante para quem consome carne e não tem a mínima ideia de como funciona esse sistema. Muitas porcas grávidas são aprisionadas como se fossem culpadas de algo, quando na realidade a privação existe simplesmente porque são animais condicionados a nascer, viver com brevidade e morrer distantes de uma vida natural. Há situações degradantes em que elas dormem sobre as próprias fezes em gaiolas apertadas.
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Por que não me alimento de animais?
Há algum tempo, me perguntaram por que não me alimento de animais. Respondi o seguinte:
Não acho uma boa ideia me alimentar de animais porque, por mais duro que isso pareça, significa se alimentar de morte, sofrimento ou privação. Infelizmente, esse é o preço que pagamos ao ingerir carnes, ovos, laticínios e outros produtos de origem animal. Ninguém vive ou morre feliz ou satisfeito nesse sistema, por melhores que sejam os cuidados. Uma pessoa pode alegar que um bicho teve uma morte indolor, ok, mas você acha que enquanto viveu ele foi feliz em privação?
Não creio, e acredito que todo o estresse e os medos do animal são transferidos para aquilo que comemos, logo não vejo como isso pode ser positivo. Infelizmente, a realidade é que comer carne significa ingerir morte. Afinal, come-se os restos de alguém e aquilo passa a subsistir dentro de você, mesmo que temporariamente. Muitas pessoas sentem nojo do abutre ou do urubu quando testemunham eles comendo carniça. Mas é preciso ser honesto – aquele é o instinto deles.
Em relação a isso, a diferença entre nós e eles é que eles precisam essencialmente da carne. Ao contrário de nós, eles a comem do jeito que ela é, enquanto nós mascaramos o sabor da carne crua para torná-la palatável. Para isso, recorremos a uma grande diversidade de temperos, ou seja, ingredientes de origem vegetal, que fazem a carne até mesmo não parecer “tão carne”. Fora o fato de que quando cito esses animais não humanos, estou falando de seres que comem para viver, não vivem para comer como muitos seres humanos.
O garotinho que acreditava que sua casa era uma cidade
Brincando entre um cômodo e outro, ele simulava que tinha percorrido quilômetros
Conheci um garotinho na minha adolescência que acreditava que sua casa era uma cidade, sua rua um estado e Paranavaí um país. Seu nome era Natanael e ele era tão criativo que nominou os cômodos de sua casa como se fossem ruas. Um dia sentou no chão, fez plaquinhas a partir de caixas de papelão e as fixou nas paredes.
Havia a Rua Leão Mágico, Rua Peter Pan, Rua Pequeno Polegar, Rua Pinóquio, Rua do Gato e do Rato e Rua Três Porquinhos. E todas as plaquinhas que cintilavam no escuro por causa da tinta fosforescente traziam uma ilustração. Natanael achava importante mostrar quem eram os homenageados. E se alguém o perguntasse o porquê, ele justificava com grande facilidade.
“Por que você colocou o nome de Leão Mágico neste corredor aqui entre a sala e o seu quarto?”, questionei um dia. Então respondeu que o leão era o maior e mais forte guardião da casa e, como ele tinha o poder de desaparecer e reaparecer onde quisesse, Natanael sempre estaria seguro, assim como seus pais.
Brincando entre um cômodo e outro, ele simulava que tinha percorrido quilômetros, atravessado bairros, estradas rurais e colhido frutas no campo enquanto um ventinho fresco acariciava seu rosto. As fantasias de Natanael eram incentivadas pelos familiares.
Depois de estudar física e eletromecânica, o pai construiu um ventilador especial que simulava o som e a intensidade natural do vento. Já a mãe criou algumas pequenas árvores artificiais e aromatizadas em uma velha despensa e, sobre os galhos que balouçavam como se fossem reais, todos os dias pela manhã ela prendia frutas como maçãs, peras, laranjas e mangas, as preferidas do filho.
As paredes foram pintadas por um tio artista que morava no Rio Grande do Sul e veio a Paranavaí para criar um cenário inspirado na obra Campos de Papoula, do impressionista Claude Monet. Natanael sorria tanto no meio daquele cenário pastoril que sentia até as beiradinhas da boca formigando.
Ele girava em torno das pequenas árvores, se acocorava em um canto, sobre um piso coberto por uma camada grossa de terra que garantia mais realismo ao ambiente, e comia um pedaço de fruta com tanto anelo e satisfação que parecia carregar o que existe de melhor no mundo dentro de si mesmo. Era apenas uma criança, mas dotada de um tipo de sensibilidade encontrada em uma pessoa entre milhões.
Natanael tinha cabelos escuros e lisos, uma pele jamais tocada pelo sol e os olhos grandes, redondos e escuros como jabuticabas gigantes. Vez ou outra, o próprio riso o levava às gargalhadas e quando ele exibia os dentes o ambiente ficava mais iluminado. Sempre descalço, mostrava com orgulho as solas avermelhadas e encardidas dos pés.
Para criar novos cômodos na casa, os pais reduziram o próprio quarto a 1/3 do tamanho original. Também diminuíram a sala e a cozinha. Tudo era feito com a intenção de expandir o mundinho de Natanael que chegava a passar meses dentro de casa. “Hoje vou te levar até a Praça dos Pioneiros pra você brincar no parque. Que tal?”, revelou o pai numa surpresa matutina de sábado.
O homem arqueou os braços formando uma cadeirinha e pediu que Natanael subisse a bordo, escorando as costas em seu peito. A mãe entregou a ele um volante do tamanho de um pires e o pai simulou com a boca o som do ronco de um motor. Reproduziram até os solavancos das lombadas, fazendo o garotinho rir e agarrar o braço do pai como um animalzinho protegido pelo tronco de uma sequoia.
A Praça dos Pioneiros de Natanael era um quarto com escorregador, gangorra, balanço e gira-gira. Todos os brinquedos, tornados os mais belos em seu ideário meninil, foram feitos com peças baratas compradas em um ferro-velho. E sobre sua cabeça, o que mais o emocionava e impressionava, entre tudo que possuía, não era nenhum brinquedo, e sim um sol giratório feito de papelão que ficava suspenso no ponto mais alto da área interna da casa.
Conforme o pai ou a mãe puxava uma cordinha, a lírica réplica sorria e piscava para Natanael que se sentia “quentinho” diante dele apesar da ausência de luz solar. “Por que o sol não queima o teto, mamãe? E por que ele nunca se põe? Será que não sente falta da casa dele?”, inquiriu. A mãe respondeu que aquele era o Solzinho, filho do Sol, e se mudou para a Terra para crescer junto com ele. “Quando o Solzinho for grande, ele também vai ter que partir. Enquanto isso vocês podem ser grandes amigos”, comentou. Natanael ficou em silêncio.
Ele amava tanto o sol que muitas das suas roupas traziam desenhos com as mais diferentes representações da estrela. Até mesmo o teto do seu quarto tinha um sol próprio que resplandecia na escuridão noturna como uma paródia prodigiosa da lua de de Le Voyage dans la Lune, de Georges Méliès.
Com o pôr do sol, Natanael saía de casa para brincar no quintal. À noite, depois de muito tempo, uma vez o encontrei chorando debaixo do pé de manga, reclamando que não entendia porque o “Sol Maior”, aquele que traz a alegria do dia, não gostava dele. “O ‘Sol Maior’ deixa tudo brilhando. Ilumina tanta coisa, menos a minha vida”, reclamou. Apesar da casual melancolia, sempre melhorava com o despertar do dia.
Quando Natanael ficava muito triste, seus pais se fantasiavam à noite e o levavam para percorrer a Rua John Kennedy. Criavam histórias quiméricas sobre seres fantásticos que surgiam com o poente, protegendo pessoas e animais. Para cada quadra, o garotinho dava o nome de uma cidade. “Alto Paraná, Nova Esperança, Presidente Castelo Branco, Mandaguaçu, Maringá, Sarandi…”, dizia, usando como referência um mapa do Paraná que guardava embaixo da cama.
Às vezes, ia além, atravessando o centro e dezenas de bairros, despertando em seu mundo diminuto a sensação de um desbravador atravessando países e continentes. Numa manhã fria e escura de inverno o levaram para conhecer o Bosque Municipal. Natanael ficou chateado porque os animais não apareceram.
Sem saber o que fazer, seus pais o chamaram para ir embora, preocupados com a previsão de que o sol logo despontaria. De repente um macaquinho-prego se aproximou, deu cinco piruetas e guinchou. Lágrimas escorreram pelas maçãs de Natanael que deu ao lugar o apelido de Amazoninha.
Após o aniversário de nove anos, o garotinho teve a oportunidade de ver o sol a céu aberto pela primeira vez. Seus pais conseguiram economizar dinheiro o suficiente para comprar uma roupa especial que o cobriu dos pés à cabeça, evitando as severas agressões do sol.
Hirto, Natanael assistiu extasiado a luz natural que o rodeava. Ajoelhou no quintal de casa por alguns minutos, se levantou e correu em torno das mangueiras e da jabuticabeira. Empolgado, encostou as mãos protegidas por luvas em todos os pontos onde a incidência da luz solar era maior. “Acho que o sol tá começando a gostar de mim. Hoje é o melhor dia da minha vida!”, gritou, acompanhado por Dino, um cãozinho mestiço e serelepe.
Menos de um mês depois, Natanael foi diagnosticado com melanoma metastático, um câncer de pele associado à xerodermia pigmentosa, doença que o acompanhou desde o nascimento e o impedia de se expor ao sol. O garotinho recluso faleceu em casa antes de completar dez anos. “Será que o leão mágico não vem hoje?”, brincou, exprimindo um sorriso fragilizado.
Quando a morte se aproximou como um sono sempiterno, o sol reluziu na janela. Seus pais abriram a cortina e ele sentiu o “quentinho” que pousou sobre a ponta do dedinho. “É talvez o último dia da minha vida. Saudei o Sol, levantando a mão direita, mas não o saudei, dizendo-lhe adeus, fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada”, escreveu Alberto Caeiro (Fernando Pessoa) em Poemas Inconjuntos.
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Água dos Esquecidos
“Imaginava um ambiente digno do realismo mágico, onde as pessoas pareciam dispersas no tempo”
Há muito tempo, existiu uma colônia rural entre Alto Paraná e Paranavaí que ficou conhecida como Água dos Esquecidos. Ainda na infância me perguntei a origem desse nome que mais tarde se perdeu na minha memória, assim como estradas, rotas e trilhas de um passado que conheci através de relatos das gerações anteriores.
Quando criança até sonhava com a Água dos Esquecidos; a idealizava. Já adulto, imaginava um ambiente digno do realismo mágico, onde as pessoas pareciam dispersas no tempo e no espaço, alheias ao mundo civilizado e ao progresso, reféns da ingenuidade e do desconhecimento benevolente. Após muitos anos a curiosidade voltou à tona com a chegada de duas tias-avós e a narração de histórias sobre a vida campesina nos anos 1950. Fiquei tão instigado que quis procurar o tão falado lugar onde frondosas árvores carregadas de lichia se inclinam sobre as grandes e velhas moradas de madeira, ornamentando fachadas e janelas com tons e matizes de amarelo, laranja e vermelho, além de um bálsamo castiço e mélico.
Então saí de casa em um domingo depois do almoço. No incerto caminho para a Água dos Esquecidos havia muita lama, poças d’água com mais de meio metro de altura e árvores tombadas pela intempérie da semana anterior. “Sei não, sinhô, mas pra gente isso é sortilégio. Óia a marca no tronco d’árve, é serviço pra num deixa ninguém passa”, disse um lavrador das imediações, justificando a queda de uma árvore aparentemente saudável com algumas grandes inscrições no tronco. O rapaz de fala frugal, que talvez por costume, ansiedade ou timidez tenha o hábito de suprimir sílabas, trajava uma velha camiseta de flanela, uma calça de estopa e um par de sandálias feitas de vegetais. O agradeci, me despedi e fiz o contorno pelo carreador de uma propriedade onde o caseiro, um senhor idoso, acenou e consentiu que eu continuasse o trajeto até a próxima saída.
Mais adiante, percorri 15 quilômetros de estrada estreita e irregular, quando fui surpreendido por duas garotinhas de oito ou nove anos que passaram correndo na minha frente. Usavam uniforme escolar típico de um passado longínquo, com listras em preto e branco e avental com peitoril bege. Aproveitei para descer do carro e pedir informações. Me olharam, sorriram com brevidade e atravessaram uma cerca de arame farpado. Corri alguns metros, mas logo desapareceram entre os laranjais. Continuei dirigindo até chegar a uma fazenda que vi em uma foto familiar de 13 de junho de 1957. Como saía muita fumaça da chaminé, concluí que havia pessoas morando no local. Me aproximei, bati palmas e fui recepcionado por um homem branco de estatura baixa, olhos azuis, cabelos ralos, poucos dentes, pele enrugada e rosto bastante manchado pela irrestrita exposição ao sol. “Vamo cheganu, Jão! Tô passanu o café!”, falou o anfitrião antes de dizer o próprio nome ou me interpelar.
Andei por um trilho enlameado e atravessei uma porteira. Assisti galinhas correndo em círculo em torno de um pastor alemão que raleava a grama com o focinho. A poucos metros dali, uma porquinha circulava livremente carregando no dorso um sabiá-laranjeira bastante confortável lhe amaciando o couro com os pés. Deixando as distrações de lado, entrei na casa e, enquanto eu o esperava retornar do quarto, observei pela janela alguns cômodos. Estava tudo exatamente como vi nas inúmeras fotos de 1957 a 1963, parte de um acervo familiar. Os móveis coloniais, a decoração, nada mudou; nem a posição do sofá. Até o peso da porta da sala que dava acesso ao restante da casa era o mesmo – um lírio almofadado e descorado. Aquilo me intrigou sobremaneira e não resisti em perguntar como conseguiu a proeza de conservar um cenário tão histórico. Ele não entendeu e riu, levando as mãos finas e enrugadas ao rosto. “Que cê tá falanu aí, Jão? A gente conversou inda ontionti”, comentou num tom de voz afável e fragilizado. Aceitei a xícara de café amargo e notei um pequeno moedor de café colonial e azul, com a pintura já opaca e parcialmente descascada.
O café aromatizava a sala com tanto esplendor que tive a impressão de estar próximo de uma torrefadora. Nas primeiras bebericadas senti um sutil gosto de ferrugem e tentei disfarçar. O anfitrião percebeu e argumentou: “Num tá muito bão, né? É que esse inda é dos último pé de café e olha que só sobreviveu pela amargura de existi. Num sobrô mai nada.” Aproveitando a quietude, voltei minha atenção ao fogão à lenha, onde as chamas do braseiro fulguravam inadvertidamente. Em suas formas sinuosas, o fogo resplandecia numa força sempiterna – ora sutil, ora insipiente. Talvez se considerasse autossuficiente, não reconhecendo que sua existência dependia da lenha. Então me recordei da história de amor vivida por Joazino. Ecoava na minha mente com a intensidade do cheiro da panelinha com um pouco de arroz carijó que contrastava com o bule de café e o doce de abóbora e gengibre recém-embalado em folhas de bananeira – todos bem dispostos sobre o fogão à lenha. Só me dispersei por um momento, quando comentou como era difícil acreditar que eu ainda estava vivo depois do que fiz.
Me deu um tapa vaporoso nas costas e virou o rosto para enxugar com a manga da camisa cinza e surrada as lágrimas que escorriam pelas maçãs delgadas do rosto. “Tô feliz q cê tá qui! Inda onti cê tava caído sem vida com os zóio virado do avesso. Agora me fala por que tomô quele veneno?”, indagou Joazino Tibicuá. Constrangido, sem saber como reagir, dei um sorriso pejoso e pedi para mudar de assunto. A conversa seguiu por várias direções, se estendeu por horas, e pouco falei diante de um anfitrião ansioso por exteriorizar tantas emoções, sentimentos e ideias. Evocando a relatos ouvidos na adolescência, lembrei que Joazino teve só uma namorada, de nome Margarida. O relacionamento dos dois era baseado em olhares e frases curtas, sempre assistido por algum parente. O primeiro toque de mão levou semanas. Meses depois veio o primeiro abraço. Durou alguns segundos, o suficiente para o jovem Tibicuá jamais esquecer o aroma adocicado de Cashmere Bouquet que Margarida trazia no corpo.
A relação não foi longe por pressão da mãe de Joazino que não aceitava dividir o filho com outra mulher. A possibilidade dele deixá-la a irritava a ponto dela simular enfermidades e se automutilar. Depois do abraço, nunca mais teve notícias da primeira namorada. Ainda assim prometeu a si mesmo que não desistiria da companheira. Aguardaria o falecimento da mãe para não contrariá-la. Embora tenha dado à luz a Joazino em idade avançada, a mulher viveu até os 113 anos, tempo o suficiente para esvair a mocidade do último dos Tibicuá; agora um homem de corpo miúdo, fustigado pela vida, pelo tempo e por uma credulidade encontrada somente em crianças. A tão sonhada liberdade amorosa foi transformada numa eterna lembrança. Joazino se apegou a ela com tanto paroxismo que se condicionou a encarar o passado como realidade presente, ignorando anos, décadas e as transformações do mundo.
Quando pedi licença para pegar água em um filtro de barro escuro, percorri todo o interior da residência, inclusive o banheiro, e percebi que não havia espelho nem energia elétrica. Mais tarde, Joazino pareceu aliviado e satisfeito com a prosa. Nos despedimos sem que eu lhe revelasse que me confundiu com o seu melhor amigo João, meu tio-avô falecido em 1962. Também omiti que a moça com quem um dia pretendia se casar faleceu há mais de 25 anos, vitimada por pneumonia. Comovido pela situação daquele homem de quase 80 anos, não vi senso de justiça em tirar-lhe o brilho e a jovialidade dos olhos, o privando dos prazeres, mesmo que umbráticos, de sonhar acordado. O amor tornado platônico talvez tenha evitado que seus olhos assumissem um aspecto cristalino opaco, típico dos que já não aspiram nada da vida e aguardam apenas o último suspiro.
Curiosidade
O último pé de café ao qual Joazino Tibicuá se refere foi cortado no final dos anos 1970.
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Quase uma ode ao feio
Clássico de Scola se pauta na degradação humana
Lançado no Brasil como Feios, Sujos e Malvados, o filme Brutti, Sporti e Cattivi é uma anti-heroica e ácida comédia do cineasta italiano Ettore Scola sobre a degradação humana. No clássico de 1976, o protagonista é o caolho de meia-idade Giacinto (Nino Manfredi) que mora com a mulher, dez filhos e outros parentes em um cortiço romano.
A trama se desenrola a partir do momento que o homem recebe um milhão de liras em moedas; dinheiro de uma indenização conquistada após sofrer um acidente de trabalho. Interessados na grana de Giacinto, todos tentam encontrar os meios mais sórdidos para enganá-lo.
É difícil não se sentir desconfortável com a ausência de beleza combinada à amoralidade dos personagens e do cenário. Tudo é intencional e inspira a disformidade. Scola explora o feio como um parâmetro neorrealista que flerta com o surrealismo. Exemplo é a cena em que o protagonista, em um ato gentio embora sincero, leva uma amante horrorosa para viver com ele e a enorme família, já estigmatizada pela feiura, num minúsculo barraco. Na obra, o feio é recorrente e ganha status de natural.
Aparentemente, são todos feios, sujos e malvados, mas ao mesmo tempo não há um discurso, mesmo lacônico, sobre a culpa de serem assim. É um filme sobre miseráveis ociosos e materialistas às raias do primitivismo que não se importam em arremessar lixo aos familiares ou fazer sexo na frente de parentes, amigos e conhecidos. Para os personagens, tudo é válido quando não há referência cultural de distinção entre certo e errado.
Estão todos juntos em uma lama social que os aglutina a um cenário de desconhecimento moral e privação de dignidade. Ainda assim, surpreende ver que apesar de tudo não há ódio indiscriminado entre eles, apenas vontade de viver da única forma que aprenderam. Em 1976, Feios, Sujos e Malvados garantiu a Ettore Scola o prêmio de melhor diretor no 29º Festival de Cannes.
Curiosidade
O filme Brutti, Sporti e Cattivi inspirou dezenas de filmes, séries e programas sobre famílias desajustadas.