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O homem que sobreviveu a três tentativas de assassinato
Nebrão: “Dei como certa a minha morte. Ouvi só o barulho acionado pelo gatilho, mas a bala não veio”
Quem conversa com o pacato Nebrão, de 33 anos, não imagina que ele já foi um dos homens mais perseguidos da Vila Alta, na periferia de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Comunicativo e de fala mansa, hoje se orgulha da vida tranquila e também de ter evitado que crianças e adolescentes entrassem ou continuassem no mundo do crime.
“Saí desse caminho errado graças a Deus. Já fui ladrão sim. Também me envolvi em outras coisas erradas. Não posso negar meu passado, mas me distanciei dessa vida sem futuro”, garante enquanto exibe inúmeras cicatrizes, principalmente marcas de facadas. De origem pobre e sem estrutura familiar, Nebrão é um raro exemplo de sobrevivência, ainda mais levando em conta que no bairro onde foi criado quem se torna criminoso precisa de sorte para chegar aos 25 anos.
O rapaz perdeu muitos amigos de infância e adolescência nos anos 1990, quando uma onda de terror tomou conta do bairro. Naquele tempo, a Vila Alta era conhecida como Vila do Sossego. “Muita gente foi pra debaixo da terra e outro monte pra cadeia. Era bandido matando bandido. É até difícil citar uma rua onde não morreu ninguém na época”, afirma. Os assassinatos no bairro sempre tiveram relação com o narcotráfico ou rixas entre facções do crime organizado. “Aqui é bem tranquilo para quem não se envolve com essas coisas, mas o ‘bicho pega’ se tu seguir a vida do crime e der mancada”, garante e cita o exemplo de um garoto de 13 anos que morreu após levar um tiro na cabeça enquanto estava escorado sobre um tanque, bebendo água da torneira.
O adolescente foi morto porque furtou uma trouxinha de drogas. A tolerância é zero, tanto com quem tenta enganar algum traficante quanto com quem consome e não paga pelo produto. “A quantidade nunca interessa. Pra eles, o mais importante é impor medo e respeito, mostrar que a punição é mortal”, enfatiza. Enquanto converso com Nebrão, ele faz questão de caminhar alguns passos e me mostrar onde três adolescentes foram executados porque “cresceram os olhos” sobre os lucros do chefe. “Quem se envolve com a bandidagem tem que respeitar também a lei do crime”, explica.
Por muito tempo, Nebrão foi conhecido como o maior “ladrão de água e de energia elétrica da Vila Alta”, atividade que depois lhe trouxe problemas com a Companhia Paranaense de Energia (Copel), Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) e polícia militar. Autodidata, se tornou uma espécie de mestre das gambiarras. “Só de olhar, eu sabia o que tinha de fazer. Por R$ 35, eu resolvia o problema de qualquer um. Só ficava sem água ou sem luz quem quisesse”, lembra e acrescenta que já atendeu cerca de 1/3 do bairro.
Famoso pelo serviço rápido, o rapaz desde cedo demonstrou talento em montar e desmontar objetos. Chegou a ser contratado para furtar pontes de córregos. “Dependendo do tamanho, ele não precisava nem de uma hora para desmontar e levar embora”, garante um amigo que entre sorrisos testemunha a conversa. Envolvido com furtos, roubos e receptação de mercadorias desde a adolescência, Nebrão declara que só está vivo porque Deus quis assim. “Quem tem um histórico parecido com o meu não vive muito. Sou um sobrevivente”, garante.
O rapaz tem motivos para pensar assim. Perdeu as contas de quantas noites dormiu sem saber se acordaria. Uma vez atearam fogo em sua casa de madrugada. Nebrão percebeu o incêndio a tempo e escapou da morte, apesar dos prejuízos materiais. “Comecei a ser perseguido porque um cara delatou dois traficantes e deu o meu nome como se fosse o dele. Ele queria me ‘ferrar’”, revela.
Quando tudo parecia ter voltado à normalidade, Nebrão foi surpreendido na rua por dois homens armados. No momento da execução, apesar da insistência dos atiradores, nenhum dos revólveres disparou. “Dei como certa a minha morte. Ouvi só o barulho acionado pelo gatilho, mas a bala não veio. Corri e vieram no encalço com pedaços de pau. Tentaram me derrubar golpeando minhas pernas. Não caí por milagre e consegui escapar mais uma vez”, confidencia o rapaz que é alto e corpulento, o que também pode ter ajudado na fuga.
As histórias de Nebrão são confirmadas por outros vizinhos que se aproximam para ouvir a conversa. Apesar das tentativas de homicídio, continuou no bairro, próximo da família e dos amigos. Mais tarde, um conhecido apareceu na casa do rapaz e gritou: “Ô, nego, chega aí. Quero falar contigo, é papo reto, coisa rápida.” Em seguida, a irmã de Nebrão disse: “Tenha fé, meu irmão. Deus me disse que hoje você vai amarrar o diabo.”
Quando abriu o portão, o sujeito apontou o revólver para Nebrão que começou a orar enquanto mantinha os olhos fixos sobre o atirador. “Ele abaixou a arma, chorou e disse que não aguentava mais aquela vida. Decidiu se entregar para a polícia”, relata Nebrão que em diversas situações foi perseguido por falsas denúncias de delação de traficantes.
Naquele dia, o homem enviado para matar Nebrão já tinha assassinado cinco pessoas na periferia de Paranavaí. Preocupado com o futuro, Nebrão se distanciou do crime, parou de beber, fumar e se tornou evangélico. Admite que atualmente ganha pouco para sobreviver, mas está feliz por não dever nada a ninguém. “É um dinheiro honesto. Quando a situação aperta, trabalho até na roça nos finais de semana”, assegura.
Hoje, se empenha em fazer alguma diferença na vida de crianças e adolescentes que se tornam ladrões ou ingressam no mundo das drogas. “‘Mando a real’ na molecada. Explico que esse caminho não traz nada de bom. É uma ilusão, e se continuar nele vai morrer sem aproveitar a vida. Aos traficantes e ladrões que conheço, peço pra não oferecer droga nem serviço pra eles. O que posso fazer é aconselhar e pedir”, comenta Nebrão que já conquistou bons resultados com essas ações.
Saiba Mais
Nebrão é um apelido fictício para preservar a identidade do entrevistado.
Vivendo na Vila Alta
Garotos de 12 anos contam histórias sobre o cotidiano em um dos bairros mais pobres de Paranavaí
No último sábado, passei a tarde toda na Vila Alta, um dos bairros mais pobres e isolados de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Foi o suficiente para ouvir muitas histórias sobre a realidade de cinco garotos de 12 anos.
Enquanto brincavam, chamei a atenção de um e perguntei se sabia o significado do símbolo na camiseta que ele vestia. Respondeu negativamente com a cabeça e sanei sua curiosidade explicando que era o logotipo da banda cristã de metalcore (uma mistura de heavy metal com hardcore) Devil Wears Prada, dos Estados Unidos.
Quando questionei sua idade, hesitou um pouco, mas contou que tem 13 anos. O amigo ao lado o corrigiu, dizendo que são 12 anos. “Vixi, você não sabe nem sua idade!”, repreendeu. O garoto que vou chamar de R. para preservar a sua identidade justificou que nunca viu os próprios documentos. “Fica tudo com minha vó, ela que sabe dessas coisas”, se defendeu enquanto coçava a cabeça.
R. continuou falando e ressaltou que foi jogado na rua pela mãe quando tinha três anos. “Ela me batia muito, não gostava de mim. Quem me tirou da rua foi minha avó. Se não fosse por ela, eu ainda ‘tava’ lá”, garante. V. aproveita a confidência do amigo para revelar que seu pai sempre bate na sua mãe. Por isso, hoje só dorme na casa da avó. “Não consigo mais dormir com eles. Não durmo em nenhum outro lugar, só na minha avó”, enfatiza.
R., que abandonou a escola, assim como outros dois garotos de uma turma de cinco amigos, já passou muito tempo nas ruas. Com nove anos, além de usuário de drogas, se tornou “laranja” do narcotráfico. “Eu roubava [furtava] também. Um dia, a gente ‘passou a mão’ em uns canos de alumínio e levamos pra uma dona de um ferro-velho. Falamos que a Copel [Companhia Paranaense de Energia] descartou tudo no “Lixão”. Era mentira. A polícia veio atrás e a gente teve de correr”, explica. As histórias de R., contadas com singela inocência e peculiar ausência de noção moral, são confirmadas por um adulto que o conhece há mais de três anos.
Acostumados a passar bastante tempo fora de casa, é costume os garotos retornarem ao convívio familiar tarde da noite. “Fico na casa do V. até as 22h. Tem época que vou embora só pra dormir”, relata R. O tempo livre é ocupado jogando bola, matando passarinhos e brincando no bosque ou em uma área conhecida como “Barragem”.
O costume de matar animais não domésticos surgiu com a fome, mas acontece também de algumas crianças fazerem isso sem justificativa aparente. “Parei porque não é legal”, comenta A. O mais intrigante é que a maneira como falam sobre o assunto não demonstra crueldade, e sim falta de referência entre certo e errado, o que é permitido ou não.
É proeminente o desconhecimento sobre a importância da vida animal. Dois garotos disseram que raptaram filhotes de quati e diversas vezes perseguiram outros animais no Bosque Municipal de Paranavaí apenas por diversão. Esse tipo de situação é incentivada pelas atitudes dos mais velhos. Exemplo é um episódio protagonizado por um pai de família que aproveitou um incêndio no bosque para matar quatro macacos-prego em fuga. Um vizinho denunciou que o homem cozinhou, assou e comeu os animais, acompanhado da mulher e dos filhos.
“Aí já aconteceu de tudo. Teve uma época que a gente vivia fumando maconha lá dentro”, salienta R. enquanto aponta em direção a um buraco feito com alicate na cerca lateral do bosque. W. aproveita a “deixa” do amigo para confidenciar que há dois anos testemunhou um assassinato na “Barragem”. “Vi uma turma matando um cara com golpes de ferro de portão. Só me falaram pra sair de lá”, garante. O local é citado pelos moradores mais velhos como uma área neutra, onde facções criminosas resolviam desavenças e se livravam de cadáveres.
Curioso, um garoto ainda mais jovem e que não faz parte da turma pergunta se estou entrevistando eles. Respondo que sim e pede para escrever que o sonho dele é ter duas armas, andar de “carrão” com uma mulher no colo e ir pra “zona” tomar pinga. “É isso que quero pra minha vida”, complementa sorrindo.
Na sequência, R. lembra que há pouco tempo achou no “Lixão” um saco de balas de revólver. “Só tinha bala vermelha”, afirma. Da turma de cinco amigos, M. é o único que não reprovou na escola e se orgulha do feito, considerado raro entre os garotos do bairro que têm a mesma faixa etária. Muitos crescem sem incentivo para estudar.
“Falam que é bobeira, que estudar não vai dar em nada. Tem pai até que proíbe de ir pra escola”, assegura R. que mal sabe ler e escrever. Também é preocupante o quadro de analfabetismo funcional. Na Vila Alta, muitas crianças leem, mas poucas assimilam o aprendizado a ponto de explicar o que entenderam. Para reforçar o problema, cito como exemplo outra ocasião em que entrevistei dez garotos e seis disseram que estudaram em sala especial.
Em contraponto, é fácil perceber que muitos jovens do bairro são espertos e tem dons que não são aproveitados ou estimulados. Crentes de que o futuro dificilmente vai melhorar, acabam aceitando o convite para ingressar no mundo do crime. “O que mais aparece é gente chamando pra roubar alguma coisa ou vender drogas. Às vezes, você decide roubar porque ‘tá’ com fome”, destaca R., acrescentando que tem crianças do bairro que passam o dia na rua procurando algo pra comer, principalmente as que vivem a dura realidade do abandono ou ausência familiar.
Um dia, me deparei com uma criança no fim da Vila Alta, no “Lixão”, sentada sobre uma placa de “vende-se”, comendo restos de comida descartados por um restaurante do Centro de Paranavaí. Ela parecia não se incomodar com a presença de um urubu se alimentando da carniça de um cachorro a alguns metros de distância. Me aproximei, dei algum dinheiro, ela agradeceu assustada e foi embora. Moradores das imediações me informaram que essa cena não é incomum. “A sua intenção foi boa, mas pode acreditar que isso não vai acabar assim. Precisamos de muita ajuda aqui”, avalia a dona de casa Maria Cândida de Oliveira.