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Machado de Assis: “Devíamos adotar o são e fecundo princípio vegetariano”
“Nada de ovos, nem leite, que fediam a carne. Ervas, ervas santas, puras, em que não há sangue”
“Quando os jornais anunciaram para o dia 1º deste mês uma parede de açougueiros, a sensação que tive foi muito diversa da de todos os meus concidadãos. Vós ficastes aterrados; eu agradeci o acontecimento ao Céu. Boa ocasião para converter esta cidade ao vegetarismo”, escreveu o escritor Machado de Assis no primeiro parágrafo da crônica “Carnívoros e Vegetarianos”, publicada na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro em 5 de março de 1893.
Na obra, um dos mais importantes escritores brasileiros de todos os tempos critica com a ironia e luminescência que lhe era peculiar o hábito humano de consumir carne. “A arte disfarça a hediondez da matéria. (…) Deus, ao contrário, é vegetariano. Para mim, a questão do paraíso terrestre explica-se clara e singelamente pelo vegetarismo. Deus criou o homem para os vegetais, e os vegetais para o homem. Comei de tudo, disse-lhe, menos do fruto desta árvore. Ora, essa chamada árvore era simplesmente carne”, registrou. Machado de Assis se identificava com o vegetarianismo no final do século 19, tanto que ele criou um cenário em que até aqueles que jamais se imaginariam sem carne poderiam aprender a se satisfazer sem ela:
“Enfim, chegou o dia 1º de março, quase todos os açougues amanheceram sem carne. Chamei a família; com um discurso mostrei-lhe que a superioridade do vegetal sobre o animal era tão grande, que devíamos aproveitar a ocasião e adotar o são e fecundo princípio vegetariano. Nada de ovos, nem leite, que fediam a carne. Ervas, ervas santas, puras, em que não há sangue, todas as variedades das plantas, que não berram nem esperneiam, quando lhes tiram a vida. Convenci a todos; não tivemos almoço nem jantar, mas dois banquetes. Nos outros dias a mesma coisa.”
Para o escritor, o vegetarianismo é o caminho da não violência, da simplicidade, da ojeriza à barbárie e da evolução moral e ética. “Porque o vegetariano não cobiça as coisas alheias; mal chega a amar as próprias”, declarou em “Vegetarianos e Carnívoros”. Quando Machado de Assis escrevia para a Gazeta de Notícias, ele descobriu que não havia nenhuma entidade de proteção aos animais no Brasil – a primeira foi a União Internacional Protetora dos Animais (Uipa), sediada em São Paulo. E provavelmente incomodado com o fato, ele escreveu “Direitos dos Burros”, crônica publicada na Gazeta em 10 de junho de 1894. Na obra, o escritor dá voz a um burro que se vê obrigado a falar para reivindicar os próprios direitos:
“Ah! Meu amigo, é justamente o que me traz a seus pés, disse o burro ajoelhando-se, mas levantando-se logo, a meu pedido. E continuou: ‘Sei que o senhor se dá com gente da imprensa, e vim aqui para lhe pedir que interceda por mim e por uma classe inteira, que devia merecer alguma compaixão…” Durante o diálogo, o animal confidencia que os burros deitam a alma pela boca, puxando carros e ossos. Também apanham de chicote, de ponta de pé, de ponta de rédea e de ponta de ferro. Bonançoso e ingênuo, o burro dá mostras de sua incapacidade em reconhecer a literalidade da crueldade humana quando deixa transparecer que a dor talvez seja uma consequência da falta de vigor. “Os burros modernos, esses são mais teimosos e resistem à pancadaria”, comenta, como se o sofrimento pudesse ser justificado.
Bem informado, o animal cita que na Inglaterra os proprietários de animais são condenados por maus-tratos. Cita o caso de um homem que depois de privar quatro potros de comida e água foi condenado a pagar quatro libras esterlinas. Outro sujeito acabou preso. “Um rapaz tirou um ovo de faisão de um ninho; quatorze dias de cadeia. Um senhor maltratou quatro vacas, cinco libras e custas. Condenem a um mês ou um ano os que tirarem ovos ou dormirem na rua; mas condenem a cinquenta ou cem mil réis aqueles que nos maltratam por algum modo, ou não nos dando comida suficiente, ou, ao contrário, dando-nos excessiva pancada”, pede o burro.
Em referência à ganância humana, o animal diz que o burro ama somente a própria a pele, enquanto o homem ama a própria pele e o dinheiro. “Dê-se-lhe na bolsa; talvez a nossa pele padeça menos”, sugere em “Direitos dos Burros”. Outra obra machadiana que reconhece os direitos, singularidade e inteligência dos animais é “Ideias de Canário”, conto originalmente publicado na Gazeta de Notícias em 1895. Na história, o autor apresenta um pássaro que vive cativo em uma pequena gaiola no fundo de uma loja. Lá, o animal falante crê que o mundo é basicamente aquilo que está ao alcance de seus olhos. Ainda assim, não deixa de ter um diferenciado, porém cândido, senso de percepção da vida.
“Que dono? Esse homem que está aí é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo”, argumentou a ave. Depois de explicar que o mundo é muito maior do que ele imagina, o pássaro zomba do homem.
No entanto, quando o homem o leva para casa, apresentando-lhe uma nova realidade, o canário passa por gradual transformação. Em pouco tempo, a gaiola grande e a visão privilegiada das cercanias deixam de ser suficientes, até que o canário foge. “Ideias de Canário” é um conto em que Machado de Assis transparece possível depreciação em relação a quem cria animais em cativeiro, impedindo-os de trilharem seu próprio caminho ou conhecerem o mundo como realmente é.
Em “Reflexões de um Burro”, obra publicada em 8 de abril de 1894, o escritor se coloca como o protagonista que encontra um burro aguardando o próprio fim, caído entre a grade do Jardim da Praça Quinze de Novembro e o lugar onde era o antigo passadiço, ao pé dos trilhos de bonde, no Rio de Janeiro. A cena teve tanto impacto sobre Machado de Assis que ele imaginou como seria um exame de consciência feito pelo animal:
“Por mais que vasculhe a consciência, não acho pecado que mereça remorso. Não furtei, não menti, não matei, não caluniei, não ofendi nenhuma pessoa. Em toda a minha vida, se dei três coices, foi o mais, isso mesmo antes de haver aprendido maneiras de cidade e de saber o destino do verdadeiro burro, que é apanhar e calar.”
Na crônica 15 de março de 1877, do livro “História de Quinze Dias”, o autor evidencia o seu repúdio pelas touradas. Um amigo tenta dissuadi-lo ao justificar que ele nunca viu uma, logo não tem motivos para criticar. Machado de Assis responde que não precisa ver a guerra para detestá-la.
“Nunca fui ao xilindró, e todavia não o estimo. Há coisas que se prejulgam, e as touradas estão nesse caso. E querem saber por que detesto as touradas? Pensam que é por causa do homem? Ixe! é por causa do boi, unicamente do boi. Eu sou sócio (sentimentalmente falando) de todas as sociedades protetoras dos animais”, rebate e acrescenta que touradas e caridade são pouco compatíveis. Também critica a contradição de se fazer corrida de touros para beneficiar necessitados.
Para a pesquisadora Angela Guida, Machado de Assis problematizava a questão da animalidade como uma questão política, de outridade, e não pela via da metáfora animal. “Machado apresenta-nos textos que fogem à representação depreciativa do animal e, de alguma forma, contém certa dose de ativismo”, declara no artigo “Para uma política da animalidade”, publicado na revista Darandina, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Dois dos maiores clássicos machadianos, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Quincas Borba” também trazem à tona a empatia e preocupação com os animais. No primeiro, o protagonista, ressentido pela desesperança nas relações humanas, e tendo como referência a própria vida infecunda, dedica suas memórias, com o usual viés satírico, ao verme que se alimenta de sua carne; assim deixando claro que não raramente os seres humanos não estão acima dos parasitas. Além disso, no pós-morte, Brás Cubas divaga e tem como guia espiritual um hipopótamo que o leva ao reencontro da natureza e de um paraíso que ele jamais conheceu em vida.
Outro personagem emblemático é o cachorro Quincas Borba, da obra homônima da fase realista de Machado de Assis, a quem é destinada toda a herança do falecido. E mais, ao cão deve ser dispensado o máximo de cuidados. O que surpreende também é a apresentação do animal que pode ser facilmente confundido com um ser humano, a partir do tratamento descritivo dado por Machado de Assis. O que inclusive ajuda a reforçar o fato de que animais não são seres de pouco valor.
A caracterização humana do cachorro também é reconhecida pelo seu guardião, Rubião, do início ao fim do livro. O amigo do falecido crê que o cão carrega a alma e a essência do homem Quincas Borba. Levando em conta que os animais normalmente são subestimados, não é difícil imaginar o choque que a ideia de um cachorro com alma pode ter despertado nos leitores brasileiros em 1891. Ademais, Machado de Assis foi muito feliz ao definir o nome do livro, que se refere tanto ao homem quanto ao animal.
“Não podia ver as estrelas, que já então rutilavam, livres de nuvens. Rubião descobriu-as; chegara à porta da igreja, como quando entrou na cidade; acabava de sentar-se e deu com elas. Estavam tão bonitas, reconheceu que eram os lustres do grande salão e ordenou que os apagassem. Não pôde ver a execução da ordem; adormeceu ali mesmo, com o cão ao pé de si. Quando acordaram de manhã, estavam tão juntinhos que pareciam pegados”, escreveu Machado de Assis na página 156 de “Quincas Borba”.
Saiba Mais
Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro em 21 de julho de 1838 e faleceu na mesma cidade em 29 de setembro de 1908. Não há registros consistentes sobre os hábitos alimentares do escritor, mas é inegável a sua contribuição em favor da conscientização em relação ao vegetarianismo e os direitos dos animais.
Referências
Assis, Machado de. A Semana I e II. Editora Globo (1997).
Assis, Machado de. História de Quinze Dias. Editora Unicamp (2009).
Assis, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Editora Ática (2015).
Assis, Machado de. Quincas Borba. Editora Martin Claret (2001).
Guida, Angela. Para uma política da animalidade. Darandina Revisteletrônica (2011). Disponível em http://www.ufjf.br/darandina/files/2011/08/Para-uma-pol%C3%ADtica-da-animalidade.pdf
Filho, Nelson Aprobato. Machado de Assis e as touradas. Scientific American Brasil. Disponível em http://www2.uol.com.br/sciam/noticias/machado_de_assis_e_as_touradas.html
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