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Howard Lyman, a redenção de um ex-pecuarista
Eu vi o medo nos olhos desses animais, mas até então não me permitia pensar a respeito
Eu acordava cedo, fazia a roçada, ouvia os pássaros cantando e me sentia como o guardião do Éden. Meu sonho era ser um fazendeiro. Então fui para a Universidade Estadual de Montana [nos Estados Unidos] estudar agricultura. Comprei uma fazenda orgânica e com o passar dos anos eu já possuía mais de sete mil cabeças de gado e mais de 12 mil hectares. Lembro como se fosse hoje quando trouxemos os animais e demos a eles entre 7 e 21 vacinas.
Cortamos os chifres, castramos eles, injetamos hormônios e os alimentamos com resíduos e antibióticos. Na fazenda, eu via tantas moscas juntas que você podia pegá-las aos montes apenas abrindo e fechando as mãos. Por isso levantávamos cedo, quando não havia nevoeiro, e pulverizávamos inseticidas por toda a propriedade.
Havia sempre uma grande nuvem flutuando sobre o gado, sobre a água e sobre a comida, e o inseticida atingia tudo. Duas horas mais tarde, o gado se alimentava e bebia aquela água contaminada. Essas são as coisas que aprendi na Universidade Estadual de Montana.
E pensei que estava tudo bem. Mas em minha mente, quando eu observava os pássaros mortos, as árvores morrendo, o solo mudando, eu nem me atrevia a pensar em como eu estava gastando centenas de milhares de dólares em produtos químicos. Eu era o responsável por tudo isso.
Meu irmão faleceu aos 29 anos, e ainda hoje acho que ele morreu por causa desses produtos químicos que usamos na fazenda. Em 1979, quando eu estava no auge da minha carreira, fiquei paralisado da cintura para baixo. É preciso muita concentração para direcionar sua atenção para outra coisa que não seja a sua situação.
No hospital, os médicos disseram que eu tinha uma chance em um milhão de voltar a andar por causa de um tumor dentro da minha coluna [ele começa a chorar porque se sentiu da mesma forma que os bovinos antes de serem abatidos – também debilitados a ponto de não conseguirem se movimentar].
Fui levado para a sala de cirurgia e operado durante 12 horas. Eles removeram um tumor do tamanho do meu polegar. Saí do hospital depois de uma operação com uma chance de sucesso em um milhão. Me lembro de estar na fazenda após a operação.
Eu estava no banheiro e me olhei no espelho, e foi a primeira vez na minha vida que fui honesto comigo mesmo. Toda a minha vida eu disse que amava os animais. E então me perguntei: “Se você realmente ama os animais, se você se importa com eles tanto quanto diz, por que come eles?”
Eu nunca vi um animal pular e dizer que quer ser um hambúrguer. Estive em centenas de matadouros, vi milhares de animais morrerem, e sempre que eu os observava, eu notava que eles sabiam o que aconteceria com eles. Havia o cheiro de morte. Eu me questionava: “Existe alguma necessidade disso?”
Eu vi o medo nos olhos desses animais, mas até então não me permitia pensar a respeito, até que saí do hospital. E quando me questionei, quase derrubei a pia do banheiro. Eu não poderia ir até a minha esposa e discutir isso com ela. Como dizer que temos milhões de dólares investidos em um negócio baseado em alimentar e matar animais? Como eu poderia dizer: “Talvez o que devêssemos fazer é sair desse negócio!”
Como eu desabafaria com meus amigos quando todos eles estavam trabalhando no mesmo ramo que eu? Não tive nenhum apoio. Mesmo que eu tentasse recorrer ao meu sacerdote, seria em vão, porque ele também comia carne tanto quanto eu. Foi o momento mais difícil e mais solitário da minha vida quando abandonei tudo.
Howard Lyman, ativista dos direitos dos animais que passa 11 meses do ano realizando palestras e promovendo a nutrição vegana e a expansão de fazendas orgânicas sem exploração animal. Peaceable Kingdom.
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O chamado dos animais
Se transformaram em uma porquinha eufórica que grunhia e girava em torno do próprio rabo
Ainda tenho fresca na minha memória a lembrança da última vez em que comi carne. Me ofereceram um lanche, o que eu passava até meses sem comer, e aceitei. Afinal, era uma sexta-feira à noite. “Tudo bem, é só hoje”, pensei. Mordi sem pressa e sem o prazer de outrora o alimento que trazia uma variedade de carnes – filé de frango, hambúrguer e pedacinhos de bacon. Era enorme e mal cabia nas minhas mãos, embora elas não sejam pequenas.
Depois de comer, observei o papel branco que envolvia o lanche. O enrolei e o joguei na lixeira. Há muito tempo me acostumei a não comer demais porque não vejo sentido em ir além das minhas necessidades. Sentado, perdi o interesse em continuar lendo um livro que até então invadia meus pensamentos e divagações. Me senti inchado, não pela quantidade de alimento que ingeri, mas por algum motivador que acredito ser biologicamente inexplicável. De súbito, minha boca ficou azeda como se tivesse recebido uma dose de fel. Fui até o meu quarto, me olhei no espelho e não me reconheci. Meus olhos estavam translúcidos e dentro deles vi algo se movendo repentinamente, como que motivado por um descomedido desconforto.
Levei as mãos ao meu abdômen e notei que minha barriga chapada tinha se tornado irreconhecível, disforme e malemolente. Involuntariamente, se distendia numa ocultação criteriosa. Era incompreensível porque não comi tanto. Quando voltei a atenção ao meu rosto no espelho, havia alguns riscos carminados nas escleróticas. Fechei os olhos por um momento e quando os abri tinham se desvanecido. O mesmo aconteceu com as marcas que surgiram na minha barriga, lembrando toques de uma pata. “Que coisa mais estranha! O que está acontecendo comigo?”, me questionei assustado.
Desliguei o computador, apaguei a luz e deitei na cama. Eu estava cansado e o sono prosseguia distante do meu desejo. Fiquei observando o teto e notei que ele se movia aos poucos. Não poderia ser tontura porque minha noção espacial persistia precisa. Ao meu lado, eu enxergava tudo com exímia clareza. Assim que o teto se abriu, como se fosse deslocado de lugar, sem causar qualquer tipo de barulho, desordem ou sujeira, a chuva fresca se lançou diligente sobre mim. Me movimentei sobre a cama com a ligeireza de quem está sofrendo de espasmo hípnico. Em pé e hipnotizado pelo céu enluarado que iluminava meu quarto com uma luz cerúlea, continuei calado, inerte.
A beleza da madrugada outonal que ofertava um aroma variegado de folhas e flores foi ofuscada pelo miasma trazido por uma vaquinha voadora com focinho de porco e pés de galinha. Apesar de tudo, era um animal lindo na sua singularidade desarmônica. Me recordei das pinturas de Corine Perier e Chris Buzelli. A diferença era que elas não tinham cheiro de morte. Quando a vaquinha pousou ao meu lado, a pestilência se intensificou. “Nem bebo! Que bizarrice é essa? Será que estou pirando?”, refleti. Ela ficou me observando sem emitir som. Seus olhos se agigantavam e em seguida diminuíam. Parecia um coração pulsando. E o fedor só aumentando. De repente, deu um mugido misturado com cacarejo e grunhido. Então se inclinou para que eu massageasse sua cabeça.
Antes que eu a tocasse, a vaquinha partiu da mesma forma que chegou – voando e lançando de suas mamas alguns jatos de leite encorpado misturado com sangue. Uma porção impactou sobre minha cabeça. Passei a mão e notei meus cabelos engordurados, com fedentina de coalhada e ferrugem. Respirei profundamente com olhos fechados, tentando restabelecer a serenidade, e quando os abri tudo tinha sumido, com exceção do cheiro de morte que na realidade era emanado do meu corpo, não da vaquinha.
Voltei para a cama sofrendo de indisposição estomacal – dava a impressão de que o lanche estava revirando meu estômago. Dormi menos de uma hora porque ouvi um barulho insólito que se repetia a cada cinco ou dez segundos. Incomodado, inclinei a cabeça por baixo da cama e percebi um bichinho úmido e morno acariciando a minha tez. Era um porquinho landrace que percorria meu rosto com a língua. No escuro, seus olhos cintilavam como se tivessem luz própria. Ele sorria e aquilo era intrigante.
Prestando muita atenção em mim, recuou sorrateiramente, como que arrependido. Tropeçou sobre as próprias patas e chorou. Suas lágrimas escorriam pelo focinho. Acuado num canto ao lado da porta, o medo destacava ainda mais a sua pele rosácea. Fiquei mais confuso e sobressaltado quando o porquinho me fez uma pergunta com voz titubeante: “Por que você comeu minha mãe?”
O questionamento não se repetiu e imaginei que eu estivesse delirando. Não respondi. Preservei o silêncio até a chegada repentina da ânsia de vômito. Pálido, vi minhas mãos tornadas diáfanas. Algo subia dentro de mim enquanto meu corpo esquentava e esfriava. Quando abri a boca, os pedacinhos de bacon se lançaram ao chão inteiriços. Se juntaram como se fossem magnetizados.
Em poucos segundos se transformaram em uma porquinha eufórica que grunhia e girava em torno do próprio rabo. Extasiado, o filhote se jogou sobre ela e, sôfrego, a lambeu. Os dois ficaram ali, juntos, tão próximos que tive a impressão de que dividiam a mesma respiração. Quando desviei os olhos rapidamente, eles desapareceram. Deitei na cama outra vez. Dormi por duas ou três horas até perceber um animal tocando as minhas costas. Era leve e tinha cheiro de quirera de milho e farelo de soja. Havia três pintinhos andando em cima de mim.
Um deles pulou no meu travesseiro e começou a piar como se quisesse alguma coisa. Ciscava tentando transmitir uma mensagem. Levantei e o observei subir pelo meu braço como se fosse uma ponte. Sobre o meu ombro, ele piava com ternura, se comunicando com os outros dois que repetiam o trajeto. Num rompante, a ânsia de vômito veio com tudo. De minha boca saíram alguns pedaços pequenos e inteiros de filé de frango que antes de caírem no chão ganharam a forma de um frango que voou por curta distância batendo as asas e fazendo uma balbúrdia gangosa.
Os pintinhos saltaram sobre ele e os quatro correram porta afora, na escuridão amena da madrugada. Não fui atrás. Com os braços apoiados sobre a cama, assisti tudo sentado, com olhos combalidos e semicerrados. Extenuado, caí na cama e adormeci. Em sono profundo, me vi comendo o lanche da noite passada. A cada mordida, eu sentia a dor da finitude, o aroma ininterrupto da morte. Toda a tristeza diante do passamento era absorvida pelo meu organismo e corpo, fazendo-me experimentar pontuais calafrios.
Medo, ansiedade, estresse, impotência e agonia. Os animais mortos concentravam tudo isso em suas carnes que recheavam meu lanche, fazendo vibrar dentro de mim a aglutinação de uma energia negativa intempestiva e solene emanada pela certeza do definhamento. A dor atravessava a minha essência e me fazia assistir os instantes finais de bovinos, suínos, caprinos e aves. Muitos choravam antes da execução porque reconheciam que suas vitalidades foram inibidas precocemente.
A morte perfazia um caminho tortuoso que subsistia dentro de mim. “Veja a minha dor, sinta a minha dor. Um mundo com animais demais e vidas de menos. Um dia, os humanos vão sofrer como nós. A carne há de sobrar, mas não haverá a quem dar de comer. E assim o mundo vai apodrecer rendido aos excessos desenfreados da produção”, ecoava na minha mente uma voz que embora bem articulada simulava um sincretismo de sons de animais de várias espécies.
“Nasci por esses dias. Veja só o meu tamanho, como cresci. E amanhã já vou morrer porque assim quis o meu criador”, comentou um frango resignado dentro de uma gaiola plástica, antes de ter os pés decepados por um facão. Os mais ingênuos, que não sabiam de seu destino, batiam as asas em vão. Se feriam gravemente, mas lutavam pela liberdade com inocência e inaptidão, já que desconheciam outra realidade que não a do confinamento.
Em uma fazenda enorme a perder de vista, os porcos comentavam entre si que haveria um grande abate no dia seguinte. Um deles conseguiu escapar e revelar a trama aos outros animais encarcerados a 50 e até 100 metros de distância. “Fomos criados pra morrer! Pra morrer! Só isso! Nada mais!”, berrava um jovem porco desajeitado. Durante a madrugada os animais se reuniram e cavaram uma vala mastodôntica. Em sequência saltaram no cabouco e pediram que dezenas de cavalos da coudelaria os cobrissem com terra.
“Pelo menos vamos morrer com dignidade”, argumentou um dos porcos mais bem cotados da propriedade. Optaram por se matar porque acreditavam que perdiam a alma quando serviam de alimento aos humanos. No dia seguinte, todos estavam mortos – filhotes, jovens adultos e animais velhos, abraçados independente de espécie. Em frente ao enorme sepulcro improvisado havia uma frase riscada sobre a terra – “O antiespecismo é como uma vela resfolegando sob a chuva.”
Acordei mais uma vez quando ouvi um grito. Me vi entre grades sendo transportado sobre um caminhão. Procurei minhas mãos e não as encontrei. Olhei para baixo e percebi que eu não era mais um ser humano, a não ser pela minha própria consciência, condição psicológica e emocional. Fisicamente eu era um robusto boi preto ladeado por outros bois. A maioria mantinha-se em silêncio. Somente um boi que se apresentou como Pastiche falou comigo.
“Tá chegando a hora, amigo. Nossa jornada chegou ao fim. Pasto, confinamento e abate. É a nossa sina”, lamentou, projetando um mugido fúnebre e prolongado. De repente, todos ficaram em silêncio, com suas cabeças vultosas mirando as próprias patas. Ouvi um som estranho e uníssono. Era como um ritual que eu não entendia porque eu não era um boi de verdade.
Reconheci o peso da morte quando o motorista do caminhão perdeu o controle e caímos de uma ribanceira. Lá embaixo, onde o capim penetrava minhas narinas e invadia minha boca a contragosto, vi a carroceria quebrada e aberta. Ao meu redor, meus companheiros de viagem estavam mortos, inclusive Pastiche que trazia uma expressão de satisfação em meio à penúria. Havia um cheiro estupefaciente de sangue, estrume e ração à base de milho.
Com poucos ferimentos e escoriações, me levantei e corri pelo prado verdejante. Minhas orelhas altaneiras captaram o som oxítono de uma revoada de andorinhas. Continuei correndo sem parar, por uma terra infinita onde o ser humano jamais poderia me alcançar. Recém-despertado de mais um sonho, fiquei sobressaltado, com o coração disparado, sentindo em meus lábios sabor que parecia ser da minha própria carne. Enleado, vi que ainda repousava ao meu lado o papel branco do lanche, lembrança inolvidável de uma avalanche.
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O destino de Dora
Um dia, não suportou a pressão e caiu desmaiada no piso gelado da sala de trabalho
Eu e Dora nos conhecemos no início de 2008, após o falecimento de seus pais em um acidente na BR-376. Ela tinha 23 anos e trabalhava em uma dessas centrais de teleatendimento há três anos. Após a tragédia, em vez de se preocuparem com a moça, todos os familiares se afastaram. Na mesma época, fui demitido de supetão do jornal porque a editoria em que eu trabalhava foi extinta logo após o editor se demitir.
Mas já fazia um bom tempo que eu e Dora nos encontrávamos para conversar, divagar e relatar planos. Inspirado na obra “Dublinenses”, de James Joyce, o meu era usar o dinheiro da demissão para viajar pela Irlanda. Para ser mais preciso, assistir shows da banda de post-rock God Is An Astronaut e anotar em um caderno tudo que eu via de interessante sobre o comportamento humano no Velho Mundo e sua relação com o tempo e o ambiente. Não queria trabalhar, somente vagar até o dinheiro acabar.
“Quero me distanciar para ter a chance de renascer. O ser humano precisa mudar de tempo em tempo senão pode enlouquecer ou se tornar algo até pior – um sujeito resignado”, comentei com Dora que sorriu enquanto batia levemente as pontas das unhas purpúreas sobre a mesa maciça e rústica do bar. Ela se calou por alguns instantes, observou o céu estrelado, apontou a imensa lua com uma de suas delicadas mãos, abaixou os olhos amendoados, os levantou novamente e disse: “Cara, eu tenho leucemia…”
Fiquei sem reação. E acho que nada que saísse de minha boca naquele momento a confortaria. Então simplesmente recobrei minha expressão serena, fixei meus olhos nos olhos dela e dei cinco toquinhos em sua mão esquerda que repousava sobre a mesa. Ela entendeu e sorriu, sem também dizer palavra. Percebi que Dora não queria conversar sobre a doença, somente compartilhar com alguém uma revelação que não teve coragem de contar a mais ninguém.
Mais tarde, a levei até sua casa e fui embora pensando em como sua situação era delicada. Eu que já tinha perdido meu pai para o câncer em 1997, nunca mais consegui encarar a doença como algo menos do que implacável. Ela usurpa do ser humano muito mais do que a própria vida – aniquila sua dignidade. É a reafirmação de nossas fraquezas, do fim, da efemeridade.
Nos encontramos por mais dois meses, até que um dia, conversando pelo celular, ela sugeriu que não nos víssemos mais. Acabei respeitando sua decisão, compreendendo a delicadeza da situação. Ela já não ligava mais a câmera durante as conversas na internet. Também ocultava a foto do perfil. A questionei uma vez sobre isso e me arrependi. Eu já não a via mais nem por acaso. Talvez ela tivesse tomado a decisão de sair de casa somente a trabalho.
Ainda assim, sei que teria me sentido o mais mesquinho dos homens se partisse para minha jornada errante joicyana. Desisti da viagem para a Irlanda e comecei a escrever sobre Dora. Ainda conversávamos com bastante frequência e pedi que me relatasse sua rotina. No trabalho, ela não contou a ninguém sobre o diagnóstico da doença e continuou vivendo como se não tivesse nenhum problema de saúde. Provavelmente eu era a única pessoa que sabia da leucemia. Olhar para mim talvez fosse o atestado da soma de suas fragilidades.
Nunca a questionei se ela se arrependeu de ter me contado sobre a doença, mas comecei a perceber que se sentia mais vulnerável diante de mim. No celular, sua voz doce se amofinava cada vez mais, combalida pela constante contradança de emoções. Às vezes, aflita e aturdida, me ligava de madrugada. Eu mal ouvia sua respiração ofegante e ela desligava arrependida. Sua sensibilidade se acentuava a cada dia – à flor da pele.
No trabalho, não havia trégua e ela não queria de jeito nenhum assumir publicamente a leucemia. Os clientes que ligavam para a central de atendimento se queixando dos serviços oferecidos, pouco se importavam com a vida ou o estado emocional de quem estava do outro lado da linha. “Você é retardada, minha filha? Sua jumenta! Quero o meu dinheiro de volta! Não vou pagar por um serviço que não usei!”, gritou um homem, afirmando que era juiz e prometeu fazer o possível para vê-la demitida, caso seu problema não fosse resolvido.
As ofensas diárias dos queixosos se intensificavam cada vez mais. Num período de três horas, Dora era agredida verbalmente por até 20 clientes. Insatisfeitos, descontavam na moça a cólera em decorrência de problemas pessoais, profissionais e falhas que estavam muito além de sua função. “Escute aqui, querida! Sou médica, está me ouvindo? Estudei muito pra chegar onde estou e não vai ser uma qualquerzinha do teleatendimento, um trabalhinho sujo desse, pra gente burra e desqualificada, que vai tirar vantagem de mim!”, esbravejou uma mulher que disse ser parente de um deputado.
Um dia, Dora não suportou a pressão e caiu desmaiada no piso gelado da sala de trabalho. Estava pálida, com os lábios arroxeados e suava frio. Tirou a tarde de folga e foi para casa. Entrou no quarto, sentou na cama e observou o próprio reflexo no espelho oblongo. Não conseguia sentir-se bonita como antes e começou a chorar, assistindo as lágrimas percorrendo as covinhas transformadas em fendas após a perda acentuada de peso. Lá se foram dez quilos, seus cabelos perdiam volume rapidamente, e quase ninguém sabia o que estava acontecendo com Dora – embora corressem boatos, muito maldosos.
“Ela era tão linda! Que corpo que ela tinha, hein? Lembra das covinhas? Um charme! Será que sofre de anorexia nervosa? Um desperdício! Não tem mais coxas, bunda…nada!”, comentou seu chefe com um colega de trabalho, sem notar a presença de Dora que ouviu tudo quando estava indo ao banheiro. Sentada sobre o vaso, Dora levou as mãos ao rosto. Se esforçou para chorar, só que não restavam lágrimas. Estava esgotada e sentia-se constantemente desidratada, mesmo se empenhando em beber bastante água.
Inclinou o corpo para frente e pediu, com voz diminuta e vacilante, que Deus a levasse o mais rápido possível se o seu destino fosse a morte. Para ela, nada superava a dor causada pela ignorância e insensibilidade humana. Sair de casa se tornou um exercício tortuoso de enfrentamento das piores adversidades.
Até mesmo na rua, desconhecidos a olhavam como se não estivessem diante de um ser humano, mas sim de algo diferente, inominado. “Mãe, por que aquela moça é tão magra?”, perguntou uma garotinha de dez anos. “Sei lá, filha! Pela cara dela, deve tá com Aids”, respondeu a mulher instantaneamente, crente de que a distância era o suficiente para impedir que ela ouvisse a resposta.
Dora pediu demissão do trabalho como operadora de teleatendimento antes de começar o tratamento de quimioterapia. Se fechou dentro de casa, sobrevivendo de economias e se comunicando com o mundo e as pessoas somente através da internet e do celular. Também abandonou o tratamento. Não saía mais nem para ir ao mercado.
Não conseguia distinguir dia e noite, principalmente quando passava muitas horas deitada na cama, dormindo ou olhando para o teto branco que ganhava formas incertas de acordo com o sentimento predominante. “Não vou mentir, Dora. A verdade é que você tem de seis meses a um ano de vida”, revelou o médico oncologista com subitânea naturalidade.
Se recusando a receber qualquer tipo de visita há meses, Dora decidiu aliviar a própria dor cometendo suicídio com chumbinho. Comprou o produto pela internet para não precisar sair de casa. Pagou frete por sedex e aguardou a chegada. Ouviu alguém batendo palmas, abriu a porta e pela primeira vez em mais de 50 dias sentiu o sol tocando seu rosto níveo. Era morno e lhe afagava as finas maçãs. O céu estava tão claro que ela observou com atenção uma revoada ruidosa e amorável de bem-te-vis.
Caminhou até o portão, pegou o pacote da mão do carteiro e antes de entrar em casa observou um cãozinho preto e silencioso, com poucos dias de vida e o umbiguinho pardo virado para cima. Foi abandonado ao lado do vaso bege de íris, o preferido de sua mãe. Dora se surpreendeu com a resistência do espécime que crescia vistoso e fúlgido apesar do abandono.
Assim que abriu o pacote, quebrou o lacre do chumbinho e foi até a cozinha buscar um copo de água, o telefone tocou. “É a senhora Dora? É aqui do laboratório. Estamos ligando para avisar que precisamos que venha aqui com urgência. Descobrimos erros graves nos seus exames. A senhora nunca teve leucemia, apenas anemia.”
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A história do Preto Velho
Em Cafundó, João de Camargo representa o Brasil miscigenado e heterogêneo
Lançado em 2005, Cafundó, dos cineastas Paulo Betti e Clovis Bueno, é um filme recheado de simbologias que narra a trajetória de João de Camargo (Lázaro Ramos), o mais emblemático preto velho brasileiro. Na obra que teve como cenário várias cidades do Paraná, como Ponta Grossa, Paranaguá e Antonina, João de Camargo representa um símbolo de fé e a figuração de um Brasil marcado pela miscigenação, heterogeneidade e fusão de valores.
Exemplo de toda essa mistura é a ideia do protagonista em criar a Igreja de Bom Jesus do Bonfim que une elementos de umbanda e cristianismo; um revolucionário artifício que pode não ter sido determinante na aceitação dos símbolos religiosos africanos, mas contribuiu para mostrar uma nova realidade que se distanciava daquele contexto europeizado.
A iniciativa de construir uma igreja diferente só surge quando o protagonista decide, após uma vida errante de muito sofrimento, viver para a fé. João de Camargo rompe sua relação com o passado na busca pela redenção. A entrega às crenças religiosas também se relaciona ao fato do personagem assumir o dom para a mediunidade, não ignorando mais as vozes que o acompanhavam, e sim as usando para curar enfermidades.
O Preto Velho era um homem muito à frente de seu tempo, tanto que os primeiros indícios de seu perfil como líder aparecem em 1866, quando o personagem começa a aceitar a vida e o próprio talento para lidar com as multidões e o preconceito racial. Camargo não só estimulava a fé das pessoas em uma divindade, mas também as fazia acreditar no valor da vida e na importância de cada ser humano, independente de credo ou origem.
Embora tenham se passado quase 150 anos, até hoje as influências do Preto Velho na cultura brasileira se estendem por diversas esferas artísticas e religiosas. Mesmo que desde 1988 o Cafundó, remanescente do quilombo situado na região de Sorocaba, em São Paulo, tenha deixado de ser um folclórico espaço físico de casinhas de barro e pau trançado, o lugar ainda é grande como um ambiente imaterial que se multiplica no ideário de quem se preocupa em preservar uma cultura pouco valorizada.
Além da interpretação inesquecível de Lázaro Ramos, é preciso destacar os papéis de Leona Cavalli, Leandro Firmino, Alexandre Rodrigues, Ernani Moraes, Luís Melo, Renato Consorte, Francisco Cuoco e Abrahão Farc. Outro grande atrativo de Cafundó é a trilha sonora de André Abujamra que a cada cena se mostra um exímio manipulador de emoções, introduzindo o espectador por viagens transcendentais. A rabeca entra na história como um recurso estilístico que pauta o tempo e os rompantes do acaso.
O santo egoísmo
Viridiana e a personificação da crítica de Buñuel ao catolicismo
Lançado em 1961, Viridiana, do cineasta espanhol Luis Buñuel, é um filme de crítica social e religiosa que revela o egoísmo de uma noviça que, na esperança de alcançar a redenção, oferece abrigo e fartura a um grupo de mendigos.
A personagem Viridiana (Silvia Pinal) que empresta nome ao filme é a personificação da crítica de Buñuel ao catolicismo. Na obra, Dom Jaime (Fernando Rey) tenta ter uma relação incestuosa com a sobrinha noviça. Em uma noite, ciente de que a moça não o aceitaria, pede ajuda a empregada Ramona (Margarita Lozano) para colocar sonífero na bebida da sobrinha. Consumado o plano, Dom Jaime pensa em estuprá-la, mas desiste da ideia.
No dia seguinte, diz para Viridiana que ela não pode voltar ao convento porque ele tirou-lhe a virgindade. Por meio da perversão, a cena evoca uma crítica sagaz ao comportamento da burguesia espanhola. Perturbada, a noviça decide partir, então Dom Jaime conta a verdade. Ainda assim, a moça se recusa a continuar na residência. Retorna somente quando está prestes a deixar a cidade e recebe a notícia de que o tio cometeu suicídio por enforcamento.
Em ato de expiação, Viridiana se muda para a mansão, onde busca a redenção oferecendo abrigo e fartura a um grupo de mendigos. Luis Buñuel mostra uma contraditória faceta do catolicismo ao apresentar a conduta de Viridiana como uma falsa abnegação. Certo dia, quando a moça sai e deixa a propriedade sob os cuidados dos andarilhos, eles invadem a casa principal e preparam um banquete. A memorável cena dos mendigos em torno da mesa é uma corrosiva paródia da pintura “A Última Ceia”, de Leonardo da Vinci.
O clímax da violência estética do clássico de Buñuel surge no momento em que um mendigo tenta estuprar Viridiana. Impossibilitado de ajudá-la, o primo Jorge (Francisco Rabal) evita o pior oferecendo dinheiro a outro andarilho. Este mata o companheiro, e assim o cineasta corrobora a ideia de que abaixo da linha de pobreza a força do capitalismo também se sobrepõe de forma virulenta ao humanismo e à religiosidade.
Na história, os andarilhos, entregues a uma condição de vida primitiva, são incapazes de agregar valor a qualquer coisa imaterial; não se reconhecem como semelhantes e vivem em um universo onde a hierarquia pode ser interpretada como a de uma cadeia predatória.
Latinha, infância fragmentada pelo crack?
O texto abaixo é o primeiro de uma série de publicações com o tema Personagens do Submundo de Paranavaí em que relato com ênfase na subjetividade humana as experiências de pessoas que mesmo solitárias e marginalizadas conseguiram reencontrar a sua humanidade.
Um garoto que superou abandono, violência, miséria, escravidão, vício e solidão
Latinha, 13, é um garoto de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, que se tornou dependente químico aos seis, época em que foi coagido pela primeira vez a fumar crack em uma lata de refrigerante. Ao longo de cinco anos, viveu sem qualquer perspectiva de futuro, vagando pelas ruas, onde um universo aterrador criado a partir de um caos alucinógeno o afastou da realidade, espoliando sua humanidade.
“Chega uma hora que você vira bicho, rasteja pela sujeira e acha que está no paraíso”
A violência
“Lembro que cheguei em casa e vi meu padrasto batendo outra vez na minha mãe com um porrete que guardava embaixo da cama. Ela sangrava e eu comecei a chorar e pedi pra ele parar”, narra Latinha. Encolerizado, o homem o perseguiu. Não o alcançou, então arremessou o bastão e atingiu a criança pelas costas.
O golpe violento jogou Latinha contra a parede. Sentiu tanta dor que se limitou a chorar, sem conseguir se mexer. “Minha mãe me mandou correr. Nem sei de onde tirei força pra levantar, mas fiz o que mandou. Voltei pra casa no dia seguinte. Não encontrei nada nem ninguém, só umas manchas de sangue no chão e perto da janela”, relata o garoto que era filho único e continuou morando na casa, sem saber o paradeiro da mãe.
A inocência
Latinha tinha cinco anos e estava sozinho no mundo, sem ter o que comer, sem outra roupa para vestir e sentindo muito medo de existir. Então começou a se alimentar dos restos de comida que encontrava em sacos de lixo. Em uma das andanças, conheceu o órfão Naldinho Caneta, 8. Os dois tornaram-se amigos e decidiram morar juntos na residência da mãe de Latinha, um casebre de três cômodos e sem mobília, com as paredes cheias de fissuras.
A dupla dormia sobre um chão forrado de papelão e jornal velho e não se importava em dividir o espaço com invasores como ratos e baratas. Também pegavam animais de rua e levavam para casa. Com a ajuda de Naldinho, latinha abrigou até 27 cães e 15 gatos durante algumas semanas em 2003. Ameaçados pelos vizinhos, os garotos tiveram de encontrar novos tutores para os animais.
O trabalho
Mesmo sem uma fonte de renda fixa, e vivendo às raias da miséria, não tinham o hábito de pedir esmolas. Para sobreviver, investiam na coleta de materiais recicláveis. O lucro era pouco, mas a dupla até que se divertia. “Só era ruim mesmo quando alguém roubava as nossas coisas. Não podia dar bobeira e deixar o carrinho sozinho”, lembra Latinha que em parceria com Caneta trafegava pela Avenida Heitor Alencar Furtado todos os dias.
Até escaparam da morte numa manhã de domingo, quando um motorista embriagado invadiu uma ciclovia próxima a entrada da Vila Operária e jogou o carro sobre a dupla. “Só puxo mesmo pela memória os raspões nas pernas e nos braços. O Naldinho foi jogado sobre uma calçada, mas conseguiu levantar, sem nenhum machucado, apesar de assustado e um pouco tonto. O motorista deu ré e se mandou”, afirma.
O castigo
Após o acidente, Latinha e Naldinho tiveram de mostrar ao proprietário o estado do carrinho usado no transporte de recicláveis. O homem conhecido como Lanterna alugava o veículo por uma diária de R$ 5. Os chamou para conversar no fundo do quintal. Lá, passou a mão em um reio, antes mergulhado num latão que tinha um líquido estranho, ardido e fedido. Ficaram com medo e tentaram correr. Não deu tempo.
Cada um recebeu cerca de 25 chicotadas e nos últimos golpes os garotos desmaiaram sobre o solo arenoso. Latinha acordou com as unhas cheias de sangue porque segurou com muita força no chão. “Sentimos tanta dor que fizemos até xixi e cocô”, revela e em seguida ergue a camiseta para exibir algumas marcas deixadas por Lanterna nas costas e no abdome.
Além da punição, Latinha e Naldinho tiveram de trabalhar de graça por três meses em uma carvoaria clandestina nas imediações de Porto Rico. O serviço era de segunda a segunda, durava umas 18 horas por dia e dormiam lá mesmo, do lado de umas pilhas de lenha e em cima de umas estopas sujas e rasgadas. Só tinham direito a duas refeições, quase sempre virado de feijão, e tudo era controlado.
A cegueira
No último mês de trabalho na carvoaria, empreenderam fuga por uma erma estrada de chão. Só correram algumas centenas de metros até serem alcançados pelo filho de Lanterna. O rapaz os levou de volta até a carvoaria e não revelou o acontecido ao pai. No dia seguinte, se recusaram a trabalhar, então Lanterna decidiu puni-los. Os amarrou e esfregou em seus olhos um punhado de brasa enrolada num pano. Latinha ficou dois dias sem enxergar e chorou dia e noite. Quem sofreu mais foi Naldinho que por ser mais velho recebeu castigo dobrado. Só recuperou a visão depois de cinco dias. Nesse período, Latinha cogitou a possibilidade de serem mortos.
Quando perderam a visão, foram isolados em um chiqueiro. Eram alimentados às escondidas pelo filho de Lanterna que não concordava com a conduta do pai e os visitava com certa frequência. De vez em quando, escutavam o algoz reclamando e esbravejando algo como: “Seus lixos, não servem pra nada, nem o diabo vai querer duas pestes como vocês.”
“O presente”
Antes de completarem três meses de trabalho na carvoaria, Lanterna prometeu um presente, algo que chamava de “Disneylândia” e “Terra da Fantasia”. Entregou aos dois um saquinho com pedrinhas que pareciam pedacinhos de rapadura. Falou para fumarem, salientando que dava uma sensação muito boa e espantava tudo de ruim.
Latinha e Naldinho se recusaram a experimentar. Com facão em punho, Lanterna gritou que ninguém sairia da carvoaria sem fumar pelo menos uma pedra. O homem improvisou um cachimbo com uma lata de refrigerante e os forçou a tragar. Na primeira baforada, até acharam que poderia ser bom. “A gente não tinha certeza da aparência do crack, nunca tinha visto de perto”, diz Latinha, argumentando que evitavam qualquer contato com dependentes químicos pelas ruas de Paranavaí.
As primeiras sensações após o uso da droga foram de prazer, bem-estar e ligeira excitação. Logo que fumaram ficaram “ligados” e, com o coração célere, transpiraram e sentiram uma energia diferente. De repente, o mundo infantil se transformou. Naldinho ganhou pupilas dilatadas, mãos trêmulas e uma boca entreaberta. Na mesma noite, foram abandonados ao lado do chiqueiro, num chão ocupado por restolhos, cavacos queimados e fezes de animais. As costas estavam amortecidas por pneus velhos e sujos de graxa com as bordas embebidas em urina humana.
A degradação
Dias depois, retornaram à cidade. Não eram mais os mesmos. Estavam afundados em um universo de degradação. Na primeira semana alimentando o vício, Lanterna forneceu de graça as pedras de crack. Tudo mudou. Era preciso pagar R$ 5 por uma pedrinha minúscula. Então corriam atrás de bicos para continuarem comprando. Se passassem muito tempo sem a droga ficavam nervosos, em um estado que chamam de “noia”.
A princípio, a dupla aceitava qualquer tipo de serviço para ter acesso ao crack, menos participar de atividades criminosas. Mesmo assim, não demorou para trocarem a dignidade pelo vício. Latinha se recorda do episódio em que comeram um par de meias sujas e embebidas em urina e fezes em troca de R$ 10. Deixaram marcar as mãos com ferro em brasa por causa de um “bagulho”. Aceitaram que um rapaz passasse com a moto sobre seus pés em troca de R$ 5 para cada. Quanto mais tempo ficavam longe da droga, mais se tornavam capazes de atos inimagináveis.
Meses depois, a dupla de sete e nove anos foi introduzida como “laranja” no narcotráfico local, transportando pequenas quantidades de drogas entre os bairros. Rodavam toda a cidade, atendiam as bocas de fumo do Jardim São Jorge, Campo Belo, Canadá, Morumbi, Simone, Vila Operária e outras áreas. À época, perceberam que em Paranavaí havia pessoas de grande poder aquisitivo investindo no tráfico de drogas. “Vi gente importante que bota banca de certinho e roda de carrão importado pela cidade envolvida nisso”, comenta.
As alucinações
Latinha teve muitas alucinações quando fumava crack. Algumas remetiam ao passado enquanto outras eram indecifráveis e surreais. Assegura que teve visões com quem perdeu contato há muito tempo, até pessoas falecidas. O garoto gostava de ver um mundo mais colorido e mais vivo. O problema era quando o efeito passava. Ficava tudo preto, embaçado e sem vida, o que os motivava a fazer de tudo para continuarem usufruindo de um estado alucinógeno que chamavam de arco-íris. Divagavam com a ideia de um buraco se abrindo no chão e os puxando para dentro. “Tinha vez que o barato passava e eu me dava conta de que estava agarrado a um poste ou abraçado a uma placa, com o corpo tremendo”, confidencia.
Quando se drogavam, o mundo se fragmentava. Não sabiam se era dia ou noite, se estava frio ou calor. Acordavam em lugares desconhecidos ou dos quais não se recordavam mais. Por vezes, não reconheciam as pessoas e esqueciam até mesmo quem eram. “Chega uma hora que você nem parece gente, rasteja pela sujeira e acha que está no paraíso. Depois começa a viver com medo e sempre que percebe alguém te olhando acha que estão te perseguindo, até mesmo os animais. O cheiro e o sabor das coisas perdem o sentido, deixam de existir. Não sobra nada, só um vazio”, desabafa Latinha enquanto mira o horizonte e ajeita o boné sobre a cabeça.
Ato heroico I
Para Latinha, se não fosse por Naldinho Caneta dificilmente teria sobrevivido a tantas desventuras. A primeira foi em 2004, quando estava dormindo e deixou uma vela cair sobre o chão forrado com papelão. As chamas se alastraram pela casa. O pior foi evitado porque Naldinho tinha saído para procurar comida e retornou antes do esperado. Ao se deparar com o fogo, não pensou duas vezes antes de invadir o casebre. Com apenas oito anos, conseguiu abrir a porta, passou pelas chamas, pegou Latinha no colo e o levou para fora. Quando abandonaram a casa, os bombeiros ainda não tinham chegado. O mais surpreendente é que a dupla teve apenas queimaduras superficiais.
Ato Heroico II
Não foram poucas as vezes que Naldinho se envolveu em brigas para defender Latinha de outros menores de rua que o tentavam roubar e explorar. Aos 11 anos, Caneta colecionava cicatrizes pelo corpo. Eram marcas de pedradas, pauladas, garrafadas, chicotadas, até mesmo facadas. Apesar das dificuldades cotidianas, ainda despontava como um herói do submundo. O aposentado João Bosque da Silva, 78, se recorda de quando foi salvo por Naldinho.
“Recebi a aposentadoria e estava descendo pela Avenida Salvador, perto do Terminal Rodoviário Urbano, daí uma turma de moleques veio pra cima de mim mandando entregar todo o dinheiro. Me recusei e então o maior me mostrou uma faca”, relembra o aposentado. Naldinho Caneta que estava em um terreno baldio ao lado escorou sobre o muro e arremessou pedaços de tijolos contra os garotos.
Enraivecidos, os infratores saltaram para o interior da propriedade. Nem imaginavam que estava lá dentro com um cão rottweiler. João Bosque ouviu o garoto falando para o animal atacar os invasores. Sem demora, Naldinho saltou o muro e correu, sem dar tempo do aposentado agradecê-lo.
A superação
Um dia, a dupla estava vagando pelo Centro de Paranavaí quando Naldinho viu o próprio reflexo em frente a uma vitrine de uma loja de roupas. Tirou de dentro do bolso uma foto um pouco amassada, suja e falou: “Tá vendo, Latinha. A gente é isso aqui e não aquilo ali. Não me vejo naquele vidro. Você se vê? Por que me sinto como se tivesse vivo na foto e morto aqui fora, sendo que todo mundo sabe que não existe vida num pedaço de papel? Que loucura, né? A gente tem que mudar, Latinha, viver aqui fora e não na foto.”
Na imagem tirada antes da dependência química, Latinha, 6, e Naldinho, 8, aparecem descalços, mal vestidos e sujos. A maior diferença é que estão sorridentes e brincando em um lixão na Vila Alta, onde ao fundo se destaca um urubu sobre um sofá velho. Durante toda a entrevista, esse é o único momento em que Latinha treme e chora. Por instantes, se cala, segurando e observando a foto.
Após a autorreflexão em frente à loja, a dupla decidiu se afastar do crack. Nos quatro meses que se seguiram foi muito difícil, um teve de dar apoio ao outro, evitar recaídas. Latinha e Naldinho superaram o vício. Abandonaram tudo que faziam para reconstruir a casa queimada. Saíram pelas ruas da cidade procurando crianças e adolescentes sem-teto.
Reuniram nove menores, entre andarilhos e jovens que sobreviviam se prostituindo. Durante o dia, percorriam as construções, pedindo restos de materiais. Recolhiam as doações com uma carriola velha, descascada e barulhenta, que tinha o pneu careca, já exibindo o arame. Cinco meses depois, terminaram a reconstrução e a ampliação da casa que ganhou três novos cômodos.
Os conflitos
No quintal, fizeram uma horta grande que mais tarde se tornou um negócio rentável. Uma parte da produção era vendida em mercearias e a outra destinada ao comércio ambulante. Logo surgiram conflitos internos, pois nem todos contribuíam. Enquanto alguns se empenhavam em trabalhar e transformar a casa em um ambiente melhor, outros passavam o dia sob a sombra de uma enorme mangueira.
Latinha e Naldinho tentaram resolver a situação. Não houve acordo e pediram que os moradores insatisfeitos deixassem a casa. Neemias, 17, Pardal, 16, e Bota, 16, nem discutiram, apenas observaram Naldinho e Latinha por segundos antes de partirem sem rumo, rindo do acontecido. Na manhã seguinte, quando a dupla estava prestes a sair para fazer as compras da semana, perceberam que todo o dinheiro economizado e guardado nos furos de duas lajotas recostadas ao muro da casa foi levado.
Latinha e os demais quiseram recuperar o dinheiro, mas foram impedidos. Naldinho chamou-lhes a atenção e justificou. “Eles precisam mais do dinheiro. Vamos entender isso como um pagamento pelo que fizeram aqui. Aquela quantia não significa nada perto do que a gente conseguiu.” Todos refletiram a respeito, só que não o suficiente para amenizar a raiva. Só desistiram de ir atrás do trio por causa da interferência de Naldinho.
A covardia
Meses depois, em agosto de 2010, num final de tarde, Caneta empurrava pela Avenida Salvador, em direção ao Terminal Rodoviário Urbano, uma carriola onde levava um pouco de alface, almeirão e couve. Abordado por Neemias, Pardal e Bota, Naldinho encostou o carrinho de mão rente ao meio-fio. De acordo com o comerciante aposentado Geraldino Gonçalo, os três ordenaram que o garoto entregasse todo o dinheiro. Sem discutir, Caneta os observou atentamente e esvaziou os bolsos.
Insatisfeitos, Pardal e Bota tomaram-lhe a carriola, despejaram as hortaliças perto da guia e empurraram o garoto contra um muro branco, bem desgastado. Naldinho ergueu as mãos, sinalizando que não queria brigar, ainda assim Neemias sacou um revólver de calibre 32 que estava preso ao cinto. Disparou três tiros à queima-roupa contra o peito de Caneta que deslizou as costas pelo muro, caindo sentado, deixando um rastro vermelho.
O sangue de Naldinho, que contrastou com a pele bronzeada e a camiseta branca, cobriu de vermelho até o par de chinelinhos de dedo e se esvaiu pela calçada, se misturando à água e aos restos de alface, almeirão e couve que escorriam pela sarjeta. Gonçalo gritou por socorro e se aproximou logo que os garotos fugiram. “Ainda vi um fio de vida nos olhos daquele menino quando me aproximei. Cerrava os dentes cheios de sangue e olhava pro céu como se suplicasse pra não morrer. Lutou muito. Só que a ajuda demorou e ele não suportou. O pior é que eu e outras pessoas apenas assistimos ao acontecido, sem fazer nada. Tive vergonha de mim mesmo”, testemunha Geraldino Gonçalo.
O desespero
Quando soube do acontecido, Latinha entrou em desespero e correu até o local do crime, onde mandou todos se afastarem. Em meio aos curiosos, pediu que alguém o ajudasse a colocar Naldinho sobre a carriola abandonada na esquina. Na versão de Latinha, ninguém o ajudou, então tirou a camiseta, forrou o interior do veículo e sozinho deitou o corpo de Caneta, já sem vida. Empurrou o carrinho de mão até em casa, onde colocou Naldinho sobre a cama e passou a noite acordado, escorado sobre a janela, pensando, sem ter a mínima ideia do que fazer.
Antes do amanhecer, vestiu o amigo com a melhor roupa, enrolou o corpo em lençóis brancos e cuidadosamente o deitou em um buraco no quintal, ao lado de uma jabuticabeira, onde Naldinho e Latinha talharam os próprios nomes meses antes do assassinato. Enquanto suas lágrimas embaçavam a visão e umedeciam o solo, Latinha abriu uma caixa de madeira. Do interior, despejou centenas de canetas das mais variadas cores, tipos e tamanhos sobre o corpo do amigo.
O ritual
Eram itens de uma coleção iniciada anos antes. Naldinho as encontrou em buracos, lixões, tampas de galerias, calçadas, ruas, guias ou apenas descartadas por transeuntes nas lixeiras públicas. A preferida de Naldinho era uma caneta tinteiro Parker verde-nassau, de fabricação estadunidense, que já não funcionava mais, tirada da sarjeta em frente a um escritório de contabilidade. “Muitas vezes, antes de dormir, ele pegava essa caneta e ficava deitado de barriga pra cima dizendo que parecia uma joia de tão bonita. Sonhava em um dia conhecer a fábrica da Parker nos Estados Unidos. Toda caneta que encontrava, Naldinho trazia pra casa”, enfatiza Latinha que antes de enterrar o amigo colocou em sua mão a Parker verde-nassau.
A cada pá de terra jogada sobre Naldinho, Latinha se sentia mais distante. Ao redor do amigo, os outros seis menores que viviam na casa se mantiveram cabisbaixos e calados. Não se pronunciaram nem quando Latinha esfregou contra o rosto e o peito uma ponta solta do lençol branco que cobria Naldinho. Antes de fechar o buraco, cavou com a mão um punhado de terra próximo da cabeça do amigo e o jogou contra o próprio corpo. Após o enterro, sem unção ou qualquer tipo de oração, Latinha se ajoelhou, manteve o rosto contra o solo, fez uma promessa e se levantou.
A decisão
Depois de refletir, previu que não tardaria até a Polícia Militar e o Conselho Tutelar aparecerem na residência. Sugeriu que os outros procurassem uma morada provisória. Sozinho, Latinha foi até a casa de um conhecido que vivia no Jardim São Jorge e lhe devia favores. Pegou emprestado um revólver de calibre 380 e outro de calibre 38. Guardou as armas dentro de uma mochila recheada de munição e saiu noite afora, a pé e solitário, guiado pela escuridão que o inebriava a ponto de não sentir as pedras que se fixavam na sola fina de um velho tênis All Star, presente de Naldinho.
Passou três dias sem dormir, como um errante, carregando nas costas o que chamou de senso de justiça. O “saco de chumbo” o impedia de ter sono. Era o peso da consciência por não ter previsto o que aconteceria com Naldinho. Latinha sentia a mochila leve somente quando imaginava a morte de Neemias, Pardal e Bota.
Se preparando para um banho de sangue, passava o dia todo pensando apenas em ver as vidas dos inimigos se esvaindo diante de seus olhos. “Tudo precisava ser feito bem devagar, na mesma intensidade da dor que causaram. Pra mim, não restava mais nada. Eu tinha todo o tempo do mundo pra dar cabo daqueles vermes”, rememora, reproduzindo o sentimento da época.
Os encontros
Quatro dias depois da morte de Naldinho Caneta, Latinha finalmente encontrou Neemias, Pardal e Bota. Os três estavam deitados em volta do tronco de uma mangueira no fundo de uma casa abandonada no Jardim Ipê. O garoto invadiu o local com cautela. Se aproximou um pouco, abriu a mochila, sacou o revólver de calibre 32 que já estava carregado e o engatilhou. “Meu dedo coçava de vontade de atirar. Ao mesmo tempo, eu tremia e meus olhos pareciam em chamas”, admite.
Prestes a dar o primeiro disparo, Latinha conta que em meio ao clima abafado surgiu uma brisa que o fez sentir calafrios por todas as extremidades do corpo. Repentinamente, abaixou a arma e caminhou em direção a Neemias. Nenhum dos três estava acordado e Latinha percebeu que naquele ambiente apenas os poucos movimentos dos galhos e das folhas da mangueira inspiravam vida. Parte do cal virgem fixado ao tronco da árvore se desprendeu e deslizou com sutileza em direção ao chão, onde repousavam os três garotos.
Quando o cal tocou os primeiros fios de cabelo de Neemias, Pardal e Bota, que pareciam alinhados na mesma posição, Latinha os arrastou um a um até a sombra de uma jabuticabeira livre da caiação, onde ramagens de alfazema perfaziam uma pequena trilha. Àquela altura, o cal já tinha coberto os cachimbos de crack improvisados com tubinhos de caneta que adornavam a mangueira. “Tinha uma poça d’água do lado da árvore com as mesmas cores que formam um arco-íris”, sublinha.
Minutos depois, colocou o revólver de volta na mochila e partiu sem acionar o gatilho nenhuma vez. Devolveu a munição e as armas emprestadas e fez o trajeto de volta para casa. No caminho, quando descia pela Rua Antônio Felipe, reconheceu a fisionomia de um idoso que empurrava um carrinho de frutas. Era o avô com quem perdeu contato aos quatro anos. Latinha ficou um pouco receoso, mas arriscou uma aproximação e se apresentou.
De olhos marejados, o idoso soltou o carrinho e, com mãos trêmulas, abraçou o neto, de quem não tinha notícias desde 2001, ano em que o padrasto de Latinha o ameaçou e exigiu que não os procurasse. “Ele usava a mesma boina cinza de quando o tinha visto pela última vez”, acrescenta o garoto que contou ao avô João Bosque da Silva tudo que passou desde o último contato. Naquele dia, unidos pelo acaso ou destino, os dois partiram juntos na alvorada, sob um auspício de esperança.
Curiosidades
O apelido Latinha surgiu por causa da habilidade como coletor de latinhas.
O sonho de Naldinho era um dia tornar-se escritor, o que justificava o seu carinho e esmero por canetas.
Por algum tempo, a casa de Latinha ainda serviu de abrigo para andarilhos e sem-tetos, até que novos conflitos fizeram com que tomassem a decisão de alugar o imóvel.
Latinha, que é apontado como um dos melhores alunos do colégio onde estuda, nunca mais soube da mãe e até hoje mora com o avô, o seu responsável legal.
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O solo frágil que prosperou
A redenção do Noroeste veio com a evolução do solo do arenito Caiuá
Durante muito tempo, a região do arenito Caiuá foi estigmatizada como uma grande área de terras inférteis por causa da fragilidade do solo arenoso. Felizmente, o tempo e as técnicas adequadas se encarregaram de dar ao Noroeste do Paraná a merecida redenção.
No passado, muitos agricultores tentaram produzir na região do arenito Caiuá o que se produzia no basalto, nas áreas de terra roxa. O resultado foi um grande prejuízo e a crença de que o solo era infértil. A desinformação incutiu na mente da classe rural a ideia de que a solução seria ocupar o solo somente com pastagens, e assim logo o campo foi tomado pelo gado. Uma das grandes consequências foi o êxodo dos colonos, transformando a zona rural em um espaço pouco habitado. “Os grãos do arenito não proporcionavam bons rendimentos, então a escolha pelo pasto foi quase unânime”, conta o pesquisador Pedro Auler, do Instituto Agronômico do Paraná (Iapar).
As dificuldades em se trabalhar com lavouras no arenito Caiuá perduraram por muito tempo, mas isso jamais significou que o solo fosse incapaz de evoluir. “Aos poucos, levando em conta condições diferenciadas de clima e solo para uma mesma cultura, ficou claro que o potencial de produtividade do arenito Caiuá poderia ser igual ao do basalto”, diz o pesquisador Jonez Fidalski, também do Iapar.
Os pesquisadores descobriram que as necessidades nutricionais do solo arenoso são mais fáceis de serem atendidas do que as da terra roxa. Fidalski explica que na região do arenito Caiuá é fácil reconhecer a deficiência nutricional da planta e repor o que ela precisa para produzir. “O nosso solo tem uma grande capacidade de resposta, ao contrário do solo basáltico”, avalia.
Segundo engenheiros agrônomos e pesquisadores, os gastos para se produzir no solo arenoso e no basalto podem ser tranquilamente equiparados. No entanto, é importante tomar algumas precauções. “No arenito Caiuá, recomendo que não se faça o trato cultural com herbicidas, e sim na base da roçada porque mantém mais umidade e segura os micronutrientes dos insumos”, destaca o gerente da Empresa Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) de Paranavaí, Valter Martins Pessoa.
O pesquisador Jonez Fidalski afirma que é muito seguro investir em lavouras na região do arenito Caiuá graças as novas técnicas de plantio direto. “Além de ser uma prática bastante cômoda, o sistema de adubação da técnica proporciona a renovação do solo”, complementa Fidalski. O engenheiro florestal João Arthur de Paula Machado declara que apesar dos contratempos vividos pelos agricultores no passado, a região do arenito Caiuá pode ser considerada altamente próspera. “Representa muito bem a agricultura do Paraná e do Brasil”, enfatiza.
A importância da classificação do solo
Segundo o pesquisador Jonez Fidalski, do Instituto Agronômico do Paraná (Iapar), a partir do momento que um produtor rural conhece as classes de solo existentes em uma propriedade, ele evita principalmente a erosão hídrica. “A classificação de solos também é importante para se identificar qual é o tipo de cultura que melhor se adapta a determinada região. Por isso, levamos em conta o teor de argila”, justifica o pesquisador.
Segundo Fidalski, a melhor forma de definir as classes de solo é por meio da determinação granulométrica (areia, silte e argila) feita a partir da abertura de uma trincheira com dimensões de 1m por 1,50m. “É oportuno salientar que a região Noroeste do Paraná, com seus três milhões de hectares, apresenta outras classes de solos, principalmente nas áreas de transição com o basalto”, frisa o pesquisador.
Grama mato grosso é a ideal
A grama mato grosso ou batatais é a mais recomendada para agricultores da região Noroeste do Paraná. A planta oferece mais umidade do solo e também melhor taxa de fotossíntese, segundo estudos do Instituto Agronômico do Paraná (Iapar). “Ela age profundamente no solo, adquirindo mais nutrientes e usufruindo de recursos que outras plantas mais rasteiras não conseguem captar, como a leguminosa amendoim forrageiro”, explica o pesquisador Jonez Fidalski.
A escolha da grama inadequada para se trabalhar com determinada cultura na região do arenito Caiuá pode ter como consequência uma cobertura de solo comprometida. “O resultado é a grande perda de teores de carbono, o que culmina na incapacidade do solo em filtrar toda a água”, revela o pesquisador Pedro Auler.
Um pouco de história
O engenheiro civil Alcione Pacheco conta que nas décadas de 1960 e 1970, quando muitas cidades do Noroeste do Paraná estavam em expansão, faziam-se muitas construções errôneas, principalmente com espigões ou obras fluviais defletoras (dispositivos que servem para direcionar o fluxo de uma corrente e preservar ou recuperar a margem de um curso de água). O resultado a longo prazo foi a degradação do solo.