David Arioch – Jornalismo Cultural

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Breve reflexão sobre o ódio

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Pintura: Volodya Hubanov

 

Tenho altos e baixos como qualquer ser humano, mas realmente não costumo nutrir ódio pelas pessoas. Isso faz de mim um ser humano melhor? Não sei, porque não penso criteriosamente a respeito. Porém, creio que o ódio demanda tempo e energia, e honestamente não vejo como me dedicar a isso pode ser positivo. Afinal, odiar também é um exercício, e como todo exercício é preciso despender algo.

Ademais, o ódio, como desdobramento da passionalidade, também pode ser uma forma de impermanência ou fragilidade consubstanciada, e como tudo que é negativamente consubstanciado te priva de algo se você não se esforçar para observar além ou entender que isso naturalmente pode ter mais implicações para você do que para o objeto do seu ódio.

Sendo assim, creio que, de fato, o ódio, para além de ser um agente limitador, não me parece um bom motivador se excita em mim algum tipo de paixão virulenta que me priva da razoabilidade ou mesmo da racionalização. Odiar me parece desnecessariamente laborioso e contraproducente. Há que se considerar também o fato de que o ódio em longo prazo pode ser um agente corrosivo, e mesmo um gatilho de doenças psicossomáticas.

 





Written by David Arioch

May 13th, 2018 at 12:19 am

A vida e a identidade

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Quando considero a breve duração de minha vida absorvida na eternidade que vem antes e depois…o pequeno espaço que ocupo e que vejo ser engolido pela infinita imensidão dos espaços de que nada sei e que nada sabem sobre mim, fico amedrontado e surpreso por me ver aqui e não ali, agora e não depois.

Blaise Pascal em Pensées, Section III, Of the Necessity of the Wager, 205.

 

O vazio de identidade é de tal gravidade para a e estrutura humana que, estar desorientado no seu espaço moral acerca de questões do que é bom ou ruim, pode fazer o ser humano desembocar numa perda de controle da própria posição no espaço físico.

Excerto de “Sources of the Self”, de Charles Taylor.

 

Written by David Arioch

September 16th, 2017 at 10:10 pm

Que tipo de coisas boas o veganismo pode levar para a vida de alguém?

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Arte: Dana Ellyn

Bom, acredito que a vida em geral passa a ter mais valor. E não falo da vida na individualidade, me refiro à coletividade mesmo. O eu se torna menor, e ajuda inclusive na reflexão do nosso papel no mundo. Por exemplo, se vivo somente para mim, me pautando nas minhas próprias necessidades, que tipo de contribuição estou dando? Vejo pessoas reclamando o dia todo, e muitas vezes não são pessoas que fazem algo por quem não pode proporcionar-lhes algum tipo de vantagem.

E o veganismo na sua essência vai na contramão disso. Você não é somente você. A individualidade é menor, porque você sabe que está ligado a muitas outras formas de vida, e que não há porque não buscar um equilíbrio, não fugir daquilo que representa o fim da vida, a perpetuação da exploração.

“O mundo é como ele deveria ser.” Esta é uma das falácias mais comuns espalhadas por conformistas ou por quem defende o status quo. Não, o mundo é como ele não deveria ser. Desde sempre, há muitas coisas maliciosamente planejadas, assim como muitas coisas acidentais e inconsequentes, e até mesmo geridas pela ignorância. Porém, o mundo é como foi levado a ser por fatores tão diversos que não caberiam em uma resposta meramente maniqueísta.

Costumo dizer que os animais são explorados em níveis industriais porque são matérias-primas baratas, exploradas exaustivamente, e que rendem muita grana, já que as vítimas não ganham nada com isso. Claro, ninguém é perfeito, mas se você respeita ou pelo menos se esforça para respeitar todas as formas sencientes de vida, você já está desempenhando um papel positivo. Não há como não ver solidariedade e altruísmo nisso.

Acreditar que não apenas os seres humanos têm direito à vida é o reconhecimento e o exercício da empatia além da esfera especista e antropocêntrica. Afinal, respeitar um vulnerável ser não humano, entendendo que ele não merece morrer para nos beneficiar, é reflexo de uma moral que está além das nossas conveniências.

Não há como fugir da exploração no mundo em que vivemos. Então como é possível ser vegano nesse contexto?

Às vezes, algumas pessoas falam em ser ou não ser vegano 100%, e essa confusão e descrença é algo que agrada a indústria da exploração animal, porque ninguém mais do que ela deseja que as pessoas vejam o veganismo como inviável em suas vidas, ou que questionem o seu papel como veganos. Não raramente, alguém diz: “Não me sinto como se fosse realmente vegano. ” Minha pergunta é: “Você faz o que está ao seu alcance?” Se sim, está tudo bem.

O veganismo foi gestado em âmbito urbano, dentro de uma realidade pós-revolução industrial. Não há motivo para as pessoas o complicarem. Nada do que as pessoas dizem a respeito do que é ser ou não ser vegano, apresentando prováveis impossibilidades e contradições, me causa qualquer desconforto ou dúvida. Há inclusive literatura anti-vegana, e já li obras consideráveis sobre isso, mas nenhuma delas me tocou porque faltou um importante ponto de percepção – entender o veganismo sob a ótica vegana. Sou bem consciente de minhas limitações, e nenhuma delas me leva a desacreditar no veganismo, e simplesmente porque não há motivo.

Mesmo quando o veganismo surgiu na Inglaterra em 1944, ninguém disse que veganos seriam pessoas perfeitas, que nunca tomarão parte na exploração animal em suas vidas. Não se trata disso. Se alguém aponta o dedo pra mim e diz: “Ah, cara, você não tem como evitar exploração o tempo todo. Como pode ser vegano?” Sim, eu não tenho como evitar tomar parte na exploração o tempo todo, porque naturalmente existe um sistema que é maior do que todos nós, mas é justamente por isso que sou vegano, porque é uma luta constante.

Se eu não precisasse questionar nada, isso significaria que o mundo já é vegano, e ninguém que é contra a exploração animal teria do que se queixar. Mas se reclamamos e até encontramos dificuldades nessa jornada, é porque ainda temos muito o que fazer. Acima de tudo, é a insatisfação e a exigência de novas alternativas que levem às mudanças, não à aceitação, rótulos ou apego ideológico. Veganismo é sobre redução de impactos.

Você deve fazer tudo que está ao seu alcance para não tomar parte na exploração animal, simplesmente. Ou seja, é sobre dedicação, força de vontade, empatia. Evita-se comer tudo de origem animal, assim como usar qualquer produto de origem animal. Porém, há situações que às vezes fogem do nosso conhecimento por vivermos em uma realidade baseada em um sistema que usa os animais até para as finalidades mais desnecessárias.

A maioria da população não tem a mínima ideia de como os animais não estão apenas em seus pratos, mas praticamente em tudo que elas usam, tudo mesmo. Quando um animal explorado pela indústria morre, muitas vezes não há o que enterrar, porque tudo que um dia fez parte de uma vida é transformado em algum produto. Isso não é estranho? Tem gente que qualifica isso como consequência e aproveitamento. Mas ignora-se que quanto mais um animal é qualificado como produto, mais ele se distancia de ser visto como vida para ser definido como objeto. E isso é um absurdo.

A revolução industrial ocorreu entre 1760 e 1840, e com ela surgiu toda uma cultura que intensificou o uso de animais como produtos, e a níveis inimagináveis. E isso não teve impacto somente para os animais não humanos, como podemos perceber em obras como “The Jungle”, de Upton Sinclair, que relaciona as duas formas de exploração, humana e não humana, por entender que são vilmente análogas em muitos aspectos.

Claro, o uso de animais como produtos também é um infeliz fator cultural, já que se trata de prática socialmente legitimada, mas é exatamente esse fator da depreciação da vida que nos leva à banalização de tantas coisas. Se um vegano é, por uma eventualidade, obrigado a usar algo que seja proveniente da exploração animal, por não haver alternativas, isso não significa que ele não é vegano, mas sim que há muito a ser feito e cobrado. Sendo assim, ser vegano neste mundo não é apenas possível como necessário.

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Written by David Arioch

June 25th, 2017 at 7:14 pm

Reflexões sobre vegetarianismo, veganismo e ponderação

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Eu falando por alguns minutos sobre vegetarianismo, veganismo e ponderação. É um vídeo simples, sem edição, baseado apenas em reflexões espontâneas.

 


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Written by David Arioch

April 2nd, 2017 at 7:08 pm

Considerações sobre compaixão e paladar

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Companheiros, pintura do alemão Hartmut Kiewert

Quem diz que veganos e vegetarianos não têm bons argumentos naturalmente coloca o paladar acima do direito à vida. Mas quem pensa assim não dirá que simplesmente não se importa tanto com o fato de que alguém há de morrer para que um prazer fortuito seja saciado.

Então, para parecer justo, cria-se justificativas obtusas que são cortinas de fumaça que tentam velar anseios puramente sensoriais. Compaixão é um sentimento superior a qualquer estímulo efêmero desencadeado pelo paladar.

E acho que sobre isso, não há muito o que discutir, já que a compaixão é um dos sentimentos mais nobres da humanidade, enquanto que a gustação, um sentido condicionável, não existe com a finalidade de fazer do ser humano um refém, revelando suas fraquezas. Muito pelo contrário, é algo que o ser humano pode e deve aprender a disciplinar.

 

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Written by David Arioch

February 17th, 2017 at 11:18 pm

O amor é belo na literalidade

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Pintura de Leonid Afremov que retrata o amor

Ao longo da vida, sempre ouvi alguém dizendo que o amor, confundido com paixão, é arrebatador, como se feito de fagulhas de insipiência. Quando chega até você o cega e o torna avesso ao juízo e à razão das coisas serenas. O consome de forma inesperada, deixando os lábios ressequidos como chão tracejado pela estiagem severa.

Quantas histórias conheci de suicídio por amor; pessoas saltando de prédios, lançando carros contra árvores, se enforcando, consumindo estricnina e atirando contra a própria cabeça. Jamais entendi como o amor, tão colorido simbolicamente, poderia ter compleição tão funesta.

O amor não deve ser como o luto, um manifesto de pesar. Nem merece ser relacionado à morte se abarca na sua essência os destemores da luz. O coração que ama em abnegação só obscurece quando deixa de bater, este sim fato irremediável do nosso epílogo.

Mas enquanto vive é corado e robusto como uma manga colhida em março. Está além do bem e do mal. O amor é belo na literalidade, na pureza de sua semântica. Nem por isso unilateral ou menos distorcido e depreciado por imperícia, fabulações e desconstruções de sentido.

Não que não haja dor no amor, afinal ela é inerente à vida e nos envia iterados sinais de que o sofrimento também dignifica a existência; ensina que somos pechosos, frágeis e efêmeros como todos os seres que habitam a Terra. Porém, um sentimento torna-se nocivo somente se assim o permitirmos. Pelo menos é o que me mostra a vida desde que comecei a reconhecer o seu enredamento e profundidade.

Written by David Arioch

July 28th, 2016 at 12:09 am

Um corpo que padece

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Parei de andar tem alguns meses, logo que meu corpo assumiu o controle da minha vida

(Arte: Mindcage, de Rodrigo Aviles)

“Continuo sem me mover e só consigo pensar na última vez em que fiquei em pé” (Arte: Mindcage, de Rodrigo Aviles)

Acordei um dia e percebi que meu corpo já não era meu. Tentei me movimentar na cama e não adiantou. Eu pertencia a ele, mas ele não me pertencia. Então continuei deitado observando o teto em meio à escuridão plangente. Havia traços disformes e oscilantes. Não! Mais do que isso! Uma imundície densa e clara que me lembrou aquelas medonhas bactérias que vi nas aulas de biologia na adolescência.

Eu nunca tinha reparado como o forro podia ser tão sujo. Acho que concentra a medula da nossa podridão. Ou será que era minha imaginação? Talvez eu fosse a própria bactéria, agraciada com uma visão panorâmica de mim mesmo. Vai saber! A verdade é que minha respiração continuava fétida e ruidosa. Como era horrível! Meu nariz simulava um aterro sanitário, espalhando chorume a cada expirada. E o que escorria dele eu nem sentia ou via. Afinal, desse espetáculo repulsivo que usava meu corpo como palco, fui relegado a mero espectador.

Como me esforcei para silenciar minha mente. Claro que não consegui! Fechei os olhos por alguns minutos e a temperatura do ambiente caiu para cinco ou seis graus Celsius. Tremi mais de ódio do que de frio. Eu estava coberto com um edredom branco, velho e encardido, com algumas manchas amareladas – rodelas de mijo que o maldito do gato do vizinho deixou de presente quando invadiu meu guarda-roupas. Que lazarento!

Tudo bem! Logo esqueci do bichano e quis me levantar para dar uma lição na mãe natureza. Como eu queria arrastá-la pelos cabelos. Quem sabe a cada chumaço arrancado ela subisse um grau de temperatura. Com 15 chumaços, eu a deixaria parcialmente careca e teria 20 ou 21 graus. E que vitória! Ainda poderia usar aqueles cabelos para fazer um espanador ou uma pequena cortina para um teatrinho de bonecos.

Rinite, bronquite e sinusite, sinusite, bronquite e rinite, difícil descobrir quem queria me ferrar mais. Bah! Quero enganar a quem? Fumei mesmo! E fumei muito! Chegando a quatro maços por dia! Eu era uma chaminé mais eficaz do que qualquer Maria Fumaça já vista. Sou o maior colecionador de doenças pulmonares que este mundo desconhece. Eu deveria estar no Guinness Book! Segurando o meu maior troféu, o único pulmão que me restou, tão preto que parece sobejo de carvão pós-churrasco.

E daí? Meus dentes eram tão louros, e meu hálito tão fedegoso que eu poderia fazer cosplay do Beetlejuice. Eu adorava jogar fumaça na cara dos outros, principalmente de quem desprezava fumantes. Eu chegava pertinho, como quem não queria nada, concentrava bem a fumaça e a soltava bem na hora que alguém abria a boca para falar alguma coisa. Daí era só falsear expressão de constrangimento – um par de olhos arregalados, uma respirada profunda e uma inclinada de cabeça, pedir desculpas e me afastar. Me diverti muito quando não existia ambiente para não fumantes. Ah! Deixa pra lá…Não quero mais falar disso!

Olhe! Nunca tinha reparado como o forro ganha desenhos tracejados na madrugada. São como lombrigas abjetas que dominam os bastidores da casa. Acho que também sou uma porque já não sinto mais minhas vértebras. Me resumo a uma matéria modorrenta e estiolada. Quem sabe tudo que vejo e desprezo seja em alguma proporção uma representação de mim mesmo.

Fiquei imaginando quantos bichos tétricos e horrendos não habitam este lugar noite após noite. Aposto que se eu derrubasse tudo encontraria centenas de animais sem nome, jamais catalogados. Seres que só existem por poucas horas da madrugada, quando confundimos realidade, sonho e pesadelo. Pode ser que se alimentem de esperanças, devaneios e reflexões prolongadas.

Certo! Continuo sem me mover e só consigo pensar na última vez em que fiquei em pé. Me parecia tão irrelevante, inútil. “Cuidado com a coluna, postura ereta, um passo após o outro”, quanta tolice! Eu só queria sentar e deitar, deitar e sentar. Talvez eu tivesse nascido para ser um tatu-bola. Só que rolar também exige tanto esforço que sinto calafrios só de imaginar. E a pressão abdominal na hora de girar? Triste e dolorosa! Ser uma lesma é igualmente desprezível porque sou impaciente e quero tudo na hora. Bom, não me sinto representado por nenhum animal, racional ou não.

Como gosto de comida! Me alimentei tão mal a minha vida toda e isso me proporcionava o mais insólito dos prazeres. Onde havia alguém se alimentando corretamente, eu me aproximava e sentava ao lado. Queria que a pessoa ficasse incomodada com a minha presença. Eu era um despertador de reações sorumbáticas. Eu queria chocá-la, vê-la siderada pelos meus maus hábitos.

“Isto! Este sou eu! E sou contra tudo aquilo em que você acredita. Estou aqui como a prova cabal de que o mundo não pertence a vocês. A ditadura da saúde não vai prevalecer. Ainda somos maioria e não seremos derrotados. Eu não permitirei! Nunca! Nunca! Veja! Olhe o tamanho dele, quanta gordura! Pedi que a atendente colocasse mais 200 gramas de bacon e 200 gramas de queijo cheddar. Quanto mais industrializado, melhor! Exigi o triplo de gordura trans! Observe! Observe o óleo escorrendo pelas rebarbas do meu lanche. Tem tanto óleo que poderemos fritar batata dentro da minha boca depois que eu comê-lo. Você aceita?”, sugeri, exibindo meus dentes saburrentos e caramelizados pelos churros que comi antes como aperitivo. Chocada, a moça ao meu lado na praça de alimentação levantou-se e foi embora sem dizer palavra.

Atividades físicas? Eu as desprezei desde o primeiro dia que as vi! Em qualquer lugar por onde eu passasse, se alguém me convidasse para me exercitar, eu não pensava duas vezes antes de mandar às favas. Que desaforo! Para os diabos com essa baboseira! Viverei e morrerei como quiser! Para que ficar em pé, caminhar ou correr? Odeio tudo isso com todas as minhas forças! Não acredito nem mesmo que fomos feitos para andar! De quem foi essa ideia? Tomara que o morfético tenha morrido brutalmente!

Pensando em bípedes e quadrúpedes, como eu adorava carne! Comia mais de 15 quilos por semana, até que contraí aterosclerose. Beleza! O que está feito está feito. Só que não há como negar que foi uma das melhores fases da minha vida. Quando eu andava pelo centro da cidade, as pessoas achavam que estavam próximas de um açougue ou matadouro. Não! Não havia nada do tipo por perto. Era a fragrância natural exalada pelo meu corpo. “Que cheiro de carne crua, de onde vem isso?”, “Nossa! Que fedor de vaca morta!”, “Acho que tem um açougue novo por perto”, ouvia.

As bebedeiras constantes também marcaram a minha vida. Claro! Eu dizia que era um socialzinho. Haha! Bobo de quem acreditasse. O que eu bebia três vezes por semana era o que muitos não consumiam em um mês. Eu precisava ser bom no que fazia. Por isso descobri um método eficaz para ampliar a minha tolerância ao álcool. Claro que não vou dizer qual é! Sim! Fui bem longe, tão longe que meu fígado não teve condições de me acompanhar. Hoje vivemos em lugares separados.

Agora me veio à mente as lembranças da minha transformação. Parei de andar tem alguns meses, logo que meu corpo assumiu o controle da minha vida. Se manifestava sobre onde queria ir e quando. Tão caprichoso, genioso! Caso não gostasse da ideia, ele travava como um brinquedo com pilha gasta. Será que é vingativo? Pois é! Como pode ser tão odioso? Na semana passada, permitiu pela última vez que eu movimentasse a perna direita e o braço esquerdo.

Continuo observando o forro, atento a duas lagartixas que se alimentam de um besouro. Apoiado sobre a janela aberta, o gato endiabrado do vizinho, com as orelhas mirando a lua cheia, lambe as próprias patas e as observa. Me recordo do Escaravelho do Diabo, tão valioso e tão inútil, assim como é a vida para tanta gente. Me sinto cansado, alheio ao meu corpo. Meus olhos se fecham e reconheço que não sou mais humano, somente presa de quem fui predador. “Que o teu corpo não seja a primeira cova do teu esqueleto”, escreveu Jean Giraudoux no livro Notes Et Maximes, Le Sport, de 1928.

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