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H.P. Lovecraft e o racismo
“O racismo de Lovecraft é um elemento-chave para a compreensão do mundo que ele criou”
Cresci lendo obras do escritor estadunidense Howard Phillips Lovecraft, um dos grandes nomes da literatura de horror e fantasia. Com a chegada da maturidade, comecei a ter uma nova percepção sobre seus livros. Em síntese, percebi por intermédio experiência que não é a mesma coisa ler na adolescência e depois na fase adulta obras como “Herbert West–Reanimator”, “The Call of Cthulhu”, “The Silver Key”, “The Case of Charles Dexter Ward”, “The Dunwich Horror” e “At the Mountains of Madness”, só para citar as mais conhecidas.
É uma constatação natural, levando em conta a versatilidade autoral do escritor, hoje considerado um ícone pop da hipermodernidade que influenciou não apenas escritores e colocou em evidência um novo filão literário, mas também inspirou centenas de filmes, dezenas de séries de TV e milhares de compositores mundo afora, principalmente de bandas de rock e heavy metal.
Porém, há um lado obscuro de H.P. Lovecraft que muita gente desconhece, inclusive fãs que não se aprofundaram muito em seu trabalho. E não falo de nada relacionado a horror ou fantasia. Me refiro ao fato do escritor ser apontado como racista, embora isso seja pouco divulgado sob a justificativa de não acrescentar nem subtrair nada de sua literatura.
Contudo, no ensaio “The Genetics of Horror: Sex and Racism in H. P. Lovecraft’s Fiction”, o escritor Bruce Lord refuta essa afirmação reverberada pelos defensores mais radicais do escritor. “O racismo de Lovecraft é um elemento-chave para a compreensão do seu trabalho e do mundo que ele criou”, informa.
Ele tem razão. Histórias famosas como “The Street” e “The Horror at Red Hook” dão mostras categóricas de discriminação racial e isso não tem nada a ver com a defesa do politicamente correto. São apenas exemplos de que escritores também revelam em menor ou maior proporção os seus preconceitos e pré-conceitos em obras que se tornaram icônicas quando falamos de literatura mundial.
No caso de Lovecraft, o escritor indiano S.T. Joshi, que escreveu sua biografia, diz que é preciso levar em conta o contexto da época. “Não nego que ele era racista, mas naquele tempo todo mundo era”, declara. Contudo, Joshi ignora o fato de que nessa época nos Estados Unidos já havia escritores e antropólogos que usavam a ciência como principal instrumento de combate ao racismo. Dois nomes que merecem ser citados são Franz Boas e Bronisław Malinowski.
Em “The Horror at Red Hook”, Lovecraft apresenta o detetive Thomas F. Malone, um sujeito sensível e com muita imaginação. Quando sai às ruas e observa pessoas de pele escura, ele vê as mais diversas formas do horror. Quem não lê o livro com atenção, pode julgar que o fato de serem negros ou imigrantes não passa de uma casualidade, mas há fontes que provam o contrário.
Sonia Greene, que foi esposa do escritor, confidenciou anos mais tarde que, quando Lovecraft se mudou para Nova York, ele logo deixou claro o quanto era xenofóbico. “Sempre que andávamos em meio à multidão e nos deparávamos com pessoas das mais diferentes raças [etnias], uma característica comum de Nova York, ele ficava lívido de raiva e quase perdia a cabeça”, enfatizou.
No conto “The Rats in the Walls”, de 1923, o gato do protagonista se chama Nigger Man. O nome pejorativo foi trocado em 1950 pela revista Zest Magazine que o nomeou como Black Tom, visando minimizar controvérsias. Em “The Shadow Over Innsmouth”, de 1931, considerado um de seus melhores trabalhos, Lovecraft mostra um personagem que sente repulsão pelos moradores de Innsmouth, assim trazendo um traço biográfico do seu próprio sentimento diante da heterogeneidade de Nova York. O mesmo desprezo veio à tona em 1925, no conto “The Horror at Red Hook”, baseado em suas impressões negativas da população do Brooklyn Heights.
Na biografia “H.P. Lovecraft: A Life by S. T. Joshi”, o escritor indiano declara que Lovecraft simpatizava com hispânicos e judeus, entretanto não sentia o mesmo por irlandeses, alemães e afro-americanos. Por outro lado, há frases em que Lovecraft se posiciona como um antissemita. “Na Polônia e em Nova York, os judeus são de uma estirpe inferior e tão numerosos que seria essencial a mudança do seu tipo físico”, escreveu em uma carta com data de 13 de junho de 1936. De qualquer modo, como os Estados Unidos são uma nação construída por imigrantes é no mínimo paradoxal essa inclinação do autor.
Críticos viram no racismo de Lovecraft um tipo de ausência de amor próprio e até mesmo ódio de si mesmo pela sua condição física fragilizada. Há quem diga que ele se sentia intimidado pela fisicalidade de muitos imigrantes, e isso o tornava odioso e amargo. “O negro é muito inferior. Não pode haver nenhuma dúvida sobre isso, nem mesmo entre os biólogos contemporâneos mais sentimentalistas. Também é um fato que teremos um problema legítimo e muito grave se os negros passarem a ser vistos como iguais aos brancos”, registrou em uma carta escrita em janeiro de 1931.
Um dos autores mais respeitados da literatura de horror do século 20, H.P. Lovecraft influenciou outros importantes nomes da literatura mundial, como o escritor argentino Jorge Luis Borges, William S. Burroughs e Stephen King, além de cineastas famosos como John Carpenter e o mexicano Guillermo del Toro. Sua popularidade cresceu mais ainda com o advento da internet e a divulgação de suas obras em meio digital.
Saiba Mais
Quando a escritora estadunidense Nnedi Okorafor, autora do livro “Who Fears Death”, de 2010, venceu o prêmio World Fantasy Award (WFA) em 2011, ela escreveu um texto sobre o seu desconforto em receber um troféu com o busto de H.P. Lovecraft, logo após uma amiga mostrar-lhe um poema racista escrito por ele em 1912. O episódio também inspirou o escritor estadunidense Daniel Jose Older a criar uma petição pedindo aos organizadores do WFA para substituírem o busto de Lovecraft pelo da escritora Octavia Butler, importante nome da literatura de ficção científica dos Estados Unidos.
Referências
The Genetics of Horror: Sex and Racism in H. P. Lovecraft’s Fiction, Bruce Lord.
Lovecraft Letters Vol. 2, p. 27; quoted in Peter Cannon, “Introduction”, More Annotated Lovecraft, p. 5., 1968.
H.P. Lovecraft: Four Decades of Criticism by S. T. Joshi – Ohio University Press, 1980.
H.P. Lovecraft: A Life by S. T. Joshi Necronomicon Press, 1996.
From New Nation, David Riley, No. 4, p. 20-21, 1983.
The Racial World – View of H.P. Lovecraft, No. 2, by A. Trumbo, 2002.
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Um grande artista nem sempre é um bom exemplo de ser humano
Há inclusive aqueles que foram considerados artistas de caráter duvidoso
É comum alguém acreditar que um grande artista é um bom exemplo de ser humano, até mesmo uma pessoa perfeita, mas é importante ter em mente que isso não condiz com a realidade. Exemplos nunca faltam. Há inclusive aqueles que foram considerados por alguns como seres humanos de caráter duvidoso e que entraram para a história da arte como verdadeiros gênios, como é o caso do compositor alemão Richard Wagner, cujo antissemitismo dizem que chegou a ponto dele declarar que judeus são incapazes de produzir arte. Apesar disso, alguns estudiosos de sua obra dizem que ele tinha alguns amigos judeus.
O maestro judeu Daniel Barenboim, o maior intérprete da música de Wagner, chegou a fazer releituras das obras do compositor alemão em Israel e justificou que o germânico poderia ser repreendido, mas não sua música. “Ele não compôs uma única nota antissemita”, declarou quando questionado sobre o assunto. A explicação se sustenta até mesmo na ponderação de que bondade e maldade enquanto características pessoais são qualidades morais que não se aplicam à arte, principalmente do ponto de vista estético.
O editor do New York Times e crítico literário Charles McGrath defende que uma pessoa, independente de moralidade ou caráter, pode não apenas escrever um bom romance ou pintar uma bela tela como suavizar ou externalizar um grande infortúnio. “Pense em Guernica, de Picasso, ou Lolita, de Nabokov. É um romance excepcional sobre o abuso sexual de uma menor e descrito de uma maneira que faz com que o protagonista pareça quase simpático”, argumenta.
Degas, até hoje cultuado pelo seu perfil fervorosamente humanista, era antissemita e um defensor do tribunal francês que condenou o capitão Alfred Dreyfus, do exército francês, falsamente acusado de traição. Ezra Pound, expoente do modernismo, também era antissemita e protofascista, posições que ele assumia sem receio, embora a maioria não levasse a sério suas declarações sobre o assunto por considerá-lo excêntrico e até mesmo louco.
E na mesma esteira seguia seu amigo T.S. Eliot, da Igreja Anglicana, poeta que se orgulhava de uma posição ideológica muito próxima a de Pound. Já Picasso, sempre chamou a atenção pelos seus relacionamentos conturbados. Das sete mulheres com quem se envolveu amorosamente, duas cometeram suicídio e outras duas enlouqueceram.
Outro pintor com uma história de vida intrigante é o alemão Walter Sickert, referência da pintura avant-garde britânica. A escritora norte-americana Patricia Cornwell publicou um livro em que acusa Sickert de ser o famoso Jack O Estripador. Norman Mailer, duas vezes vencedor do Prêmio Pulitzer, tentou assassinar a esposa.
O pintor Caravaggio e o poeta e dramaturgo Ben Jonson participaram de duelos em que mataram seus adversários sem o menor remorso. E a lista segue extensa. Genet era ladrão, Rimbaud foi traficante de armas e Byron praticou incesto. Flaubert também se envolveu em um escândalo por pagar por sexo com garotos, sim, menores. “A base de toda grande obra de arte é uma pilha de barbárie”, escreveu uma vez o crítico literário alemão Walter Benjamin.
Apesar disso, a arte consegue perseverar como enobrecedora porque ela inspira e transporta o leitor ou espectador. “Ela refina nossas discriminações, amplia a nossa compreensão e simpatia. Se ela faz isso conosco, imagine o que ela não é capaz de fazer com seus autores? Nos apegamos a essas noções porque cremos que a arte nos leva à evolução moral”, enfatiza McGrath.
Questionado se bons exemplos também fazem boa arte, o editor do New York Times responde que há muitos bons artistas que são decentes ou moralmente íntegros. Ou seja, que não são racistas, não batem em suas esposas, não ignoram suas famílias, não praticam injúrias nem mesmo sonegam impostos. “O artista é alguém vinculado à sua própria lei. Ele acaba por ser até mesmo egoísta, mas em muitas situações porque precisa. Grandes artistas tendem a viver para sua arte mais do que para os outros”, declara.
A afirmação de McGrath pode ser facilmente comprovada se avaliarmos as biografias de artistas como Fitzgerald, Faulkner, Bellow, Yates e Agee, homens que tiveram casamentos desfeitos, filhos negligenciados e pouco amados. E será que a arte vale a infelicidade dos mais próximos? Hemingway se casou quatro vezes e teve dois filhos problemáticos.
Quando Gregory completou 21 anos, ele escreveu uma carta ao pai dizendo como ele destruiu sua vida e a de outros quatro familiares. Depois de se tornar uma transexual alcoólatra em Miami, Gregory morreu em uma penitenciária feminina. Outros agravantes eram o perfil mulherengo de Hemingway e suas constantes bebedeiras. Além disso, sempre se importou mais em escrever do que em cuidar da família.
Assim que se casou com Catherine Hogarth, Charles Dickens, um dos mais famosos romancistas ingleses, prometeu que seria um pai e marido exemplar, levando em conta a própria infância miserável, acentuada pela ausência da figura paterna. No entanto, fez tudo diferente. Foi um pai desleixado e péssimo marido. Irritado ao ver que a cada gravidez a sua esposa ficava mais gorda e doente, Dickens se tornou um sujeito amargo.
“Ele expulsou a própria esposa de casa e anunciou em sua revista que fez isso porque ela era uma mãe tão irresponsável que nem os filhos a suportavam. Mais tarde, despachou o filho Edward, de 16 anos, para a Austrália e nunca mais o viu novamente. Dickens morreu sob o domínio completo da arte, uma arte cruel que exige de seus praticantes uma desumana servidão”, avalia Charles McGrath.
Referência
McGrath, Charles. Good Art, Bad People, The New York Times, The Opinion Pages, Global Agenda, Genius At Work. 22/06/2012.