David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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O livreiro da Rua Artur Bernardes

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De longe, ele parecia um personagem suspeitoso, saído de uma das histórias de Charles Dickens

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Primeira edição de David Copperfield, de Charles Dickens, publicada em 1849 (Foto: Reprodução)

Pelo menos uma vez por mês, o livreiro João Romani passava em casa, na Rua Artur Bernardes, quando eu tinha nove anos. Por entre os galhos da sete-copas, eu o via atravessando a Rua Silvio Meira e Sá Bezerra e descendo em minha direção, carregando a mesma mala acastanhada, adornada com nomes de dezenas de escritores.

De longe, ele parecia um personagem suspeitoso, saído de uma das histórias de Charles Dickens. Não tinha mais de 35 anos, estatura mediana, pele cor de oliva, um andar peculiar e se vestia como um homem da década de 1920, com seu chapéu fedora cuidadosamente alinhado e paletó cinturado. Junto à mala, sempre trazia um guarda-chuva que podia ser desmontado e usado como bengala.

Quando o conheci, ele estava no portão de casa conversando com minha mãe, oferecendo uma coleção de 16 volumes da Enciclopédia Barsa. Conforme o livreiro falava, num crescente paroxismo, tudo ganhava vida e se tornava mais importante do que realmente era. Ele sorria, gesticulava e movia os pés de um lado para o outro, fazendo da apresentação da enciclopédia uma performance teatralmente didática.

E foi assim que João Romani a convenceu a comprar a coleção numa negociação mais motivada pelos seus métodos de venda do que pela qualidade do produto. Seu poder de convencimento talvez só não superasse suas qualidades humanas mais virtuosas. E naquele dia, ele pediu autorização da minha mãe para descansar por alguns minutos na varanda. Ela consentiu sem pestanejar.

Convidado a entrar, ele sentou em uma cadeira com cordas de nylon e minha mãe foi até a cozinha buscar uma xícara de café enquanto a garoa resplandecia serena sobre o nosso jardim. Antes de abrir a mala, tirou o chapéu da cabeça e o manteve sobre a ponta do guarda-chuva escorado na grade da janela. Ajeitou os cabelos castanhos e ondulados e perguntou meu nome. Respondi e ele deu um grito entusiasmado:

“Uau! Estupendo! David! Será que se seus pais escolheram seu nome por causa do jovem David Copperfield? Você conhece a história dele?” Sorri e, entusiasmado com o seu carisma, questionei se ele falava do mágico ou do menino. “Isto! O menino!”, comentou. Com a simplicidade inerente às crianças, relatei que ele era órfão e sofreu muito porque vivia sozinho no mundo. Apesar disso, acreditava no ser humano, em um mundo melhor.

Muito bom! Sabe de uma coisa, David? Sou de origem romani, cigana, e nós nunca acreditamos que nomes são escolhidos ao acaso. Tenho certeza que o seu diz muito sobre quem você é e vai ser. David Copperfield era extremamente perseverante, um sonhador, e embora eu tenha conhecido você há pouco, acredito que você também será assim. Este nosso encontro tem um significado especial que um dia talvez faça mais sentido na sua vida – declarou o livreiro com uma expressão enigmática que destacou ainda mais seu rosto quadrado e seus olhos grandes e amendoados como o fruto da sete-copas.

Tão rápido minha mãe retornou com o café, João Romani agradeceu e o bebeu em silêncio, observando Happy e Chemmy brincando no jardim, rolando na grama úmida, com olência de jasmim, e teimosamente saltando sobre o canteiro de plantas. Com olhar curioso, o livreiro sorria diante do espetáculo da vida cotidiana. Perscrutava com tanto rigor o trivial que até a mais ordinária das cenas parecia transmitir algo de surreal.

Quando ameacei tirar Happy e Chemmy da grama, evitando que se sujassem mais, ouvi um som duplo e sincronizado. O livreiro estava abrindo a mala. No mesmo instante, me afastei dos dois poodles e me aproximei, intrigado em saber o que ele carregava.

“Olhe, vou contar um segredo. Não costumo mostrar para ninguém o tesouro que carrego comigo, mas como acredito que você seja um genuíno David Copperfield, sei que não há problema”, argumentou, em seguida pedindo que eu fechasse os olhos e estendesse os braços. Logo senti algo plastificado entre meus dedos pequenos.

Sobre as minhas mãos estava um exemplar esmerado de David Copperfield. A capa era esverdeada e trazia instigantes ilustrações das aventuras vividas pelo jovem órfão. Embora eu não entendesse em profundidade a importância daquele momento, fiquei muito feliz em segurar a obra nas mãos. E o semblante de Romani deixou subentendido que eu estava diante de uma oportunidade inestimável.

“É diferente do livro da Escola São Vicente de Paulo. Parece que esse é mais velho e menos colorido. Lembra uma revista antiga, uma cartilha”, comentei sem velar a inocência. O livreiro deu uma breve gargalhada, tirou a obra da embalagem que a protegia e pediu que eu lesse o que estava escrito na capa. “O senhor me desculpe, não sei tanto assim de inglês”, justifiquei. Então ele explicou que não era para eu ler tudo e me mostrou o ano grafado – 1849.

Aquela era a primeira edição de David Copperfield, o maior tesouro da família de João Romani. Seu bisavô Vladimir recebeu o exemplar das mãos do próprio Charles Dickens pouco tempo após o lançamento. “Ele fugiu para a Inglaterra em 1846 e mais tarde conheceu o autor na esquina da Editora Bradbury e Evans, em Londres. Meu bisavô trabalhava como engraxate, e um dia Charles Dickens conversou com ele. Se não me falhe a memória, falou o seguinte antes de entregar David Copperfield: ‘Aqui está uma semente. Quem sabe se torne um presente’”, narrou o livreiro sorrindo.

O jovem cigano encontrou Dickens mais três vezes. No último encontro, o autor fez o garoto de 15 anos chorar quando comentou que talvez tivesse escrito uma história melhor se David Copperfield fosse baseado na vida de Vladimir. Nascido na Romênia, o bisavô de João Romani foi um serf, escravo de um boiardo valaquiano – aristocrata da Transilvânia. Órfão, passou a maior parte da infância realizando serviços domésticos e trabalhando no garimpo em troca de comida, até que um dia conseguiu fugir.

Mesmo ainda criança, fiquei boquiaberto com o relato, e a desenvoltura do livreiro garantia mais realismo à história. O exemplar de David Copperfield, que segurei com as duas mãos, tinha uma dedicatória, e o nome de Vladimir escrito por Charles Dickens figurava sobre o nome do protagonista, num singelo gesto de afeição.

Houve um momento em que o notei com os olhos marejados, se esforçando para não lacrimejar. Fez tanta força que as veias do pescoço saltaram e revelaram uma tatuagem discreta, porém vivida, perto do pescoço. Era baseada em uma combinação de cores que não consegui identificar. Não havia desenho, somente duas palavras – Pacha Dron que descobri há alguns anos que significa O Caminho da Vida.

Logo que a garoa se dissipou, João Romani embalou novamente David Copperfield e o ajeitou dentro da mala com o mesmo esmero que uma mãe dedica ao filho na hora de colocá-lo para dormir no berço. Quando a mala se fechou, senti um ar morno e fugaz acariciando minhas maçãs. O livreiro se levantou, se despediu da minha mãe e eu o acompanhei até o portão. Lá fora, ele estalou os dedos, apontou para mim e falou: “Até logo, David Copperfield!” Deu uma piscadela e desceu a Rua Artur Bernardes como um singular personagem. Se na vinda, e de longe, ele me parecia um tipo de Uriah Heep, na volta, mais lembrava um híbrido de Ham Peggotty e Dr. Strong.

João Romani me visitou ao longo de um ano. Independente de clima e tempo, ele sempre retornava. Um dia, chovia muito quando o livreiro bateu palmas em frente de casa – estava encharcado, desprotegido pelo próprio guarda-chuva tornado arredio pela violência das águas. “Compromisso é compromisso!”, alegou sorrindo. Depois de ouvir uma boa reprimenda de minha mãe, dessas que os pais dão nos filhos mais travessos, ele velou o riso e aceitou cabisbaixo o reproche, até que começamos a rir.

Afeiçoado a um ofício que entrou na sua família por meio do seu bisavô Vladimir, sua maior satisfação era percorrer as ruas vendendo livros. Para ele, nada era mais importante do que o prazer de contar histórias e despertar sensações. Em uma ocasião, quando foi assaltado, entregou todo o dinheiro e se debruçou sobre a mala no meio do asfalto, protegendo os livros; até que os bandidos desapareceram como se nunca tivessem se aproximado dele.

No nosso último encontro, perto do Natal, João Romani me deixou como guardião de uma caneta Fountain que seu bisavô entregou ao seu avô horas antes de falecer. “David Copperfield, essa caneta foi usada por Charles Dickens no rascunho de Grandes Esperanças. Qual maior exemplo de esperança do que ter nas mãos algo que existe desde 1860 ou até antes? Pois é…”, enfatizou. Aquela foi a última vez que vi o livreiro para quem ainda guardo a Fountain.

Oxalá, quando a realidade cessar de existir para mim, como as sombras vaporosas de que a minha imaginação se separa voluntariamente nesta ocasião, eu possa encontrar o que há de verdadeiramente mais importante ao pé de mim, com o dedo levantado a apontar-me o céu! – escreveu Dickens em David Copperfield, num trecho transfigurado por mim.

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Uma noite alucinante ou fuga de cães raivosos

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Escaparam pelo portão de uma casa e vieram correndo no meu encalço como duas crianças famintas

Percorri mais cem metros e notei um automóvel se aproximando vagarosamente na Rua Getúlio Vargas (Foto: David Arioch)

Percorri mais cem metros e notei um automóvel se aproximando vagarosamente na Rua Getúlio Vargas (Foto: David Arioch)

Houve uma época da minha vida em que eu caminhava todos os dias no mesmo horário, e não para me exercitar, mas somente para espairecer ou refletir. Andar diariamente 10 quilômetros ou até mais no final da tarde ou início da noite me ajudava a ter boas ideias e também a me desligar de tudo que não me interessava naquele momento. Em síntese, era uma excelente forma de manter o equilíbrio.

Na realidade, era imprescindível, já que eu passava muito tempo em frente ao computador produzindo textos e lendo. Então havia dois horários do dia que eram sagrados para me manter longe de qualquer máquina. De manhã, por volta das 5h50, quando eu ia à academia, e após às 17h ou 18h. Eu nunca carregava o telefone celular comigo, hábito que mantenho até hoje.

Conforme eu andava, tentava captar a boa essência ao meu redor, principalmente o aroma sinestésico e verdejante das árvores quando o calor arrebatador do dia partia com o poente. Um dia, saí de casa no início da noite. Desci a Rua John Kennedy até chegar à Avenida Parigot de Souza. Tudo parecia tão tranquilo, difícil crer que era uma segunda-feira. Continuei andando, observando os animais da vizinhança revirando sacolas enquanto os lixeiros não passavam para recolhê-las ao lado do meio-fio.

Mandriões, quatro gatos, não sei se por fome ou capricho, miavam ruidosamente com desejo de se aproximar dos sacos ocultados por três cães. Entendi. Era o dia preferido dos negligenciados, já que as sobras de comida do sábado e do domingo se acumulavam em tantas sacolas, criando um cheiro variegado e sui generis que as narinas dos famintos sorviam com o paroxismo de quem se vê pela primeira vez diante de um banquete etrusco.

Sensibilizado com a cena, chamei a atenção de dois cães e os afastei de uma das sacolas, entre as tantas que monopolizavam, permitindo que os gatos também vasculhassem seu tesouro em meio aos orgânicos detritos da glutonaria. Acredito que ficaram satisfeitos. Silenciaram, e segui meu caminho depois de vê-los com os bigodes sujos de contentamento.

Passei por um trecho da Avenida Paraná e segui em direção ao centro. Na Rua Getúlio Vargas, pessoas saíam do trabalho, embora quase todas as portas das lojas estivessem fechadas. O aspecto de cansaço no rosto de tanta gente a pé, sobre os bancos das motos e no interior dos carros dava mostras do quão intenso pode ser o limiar da semana.

Um ou outro ainda sorria, raros num mar de expressões macambúzias de desânimo. “Será que não gostam do que fazem da vida? Alguns parecem infelizes. Posso estar enganado também. Talvez seja apenas uma má impressão minha”, refleti. Então mirei o céu por entre os galhos e vi um céu ainda avermelhado envolvendo a lua tímida que pouco despontava, mal sendo notada.

A passos rápidos, subi um trecho da Getúlio Vargas e assisti dois homens maltrapilhos, talvez andarilhos ou mendigos, sentados no banco da praça da Igreja São Sebastião dividindo um pão francês e tomando uma bebida escura, provavelmente café, em copos descartáveis. A cada gole e mordida, os dois riam como se nada na vida valesse mais do que o momento, a paradoxal plenitude do efêmero.

Contavam piadas sem sentido um para o outro e gargalhavam como crianças, pressionando as mãos contra suas barrigas cobertas por camisetas em frangalhos. Dois carros pararam em frente à praça e os motoristas testemunharam com espavento a alegria dos dois marginalizados. “Do que esses doidos estão rindo? Que nada a ver, rir nessa situação. Deviam chorar”, talvez pensem alguns.

Percorri mais cem metros e notei um automóvel se aproximando vagarosamente. Um homem colocou a cabeça para fora e me chamou. Sem problema. Deveria ser alguém perdido por aquelas bandas. Não, não era. “Ô camarada, você gosta de se divertir?”, questionou o motorista. “Quê?” E ele repetiu a pergunta. “Olhe, eu e minha mulher, dê uma olhada nela aqui do meu lado, estamos a fim de umas aventuras. O que você acha de vir com a gente? Tudo no sigilo, temos local próprio e bem discreto.”

Agradeci o convite e falei que não tinha interesse. “Como não tem interesse na minha mulher? Olha aqui, cara! Isso não existe. Temos altas ferramentas aqui. Vambora que você não vai se arrepender”, falou o homem com a voz alterada, revelando um misto de nervosismo e raiva. De repente, o sujeito se virou em direção ao banco traseiro e retirou uma maça medieval de borracha, mas com um adorno de spikes que parecia muito real. No banco ao lado, a mulher apenas sorria, retocando o batom vermelho com uma das mãos e piscando para mim, sensualizando.

“Você tem cara de bad boy. E minha mulher só curte homem assim. Vem, cara! A gente paga!” Insisti, falei que não aceitava, que tinha namorada e andei a passos céleres, sem ter a mínima ideia do que aquele casal era capaz. Virei à esquerda e para piorar ainda ouvi o som do motor me acompanhando e a sombra de uma pessoa apontando em minha direção. “E se esse maluco sacar um revólver e atirar em minhas costas?”, aventei, rendido a uma criatividade que me assustava e entorpecia. Afinal, me tornei refém de um universo de possíveis impossibilidades.

“Seu viado filho da puta!”, foi a última frase que ouvi antes de sentir uma cálida rajada que repentinamente aqueceu meu corpo álgido. Consegui respirar melhor quando o carro desapareceu no horizonte do Jardim Paulista. Feliz por estar vivo, retomei a caminhada sentindo-me mais leve que o próprio vento que ocasionalmente massageava minhas orelhas.

Perto da antiga Escola Jean Piaget, na Rua Manoel Ribas, fui surpreendido novamente pelo acaso quando dois cães enormes e negros como a noite escaparam pelo portão de uma casa e vieram correndo no meu encalço como duas crianças famintas. Seus olhos amarelos rutilavam como vagalumes graúdos. Só tive tempo de saltar, pendurar e me equilibrar sobre a fragilizada grade da escola que por pouco não cedeu, o que me deixaria à mercê dos meus algozes.

Sem subestimar a astúcia animal, pulei sobre uma árvore no jardim da escola e fiquei observando eles por instantes, limpando minhas mãos repletas de vestígios de cal. Encolerizados, seus músculos se contraíam enquanto seus dentes afiados mal cabiam dentro da boca. A saliva dos dois caía grossa sobre a grama.

Me senti vitorioso, mas não zombei deles porque nunca sei o que o dia seguinte me reserva. Persistentes, mantinham as patas pressionadas contra a grade e os olhos fixos em mim. Eram fortes, ágeis e pouco inteligentes. Só precisei fingir que iria fugir pelo outro lado para despistá-los. Logo ficaram confusos e perderam seu ponto de referência – eu.

Corri até a Rua Chozo Kamitami e não vi mais eles. Um tremendo alívio que fez minhas pernas pararem de bambear. “Nada mais pode acontecer hoje. Acredito que atingi a minha cota”, achincalhei o meu próprio azar. Após restabelecer a serenidade, tudo parecia em harmonia quando ouvi cigarras cantando e corujas piando em meio aos pisca-piscas dos pirilampos.

“Agora é só prosseguir minha caminhada e curtir a noite”, ponderei absorvendo a amorável calmaria notívaga. Voltando para casa pela Avenida Rio Grande do Norte, mais uma vez fui parado por um carro. Um rapaz gritou um nome, vi que não era comigo e continuei andando. “É você, mano! É você! É você mesmo! Calmae, calmae!”, falou com malemolência.

Não o reconheci e pensei que fosse um bêbado querendo confusão ou jogar conversa fora. “Ué, Mafud! Vai tirar na cara dura? Vai dar de louco pra cima de mim, manon?”, replicou. Fiquei sem reação e depois declarei que ele me confundiu com outra pessoa. Em seguida, olhei atentamente e vi que em sua mão direita, parcialmente velada na altura da barriga, tinha um revólver de calibre 38.

“Conheço essa sua barba em qualquer lugar, manon. Tem erro não. Quero saber se tu tá metido nos esquemas da gravataria lá ainda ou se já deu linha. Conta pro seu manon aí!”, indagou. Não consegui pensar com clareza e de repente as luzes dos faróis de um segundo carro foram sinalizadas em nossa direção. Outro rapaz acenou com a mão através da janela, chamou a atenção do jovem que me abordou e gritou:

“Esse não é o Mafud, cara! Tá fazendo merda de novo. Simbora!” Antes de partir, ele sorriu, abriu a carteira e lançou cinco notas de R$ 100 em minha direção. “Mal aí, meu chapa! Esquece a parada que tudo segue de buena”, sugeriu. Fui embora e deixei um repentino vento sortido arrastar as notas para longe de mim. Com receio de novas abordagens, equívocos e confusões, respirei fundo e voltei para casa correndo, mergulhado em um turbilhão de pensamentos. Sem dar margem ao azar e ao acaso, sequer olhava para o lado, agulheado pela ferocidade do imponderado.

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Quando Vico planejou a própria morte

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Vico não se movia. Continuou estatelado no chão morno com os olhos fechados, parcialmente cobertos

Na Avenida Lázaro Vieira, o gato continuou nos seguindo, indo de um lado para o outro e roçando o rabo entre as minhas pernas (Foto: David Arioch)

Na Avenida Lázaro Vieira, o siamês continuou nos seguindo, indo de um lado para o outro e roçando o rabo entre as minhas pernas (Foto: David Arioch)

Não me esqueço de um amigo que quando éramos adolescentes planejou a própria morte. Naquele tempo eu o chamava de Vico porque ele era fã do filósofo italiano Giambattista Vico. “A razão é a consciência do ser, não o conhecimento dele. A partir do nosso raciocínio, podemos ter conhecimento da nossa existência, mas não o conhecimento total de quem realmente somos”, dizia meu amigo inquiridor que cada vez mais parecia o filósofo que tanto admirava.

Vico, assim como seu mestre homônimo, levava uma vida frugal. Rendido ao desejo do saber, pouco se interessava em socializar. Era casto por natureza e da vida aspirava o entendimento do que definia como pequenas coisas existenciais. Quando andávamos pelas ruas com a simples motivação de respirar o mundo e sentir a vibração da vida que habita a singeleza, parávamos, sentávamos no meio-fio e fazíamos anotações.

No centro de Paranavaí, algumas pessoas riam e de longe zombavam do nosso comportamento julgado extemporâneo. E nós ríamos também, sem precisar abrir a boca e mostrar os dentes. Afinal, a fantasia é a memória dilatada e para sorvê-la é preciso convidá-la. E a nós estrambótica era a deletéria incompreensão, menos digno de zombaria e mais de comiseração. Escrevíamos sobre pessoas, animais, plantas e objetos. E todas as constatações eram discutidas livremente em um grupo pequeno que fundamos através da internet com o nome de Caballaria.

Principalmente nos finais de tarde, observar a vida ao longo de uma hora era um exercício recompensador, porque era o único período do dia em que nos tornávamos alheios a nós mesmos, nossas fragilidades, falhas e cegueiras. “Olha esses moleques à toa! No meu tempo, não tinha essa vagabundagem juvenil”, comentou um senhor engravatado de meia-idade levando a amante para almoçar em um restaurante na Rua Manoel Ribas.

Observávamos sem reagir às críticas e piadas que ouvíamos com certa frequência. Não faria sentido estar lá para intervir, mas tão somente inferir. Do contrário, tudo deixaria de ter um propósito. A maior lição subentendia a missão de nos tornarmos aquilo que nos furtava a atenção. Num primeiro momento, éramos como voyeurs. E creio que aos olhos que nos miravam, não passávamos disso, embora não nos incomodasse sobretudo. A verdade é que logo não existíamos apenas dentro de nós, mas também fora, não mais reduzidos aos ocos limites da nossa canhestra individualidade.

Em pouco tempo o barulho trivial e a movimentação rotineira de carros, motos, caminhões e pessoas não mais equacionavam nossa concentração. Sentados, ouvíamos tudo se perdendo em meio a um barulho tão difuso e pleonástico que o próprio som cotidiano se tornava irrelevante. Não exigia mais respostas dos nossos sentidos. E ficávamos lá, atentos ao que chamávamos de Orquestra do Mouco, nada mais que o silêncio que soava como o próprio rearranjo da natureza. E assim como as coisas mais simples e implícitas da vida, ele ganhava formas ocasionalmente pouco perceptíveis.

Lugares, pessoas, animais e objetos requeriam de nós um exercício diário de elucubração e compreensão. Eles mudavam diante de nós e nós mudávamos diante deles, provando que um olhar desatento poderia nos entorpecer. Acreditávamos que se tudo que víssemos a cada dia transparecesse comum ou ordinário era porque nos faltava habilidade para ir além. Em síntese, o pouco da percepção corria o risco de se confirmar como um danoso arquétipo da insipiência, isso porque ele nos empurrava para as armadilhas das nossas limitações.

Numa dessas longevas observações, uma vez um filhote de bem-te-vi caiu em cima da minha mochila posicionada na calçada, atrás das minhas costas. Não vi nem ouvi nada, mas senti a repentina aragem que tocou minha nuca como um sopro. Quando me virei, um gato siamês estava prestes a abocanhar o filhote. Consegui afastá-lo com as mãos apesar da sua ruidosa resistência. Percebendo que o passarinho não apresentava ferimento, escalei a árvore e o coloquei novamente no ninho antes de partir.

Depois, caminhando perto da Igreja São Sebastião, notei que o farto felino continuava nos acompanhando e se ocultando entre os arbustos. Só que era barulhento demais para passar despercebido. Perto da Sanepar, ele pendurou na minha mochila, fugindo de um cão grande e mestiço, com características de rottweiler, que tentou atacá-lo. Então o cachorro recuou assim que Vico lhe lançou um grande biscoito canino. Ele sempre carregava petiscos para animais dentro da mochila.

Na Avenida Lázaro Vieira, o siamês continuou nos seguindo, indo de um lado para o outro e roçando o rabo entre as minhas pernas. E o cachorro maior veio logo atrás, remansoso e mantendo os olhos em nossos passos. Mais adiante, outros cães e gatos endossaram a marcha. Contei doze animais. De repente, para minha surpresa, um jovem no quintal da própria casa arremessou com violência uma grande manga verde contra nossos seguidores. Errou o alvo e atingiu Vico na cabeça.

Ele caiu de frente com o corpo estendido sobre o asfalto e os braços abertos. Vico não se movia. Continuou estatelado no chão morno com os olhos fechados, parcialmente cobertos pelos cabelos castanhos, e as mãos e pernas levemente raladas. Os cães começaram a uivar e os gatos se esfregaram na cabeça e no dorso de Vico. Desesperado, o agressor adolescente levou as mãos à cabeça e correu para dentro de casa.

Me aproximei do portão, bati palmas e vi o rapaz escondido logo abaixo da janela. “Você matou meu amigo, cara! Sua brincadeira tirou a vida dele! Como você atira manga na cabeça das pessoas que passam perto da sua casa? Qual é o seu problema?”, questionei energicamente. Dois cães se aproximaram da grade, como se quisessem invadir a casa. O garoto não respondeu, mas ouvi seu choro suprimido e ele balbuciando consigo mesmo que seu pai iria matá-lo.

No chão e cercado por animais, Vico ainda não se mexia. O cão grande e mestiço tentou empurrá-lo em vão com o focinho. Alguns curiosos assistiam de longe, indecisos em se aproximar. Cinco minutos após a queda, ele se levantou e sorriu apesar das escoriações e do galo na cabeça. Dei uma gargalhada e seguimos nossa caminhada.

Atraídos pela ração e pelos petiscos que vazavam por um pequeno furo proposital no fundo da mochila, os animais começaram a se dispersar quando perceberam que já não restava mais alimento. Subindo a Avenida Distrito Federal, notamos que a turma se foi – ficou apenas a dupla. Chacoalhei a minha mochila também vazia, onde eu guardava o caderno em um compartimento menor, e sorri. “Amanhã eles voltam. Eles sempre voltam”, comentou Vico.

Visita aos mortos

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Como o cemitério poderia ser nefasto se plantas cresciam ao redor dos túmulos? 

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Não o visitava com tanta frequência, mas a experiência me agradava bastante (Foto: Reprodução)

Na infância, eu gostava de ir ao cemitério. Não o visitava com tanta frequência, mas a experiência me agradava bastante porque me dava a impressão de que eu estava entrando em outro mundo, onde os vivos reencontram os mortos. Não o considerava um lugar sombrio. Muito pelo contrário. Como poderia ser nefasto se plantas cresciam ao redor dos túmulos? Se cães e gatos frequentavam o lugar?

Não era difícil entender o motivo. A calmaria, o silêncio preeminente na maior parte dos dias, permitia que os seres mais atentos ouvissem os sons da terra, a harmonia e a dissonância das espécies em suas criteriosas relações com a natureza. Ainda me lembro de um casal de sabiá-do-campo que cantava à curta distância do túmulo da minha bisavó, a poucos passos da entrada da necrópole.

O gorjeio suave acompanhava a brisa solene que chegava como um alento. Se projetava do alto de uma árvore, onde algodão, grama e gravetos secos constituíam um ninho em forma de cesta. “Hum…ali vai nascer alguém”, pensei. De repente, um sabiá encostou ao lado do muro branco, renovado com cal, e começou a esgravatar o solo a procura de alimentos. Me observava e ciscava sem pressa, talvez confiante em sua argúcia, já que estava em casa, onde o estranho era eu.

Me afastei e caminhei à esquerda para ler as inscrições e os epitáfios escritos de improviso no concreto ou gravados nas placas de bronze. “Por que os túmulos são tão diferentes? Não poderiam ser iguais?”, perguntei aos meus pais. Me explicaram que os maiores normalmente pertencem aos ricos. Há quem acredite que quanto maior o jazigo, maior o nível de importância do falecido. E baseado nessa crença faraônica supõe-se que até mesmo os estranhos serão atraídos pelos mausoléus. A imponência sempre ajudou a destacá-los dentre os demais, como num floreio que ingenuamente romantiza o inevitável destino de todos os seres.

Em minhas reflexões, túmulos, por mais distintos que fossem, lembravam embalagens de produtos ou pacotes de presentes. Quero dizer, por mais suntuosa que fosse uma sepultura, a verdade é que resguardava a mesma matéria de qualquer outra. Alguns mausoléus eu via como fortalezas, criadas para proteger ou velar a frágil efemeridade humana. Portas, janelas e grandes argolas me faziam suspeitar que talvez os familiares acreditassem na possibilidade de um retorno do querido ente falecido. “Será que eles pensam que o morto um dia vai levantar e sair pela porta?”, questionei.

Observando, aprendi também que às vezes um sepulcro homérico pode revelar uma forma de carinho, tornada material, ou tardia compensação ao morto por algum desentendimento ou parca participação em sua vida. Ouvi histórias de pessoas que movidas por remorso flagelante gastaram pequenas fortunas nas construções de túmulos. Algumas obras custaram mais caro do que uma casa. Os materiais foram trazidos de outras regiões do Brasil e de outros países, assim garantindo à catacumba um privilégio sui generis.

“Você ficou sabendo que a família do Orlando contratou um especialista em arte maneirista para criar o projeto da sepultura?”, ouvi numa manhã. Talvez houvesse uma intrínseca relação com o memorial, o destempero humano diante da finitude, num exercício de perpetuação simbólica. “Vamos criar algo para que ele nunca seja esquecido. Para que séculos após sua morte ainda seja lembrado. Mesmo que não reste nenhum de nós, outros, mesmo que desconhecidos, estarão aqui para visitá-lo”, talvez pensem alguns, se negando a crer que a morte dos nossos sempre muda algo dentro de nós, mas o mundo há de continuar seguindo seu curso natural, ratificando nossa pequenez, independente da nossa dor.

Olhando ao meu redor no cemitério, e vendo tanto sortimento em cores, tipos, tamanhos e adornos, lembrei de uma aula do professor Babeto em que ele nos mostrou fotos de uma necrópole na França, onde a morte reafirma a indistinção dos seres humanos. Sobre o gramado verdejante havia apenas cruzes brancas de concreto. Tudo parecia tão uniforme, harmonioso, justo e coerente. Afinal, não há mais nada a ser provado quando a vida se esvai, já que somos o que fazemos em vida.

Talvez alguns sejam passionais demais para aceitar que os seus também foram vencidos pelo passamento, como tantos outros. Assim, não duvido que para alguns o jazigo passa a ser encarado como uma morada, onde o fim há de ser postergado até o momento que o último pedaço de tijolo ou de mármore estiver envolvendo o ataúde.

De qualquer modo, nunca me senti tão intrigado por mausoléus como me senti por túmulos velhos, desamparados, relegados ao ostracismo – que raramente recebem visitas de familiares e amigos. Curioso e inquiridor, descobri jazigos abandonados há décadas, de famílias que já não existem mais, com histórias e sobrenomes perdidos no tempo – obsoletos e extintos como raros espécimes. Conheci sepulturas que desapareceram porque não eram perpétuas, principalmente de pessoas humildes, lavradores.

Nos anos 1990, por exemplo, eu visitava o túmulo de duas garotinhas com não mais de dez anos, amigas de infância de minha mãe. Num dia chuvoso da década de 1960, elas foram atingidas por um raio enquanto lavavam louça no fundo de casa. Morreram agonizando num chão de terra batida que escureceu-lhes os cabelos claros que cobriam os rostos.

A tragédia comoveu muitos sitiantes que caminharam a pé por longas distâncias para orar pelas crianças, desfalecidas na mais alegórica das fragilidades, rodeadas por cafezais que em pouco tempo deixariam de florescer e frutificar. Dona Maria visitou a filha e a sobrinha até o dia que o túmulo não perpétuo foi destruído para dar lugar à outra criança falecida, que não corria o risco de ter seus restos mortais remanejados porque pagaram o suficiente por tal privilégio. Recebi a notícia há três anos, depois de procurar o jazigo em vão.

Tenho recordações de como eram pequenos os dois túmulos. Sem placas de bronze, fotos, nomes ou qualquer informação. Com o tempo, e sem alarde, continuaram existindo para poucos até o completo e figurado desvanecimento material. “Eram boas meninas. Só que o ciclo delas nesse lugar acabou. Talvez tenha sido melhor assim. A mãe sofria demais”, comentou uma velhinha com sorriso plangente.

Caminhei até outro jazigo, acompanhando essa senhorinha que se apresentou como Tazinha. Seus olhos rutilantes e primaveris contrastavam com a pele do rosto delgado e achacado pela ação do tempo. Tinha voz dulcificada, de quem aceitava da vida aquilo que ela oferecia e por menor que fosse ainda agradecia. Ela visitava o marido uma vez por mês desde 1957, quando ele morreu em decorrência da maleita.

Trabalhava abrindo estradas em Paranavaí, até que um dia adoeceu e não levantou mais. Não chegou nem a receber pelos últimos dois meses de trabalho. “Fui até a casa do patrão cobrar os atrasados. Daí o homem berrou: ‘Tenho nada com a senhora, meu negócio era com seu marido. Vá daqui!’ Sem me irritar, fui embora”, narrou. Anos mais tarde, Tazinha ficou sabendo que o sujeito foi assassinado a tiros. Ele vendeu um sítio com duas casas e tentou derrubar uma delas para revender a madeira.

Após a morte do marido, Tazinha nunca mais se relacionou com outro homem. Ainda carrega no dedo a aliança de casamento comprada em 1951. Quando perguntei se ela não se sentia muito sozinha, argumentou que a solidão não habita um coração em comunhão com a própria vida. Também questionei o motivo dela continuar visitando o marido depois de tanto tempo.

Enquanto ela asseava o túmulo com um pedaço de flanela, um dos mais singelos do cemitério, o desempoando como se estivesse fazendo carícias, me observou com um sorriso cândido e respondeu: “O ser humano que não é fiel às suas promessas não é capaz de ser fiel a si mesmo. Assim como faço todo mês, estou aqui cumprindo a minha, não por obrigação, mas porque revigora o meu coração. A vida está em todos os lugares, nas entranhas da terra e nas incertezas do céu, e no cemitério não é diferente. Daqui também se vê o nascente, assim como o poente.”

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O pendão e o pé de feijão

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Me dava a impressão de que queriam romper o telhado e ganhar os céus

Parei de incomodá-los até a tarde em que conheci o conto “João e o Pé de Feijão”, do inglês Benjamin Tabart (Arte: Lindsey Bell)

Parei de incomodá-los até a tarde em que conheci o conto “João e o Pé de Feijão”, do inglês Benjamin Tabart (Arte: Lindsey Bell)

Um dia, quando eu tinha seis anos, eu e meu irmão Douglas estávamos em casa, na sala de estar, ladeados pelos colossais pendões ornamentais de minha mãe. Eram sarapintados e tão bonitos que ficamos em torno deles os observando e tocando. “Parece cabelo de milho, só que colorido!”, comentei.

A maneira como se esforçavam para acariciar o teto quando a brisa invadia a sala me dava a impressão de que queriam romper o telhado e ganhar os céus. Suas formas delgadas e perfiladas convidavam nossas mãos miúdas a fazerem cócegas um no outro com suas franjas. Em pouco tempo, e mais vermelhos do que um dos pendões, rolávamos pelo chão às gargalhadas, coçando a cabeça, o rosto e os braços. As cutucadas nas orelhas intensificavam as casquinadas.

A balbúrdia era tão grande que o piso de tacos, recém-lustrado pela minha mãe, vibrava e ganhava marcas de dedos, cotovelos e solas de pé. A verdade é que os pendões nos serviam até para brincadeiras de esconde-esconde. Sofria diante de nossa presença, e às vezes eu suspeitava que ele tremulava mais por medo do que por incidência fortuita da aragem.

“Agora vêm esses loucos em miniatura”, talvez aventasse, contraindo-se timidamente. Parecia que se encolhia com a nossa chegada, como menina empenhada em não ser notada. Muitas vezes, assim que cheguei da escola, joguei a mochila sobre a cama e fui até a sala. Corria em torno dos pendões, imitando um índio aprendiz de guerreiro. Ocasionalmente, enfiava a cabeça entre eles, observando a ausência de luz de um candeeiro. Fechava os olhos e sentia um quimérico e tenro perfume alvissareiro.

Imaginava um rio caudaloso, para onde eu poderia fluir como suas águas, se me lançasse sem sobrosso. Com as canetinhas de colorir, fazia alguns riscos no rosto. Urrava com voz falsa e continuava a incomodar os pendões até a hora de ir para a escola. Um dia, arrastei o vaso para mudá-lo de posição e senti uma força me impelindo quase à exaustão. Embora dissessem que os pendões não tinham vida, me assustei ao ver um pouquinho de água no piso de tacos, em torno e debaixo do vaso.

Achei que os pendões tivessem chorado por minha causa e parei de incomodá-los até a tarde em que conheci o conto “João e o Pé de Feijão”, do inglês Benjamin Tabart. À noite, em casa, deitei no beliche com olhos intumescidos, divaguei pela história narrada pela professora Inês, e considerei: “Se não tem vida, por que ele parece maior? Estranho…muito estranho…”

No dia seguinte, minhas dúvidas aumentaram exponencialmente quando vi que estavam maiores do que nunca. Contei ao meu irmão Douglas o que aconteceu e ele também se aproximou para confirmar a minha suspeita do pendão se passando por pé de feijão.

Minutos antes do almoço veio a certeza de que algo precisava ser feito. Havia grãos de feijão em torno do pendão. Sorrimos com chiata, coçamos as mãos e olhamos um para o outro, movimentando maquinalmente a cabeça de cima para baixo, em concordância. “Quer dizer que não consegue mais fingir? Uhum…”, concluí.

No dia seguinte, enquanto minha mãe e meu tio conversavam na varanda, eu e meu irmão fomos até a sala. Antes observamos o entorno para ter certeza de que não seríamos surpreendidos por ninguém. Douglas tirou um isqueiro do bolso e eu tirei outro. Frente a frente, acenamos com a cabeça, e acendemos os dois – encostando-os nos pendões que queimaram como gigantescos busca-pés silenciosos, privados de assobiar.

Logo se transformaram em um nada incandescente. O fogo subiu tão rápido que me lancei para trás, sentindo o corpo quente e a visão ligeiramente turva. Inclinando a cabeça para cima, enxerguei o teto esbraseado. O fogo, vivo como nunca tinha visto, transfigurou suas formas até o momento em que Tio Lu, com o auxílio de minha mãe, se aproximou para impedir que ele se espalhasse.

Assistimos tudo em inércia. A intervenção rápida só não impediu que o forro ficasse preto. E assim ganhamos o nosso próprio céu enlutado, sem lua ou estrelas, apenas uma estática escuridão que ofuscava a réstia escabreada que tentava iluminar os restos de pendão.

Ficamos de castigo por um bom tempo. Apesar disso, nos sentíamos heróis, crentes de que evitamos que o gigante comedor de gente jamais desceria pelo pé de feijão transformado em pendão. “Não ia demorar até ele chegar. Fizemos bem”, comentamos. Depois de algumas cintadas e uma semana sem sair para brincar, minha mãe descobriu porque ateamos fogo nos pendões.

No dia da revelação, fiquei sabendo que antes do acontecido o vaso dos pendões foi trocado por outro igual, porém com fundo raso, dando a impressão de que eram maiores. Além disso, a água em torno dos pendões foi derramada na manhã em que minha mãe foi ao nosso quarto com um balde de água para limpar o piso.

“Os grãos caíram no chão quando corri pela sala com um pacote aberto de feijões para atender ao telefone”, confidenciou. Ouvimos em silêncio, entendemos e reconhecemos nossa culpa. De volta ao quarto, sorrimos um para o outro. Atirei um grão de feijão cru em meu irmão e ele atirou outro em mim. Não era preciso articular palavra. “A inocência não se envergonha de nada”, dizia Jean Jacques-Rousseau.

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Briga de rua

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Em meio a socos, chutes de peito de pé e hadaka jime, um dia um senhor alto apartou eu e Fabiano

Meu irmão à frente, Fabiano à esquerda e eu à direita quando brincávamos de lutinha (Foto: Arquivo Familiar)

Meu irmão Douglas à frente, Fabiano à esquerda e eu à direita quando brincávamos de lutinha (Foto: Arquivo Familiar)

Eu tinha nove anos, meus punhos estavam cerrados e levantados à altura do meu queixo enquanto meus pés descalços raleavam a terra arenosa do quintal da nossa casa branca na Rua Artur Bernardes. Os movimentos rasteiros faziam a poeira castanha emergir do chão, polvilhando meus tornozelos. Ao redor das jabuticabeiras que neutralizavam a invasão do sol por vários pontos, Mussum latia ocasionalmente, saracoteando de um lado para o outro e tentando retesar o próprio rabo em forma de biscoito.

Preto que chegava a azular, o cãozinho ranheta, com uma barriguinha desnuda em pelos e temido pelos vizinhos, era naquele momento o nosso juiz. À minha frente, Douglas, meu irmão mais velho, também mantinha os punhos firmes e os olhos fixos em minha direção, esperando qualquer investida inesperada. Fabiano, Henrique e Thiaguinho assistiam tudo e faziam provocações, arremessando jabuticabas podres no centro da nossa arena demarcada com gravetos. Rindo, meu irmão me golpeou de leve no peito e eu retribui dando-lhe um soco canhestro na barriga. A cada murro a arena ficava menor. Íamos nos aproximando, arrastando os pés encardidos, até que a luz do sol, mais forte a certa hora, atravessava as jabuticabeiras e queimava nossos ombros nus, deixando marcas disformes que pareciam tatuagens adâmicas dos Homens do Sol.

Em seu esplendor, avisava sem fazer barulho que era hora de findar a distância. Então nos lançávamos um sobre o outro e caíamos na terra, rolando com destemor. Às vezes íamos tão longe que batíamos as costas na base da jabuticabeira, sentindo suas raízes ocultas pela relva nos impulsionando para cima. Cada choque violento na parte mais baixa do tronco chegava à minha mente em forma de frases curtas: “Levante-se, levante-se agora!”, “Você é tonto?” “Quer sair daqui com as costas raladas?” “Depois não adianta resmungar quando deitar na cama com as costas queimando”, “Vamos, moleque!”, me imaginava sendo advertido pelo pé de jabuticaba balouçando seus galhos como as mãos de um sujeito escalafobético.

Os golpes nos causavam pouco ou quase nada, mas as polpas das jabuticabas podres roxeavam nossos corpos depois de esmagadas, criando uma ilusão de ringue sangrento. Parecendo sapos-arlequins da Costa Rica, nos levantávamos rindo, exibindo os dentes brancos de forma caricata. Afinal, era a única parte não colorida pelo intenso violáceo da fruta. E assim a brincadeira continuava. No nosso ritual pós-luta, nos aproximávamos e tirávamos as cascas de jabuticaba que se fixavam nas partes que nossos braços curtos não alcançavam. Um ajudava o outro e apontava os desenhos que surgiam a partir dos diferentes matizes de roxo. Éramos duas telas que a natureza se encarregava de pincelar de acordo com nossas ações, previsíveis ou não.

Através do sol, das árvores e do solo firme como nossa crença de que nada era mais importante que o tempo presente, a natureza enchia meus olhos, apresentando um universo de infinitas possibilidades. O mundo era limitado para quem o via arestado, inclinado sobre um flanco debilitado. Arteiros, subíamos nas jabuticabeiras e esfregávamos o nariz púrpuro entre as flores brancas, pequenas e perfumadas. Sentia minhas narinas tingidas nas bordas como se fossem o botão do floreado.

No alto, com os pés nus escorados em suas curvas finas e medianas, comíamos jabuticaba até alguns galhos ficarem lisos. Mussum, que não aceitava o fato de não saber subir em árvores, girava até estontear e deitava na relva com os olhos já amansados. Era o apoteótico desespero do curvilhão. Vencido, movia a cauda argolada com sutileza contra um punhado de frutas que se esfacelavam no chão, protegidas pelo silêncio da leveza. Seu prêmio de consolação era o rabo roxeado que ele usava como bastonete de tira-gosto. Esfregava a cauda sobre as jabuticabas e a lambia com cuidado e atenção. Só parava quando recobrava o seu negrume natural.

Ocasionalmente, as lutinhas eram realizadas ao ar livre. Ninguém se machucava de verdade, e a encenação proporcionava mais realismo à brincadeira, tanto que passantes paravam e nos observavam, talvez refletindo se deveriam ou não intervir no que estava acontecendo. Em meio a socos, chutes de peito de pé e hadaka jime, um dia um senhor alto e corpulento de pouco mais de 40 anos, recém-chegado ao bairro, apartou eu e Fabiano. Descalço e concentrado sobre a calçada de casa, vi apenas uma grande sombra me cobrindo e bloqueando o sol. Pequeno, me senti diante de um eclipse. “Por que vocês tão brigando?”, disse o vozeirão retumbante que parecia emanado dos céus. Estremeci e pensei até que pudesse ser Deus me repreendendo pelas minhas traquinagens.

“Vocês já sentiram a espora de um galo de combate no calcanhar? Acho que eu não seria capaz de suportar isso, ou a perda de um olho, ou dos dois olhos, e continuar a lutar como os galos de combate. O homem não é tão forte quanto os outros animais”, defendeu, citando Hemingway em “O Velho e o Mar”. “E mesmo que fosse, de que valeria isso se as palavras são sempre mais vigorosas que os braços? O corpo cansa justamente quando a mente descansa. Não se enganem, meus amigos”, advertiu o homem de origem ucraniana que tinha apelido de Polaco. O nariz de Fabiano sangrava e provavelmente aquele homenzarrão pensou que eu fosse o culpado. A verdade era que nosso amigo sofria de epistaxe, um sangramento nasal que o impedia de se expor ao sol nos dias mais quentes. “O forasteiro que ali chegasse, mesmo para breve visita, era praticamente obrigado a tomar logo partido”, escreveu Érico Veríssimo em “Incidente em Antares”, que anos depois me fez rememorar o episódio.

Ex-atleta de levantamento de peso básico, Polaco nos convidou para sentar em um banco de madeira da casa vizinha e relatou com voz pausada como seu irmão caçula morreu em 1991. Conhecido como Mão de Tijolo, Ivan Ferdoska caminhava sozinho pelo centro de Paranavaí quando viu um casal discutindo perto do Restaurante Chapelão, na Rua Manoel Ribas. Em menos de minuto, o homem se lançou sobre a própria namorada e deu-lhe dois murros na cabeça e três chutes nas pernas. Assistindo a cena, Mão de Tijolo não se conteve e acertou um soco em cheio na boca do agressor que caiu no chão desnorteado, ladeado por lascas e pedaços de dentes que voaram sobre a calçada. A mão de Ivan era tão grande e a cabeça do agredido tão pequena que era impossível encontrar uma parte do rosto do rapaz que não estivesse roxa.

Sem dizer palavra, Mão de Tijolo ajeitou a camiseta regata preta e seguiu andando, como se nada tivesse acontecido. Nesse ínterim, o homem deitado no chão e com um olho tão caído quanto o do Quasímodo, de Victor Hugo, sacou uma pistola pequena escondida na botina e disparou, com uma arma mais carregada de cólera do que de balas, três tiros contra Ivan que tombou no chão apoiando-se contra os braços flexionados na calçada de petit-pavé. Entre as pedras brancas e pretas, escorria seu sangue, formando um mapa famigerado do acaso, da poltronaria e da torpeza.

O rapaz morreu três horas depois. Polaco ficou ao lado do irmão na Santa Casa de Paranavaí até o suspiro final, observando-lhe os olhos acinzentados e ternos, a boca levemente entreaberta, a tez pálida e o aspecto sorumbático de quem reconhecia o próprio fim aos 28 anos. Apesar dos olhos marejados, evitou que as lágrimas escorressem pelas maçãs descoradas. Nos últimos minutos de vida, abraçou o irmão e jurou que não estava triste. Mão de Tijolo pediu que Polaco tirasse de seu bolso um bilhete premiado de loteria e revelou:

“Saí pra caminhar e pensar no que fazer com o dinheiro. Eu realmente não sabia, agora já sei. Fique com ele e não lamente por mim. No fim, talvez a vida não seja justa, mas é coerente e equilibrada. Poderia ser aquela moça em meu lugar e isso eu não poderia admitir. Se pra cada morte há um nascimento, acho que não devemos reclamar tanto, somente agradecer pela oportunidade de que mais pessoas tenham a experiência de viver. Pouco ou muito ela sempre vai valer a pena. Ah! Amanhã eu iria buscar minha CBX 750 na oficina depois de tanto tempo sem dinheiro. Tudo bem, que assim seja. Meu irmão, só peço a você que não se vingue pelo acontecido. Se quiser fazer algo por mim, espalhe compreensão por onde for, lute contra a violência. Combata o ódio e qualquer outro sentimento que amargue no coração a morte precoce. Acho que não adianta ser aparentemente pacífico se dentro de você habita a violência. A paz também é aquilo que fazemos dela quando estamos sozinhos.”

Após a morte de Ivan, o solitário Polaco continuou morando perto de mim por mais alguns anos, até que vendeu a própria casa e doou todo o dinheiro. Numa véspera de Natal, visitou alguns bairros pobres de Paranavaí e empurrou por baixo das portas envelopes recheados de dinheiro. Sem se despedir e sem chamar a atenção para si, desapareceu. Não sei até que ponto Polaco me influenciou, mas cresci avesso às brigas, como um Alex De Large, de Burgess, naturalmente reformado.

Com 19 anos, fui colocado à prova num início de noite na Avenida Paraná, em frente à antiga Imobiliária Gaúcha, onde alguns amigos marcaram um encontro. Na realidade, era uma armadilha de jovens ébrios. Chegando lá, um deles inventou histórias a meu respeito. Me provocou em vão, pois não reagi. Em silêncio, observei as atitudes dos três que me instigavam a brigar. Sem mover os pés da calçada, me mantive calmo num ambiente hostil. Ainda assim, um deles se aproximou de mim e acertou um soco na minha boca.

O sangue escorreu pelos meus lábios espessos. Experimentei a queimadura do corte no canto superior direito. Na mesma posição, passei o polegar direito pelos lábios, vi o sangue denso, levantei meu dedo banhado em carmesim e perguntei: “Cara, por que você fez isso? É uma pena…” Meu amigo Edson quis bater no agressor, só que eu o impedi porque nada naquele momento me causava medo. “A Morte tinha desaparecido de sua frente e em seu lugar via a luz”, refleti, lembrando-me de Ivan Ilitch, de Tolstói.

Contrariando todas as expectativas, me calei, lavei minha boca em uma torneira instalada no mesmo local e fui em direção à Praça dos Pioneiros, retornando com a roupa avermelhada em algumas partes. Não senti raiva, apenas um misto de pesar e náuseas. Em casa, o sangue foi lavado com lágrimas pachorrentas que já não se repetiam mais. Observava no espelho a abertura no lábio com olhos grandes, então amiudados, e o palato esbraseado pela nebulosa bonomia. Tudo que era palpável no fundo era impalpável.

Ao longo de 10 anos, assisti cada um dos envolvidos no episódio aparecer no portão de casa pedindo desculpas, fazendo ecoar na minha mente um pequeno fragmento de “Só vim telefonar”, de García Márquez. “Dançou, cantou com os mariachis, abusou da bebida, e num terrível estado de remorsos tardios foi procurar Saturno à meia-noite.”

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Enquanto o ônibus não chega

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A rodoviária desapareceu do meu campo de visão e me senti na orla da existência terrena

Fui até o ponto de vendas da Viação Garcia e comprei uma passagem para Nova Esperança (Foto: Reprodução)

Fui até o ponto de vendas da Viação Garcia e comprei uma passagem para Nova Esperança (Foto: Reprodução)

Num final de tarde de novembro de 2004, quando eu cursava o penúltimo ano de jornalismo, caminhei a pé da faculdade até a Rodoviária de Maringá, na Avenida Tuiuti. A garoa caía fria, amenizando o calor irradiado pelos meus pés. Chegando lá, fui até o ponto de vendas da Viação Garcia e comprei uma passagem para Nova Esperança. A atendente me disse que o ônibus metropolitano atrasaria uma hora ou uma hora e meia porque um dos carros quebrou perto de Presidente Castelo Branco.

Como eu estava longe de casa desde às 6h, não gostei do que ouvi. Circulei pelo pátio, olhei alguns assentos e me imaginei deitado sobre eles, dormindo até a hora do embarque. A ideia rapidamente foi ofuscada pela franca possibilidade de eu perder o ônibus e ainda ser assaltado. Então fui até o banheiro, onde o zelador que despejava o sabonete líquido dos refis me observou de uma forma que pensei que tivesse algo de muito errado com minha aparência. Me aproximei do espelho e não notei nada. Lancei bastante água fria sobre o rosto, tentando afastar o sono e a letargia que me dominavam. Depois ajeitei os cabelos longos e pretos atrás da orelha e me dirigi até a lanchonete.

Pedi um salgado assado recheado com palmito e uma garrafa de água mineral. Comi tranquilamente, alheio às conversas ao meu redor e também à grande TV em volume alto transmitindo um jogo de futebol pela ESPN. Divagando, me recordei que a Editora Escala ainda comercializava a coleção “Grandes Obras do Pensamento Universal”. Me agradava a ideia de comprar livros feitos com papel reciclado por não mais do que R$ 7, se encaixando no meu orçamento. Caminhei poucos metros até a banca de jornais e revistas e contei pelo menos 10 títulos de meu interesse. Filosofia me apetecia muito à época. Escolhi “Cartas Persas”, de Montesquieu; “A Gaia Ciência”, de Nietzsche; e “Ensaio Sobre a Liberdade”, de Stuart Mill. Gastei menos de R$ 20, guardei meus novos livros na mochila e inquieto percorri todos os cantos do pátio até a estafa me consumir pela segunda vez.

Diante da plataforma, sentei numa poltrona fria e abri a mochila enquanto choros e gritos de crianças ecoavam por todas as direções. Algumas queriam dormir, outras pediam doces e brinquedos das lojas. Fechei os olhos por alguns segundos, restabeleci a serenidade e abri o livro “Demian”, do alemão Hermann Hesse, um de meus autores preferidos de todos os tempos, que dialogava com minha humanidade juvenil, conflituosa e existencialista mais do que qualquer outra pessoa. Exatamente na página 28, assim que li o trecho “O fim daquele suplício e a minha salvação me chegaram de onde menos esperava, e com isso entrou em minha vida algo novo, algo que até hoje continua atuando sobre mim”, uma moça da minha idade, de aproximadamente 1,68m, pele alva e coruscante como as pétalas de uma margarida, cabelos castanho-claros e olhos que fulguravam a beleza e transparência de um topázio amarelo, sentou-se ao meu lado, mantendo sobre o colo um exemplar de “Viagem ao Oriente”, do mesmo autor.

A observei furtivamente e continuei minha leitura por pouco tempo. Perdi a concentração ao sentir que seu corpo exalava um perfume que era um paradoxo em essência, um bálsamo suave de frutos silvestres. Sem saber, ela me conduziu a um bosque etéreo, onde a natureza suspensa de suas ramas me cobria com uma luz morna e serena. “Lá estava o mundo ofertando-se por completo diante dele. Voltava com novas cores, cheios de vida, pertenciam-no e falavam sua linguagem. Tinha o mundo inteiro em seu coração e cada uma das estrelas do céu resplandecia nele e irradiava prazer em toda sua alma”, murmurava minha mente, parafraseando fragmentos da página 132 de “Demian”.

Antes de dizer oi, como se acompanhasse minhas reflexões, a jovem ao meu lado comentou que um novo raio de luz se voltava para ela. “Sinto uma alegria aprazível, patente e sem discórdias, coisas que duram breves minutos ou longas horas”, sussurrou, também citando “Demian”, me surpreendendo a ponto de meus olhos se agigantarem em espavento. A cada palavra, seu sorriso iluminava e aquecia meu rosto, contagiado por satisfação que intrigava e alimentava minha substância. Nos cumprimentamos e perguntei seu nome. Com expressão enigmática, me respondeu que era Gertrude. “Sendo assim, o meu é Kuhn”, declarei com um sorriso enviesado seguido por uma rara gargalhada que atraiu a atenção até de estranhos. Numa brincadeira singela, condutora do desconhecido, nos apresentamos com nomes de personagens indissociáveis da novela Gertrude, de Hesse, transpondo para o mundo material um pouquinho da emoção, espiritualidade e motivação que inebriam os seres humanos imersos na sua ficção.

Não perguntei nem especulei nada sobre sua vida e ela fez o mesmo. Apenas seguimos mergulhados em um mundo totalmente nosso. Em menos de meia hora, eu já pouco enxergava além de seus olhos. A rodoviária desapareceu do meu campo de visão e me senti na orla da existência terrena, sobre uma ponte que vibrava, atraindo meus pés para um quinhão distante, que se projetava para dentro e para fora de mim, fazendo meu coração rufar. Como passatempo, ela sugeriu recriarmos “Gertrude” com base em nossos anseios, desconsiderando o que Hesse teria feito ou pensado. Assim a história renascia através da nossa oralidade. Eu falava por Kuhn e ela por Gertrude. Imaginei mais tarde que ao nosso redor parecíamos dois jovens alucinados, o que não nos incomodava nem um pouco. Nos confortávamos com a completude do momento.

Quando o ônibus chegou, entramos e caminhamos até as últimas poltronas à direita. O veículo estava quase vazio. Ela sentou ao meu lado e tirou algumas folhinhas verdes que se fixaram no meu cabelo como presente de uma brisa. Logo começou a esfriar, e o céu enturvecido fez a noite precoce suplantar o horário de verão. Então tirei uma blusa da minha mochila e ela a vestiu. Sem dizer palavra, escorou a cabeça em meu ombro e assistimos a chuva paulatina escorrer pela janela. Como havia poucos passageiros, ouvíamos até os sons estalados dos pneus do ônibus em atrito com a água. A luz que inexistia lá fora, crescia dentro de nós, iluminando tudo aquilo que a visão ignora na superficialidade. Definitivamente o mundo era um lugar diferente.

Gertrude dormia segurando minha mão esquerda, trazendo no rosto uma expressão maviosa que principiava um sorriso. Seus cabelos claros se misturavam aos meus mais escuros que a noite, por ora, grafitada. Seu perfume atuava sobre mim como um fruitivo calmante que harmonizava o ritmo do meu coração. Em Nova Esperança, a chuva se dissipou. Ela acordou e desembarcamos na rodoviária. Não havia conexão para Paranavaí e tivemos que esperar um ônibus convencional da Garcia que chegaria em 40 a 50 minutos. O lugar estava deserto, tanto que ouvi sons de latões de lixo revirados por andarilhos. Gertrude se aproximou de um cãozinho sujo e lhe acariciou a cabeça e a barriga até que ele deitou no pátio da rodoviária com ar de satisfação e as patas apontadas para cima. “O nome dele poderia ser Knulp. É simples, tem jeito de viajante e tenho certeza que não se importa com nada daquilo que motiva a ganância humana”, brincou Gertrude, citando outro personagem de Hesse, e me abraçando contra uma pilastra.

Mantendo meu queixo levemente encostado sobre sua cabeça, em meio ao silêncio notívago, eu ouvia sua respiração e ela a minha. Ficamos assim até a chegada do ônibus. Sentamos nas primeiras poltronas e ela voltou a encostar sua cabeça em meu ombro. Lá fora, assistíamos o estoico contraste da miséria humana. Em Alto Paraná, um rapaz acompanhado de três amigos em um Alfa Romeo Visconti arremessava garrafas long neck contra as placas de sinalização. Na mesma avenida, logo atrás, um homem de mais de 80 anos, com um problema de coluna tão severo que suas costas formavam um arco, recolhia as garrafas que caíam inteiras. Antes de chegarmos a Paranavaí, Gertrude já tinha se aninhado em meu peito. Quando passamos pela polícia rodoviária, perguntei onde ela morava e me disse que iria passar a noite em um hotel, retornando para casa pela manhã. Não entendi o motivo, mas respeitei sua decisão. Afinal, não queria ser visto como intrometido. Na Avenida Heitor de Alencar Furtado, contei que eu desceria no cruzamento com a Rua Antenor Grigoli, e apontei com o dedo o meu destino.

Assim que me levantei, Gertrude segurou minha mão e, com olhos vibrantes, pediu que eu a acompanhasse. Descemos na Avenida Paraná e fomos para um hotel na Rua Getúlio Vargas. Por sorte, ainda havia uma suíte disponível. Subimos, tomamos banho e passamos a noite juntos, nos redescobrindo nas nossas particularidades. Minha voz começava onde a dela terminava, e tudo que emanava de sua natureza floreava a minha própria. Antes de sermos vencidos pelo sono, enquanto ela repousava sobre o meu peito, deslizei as pontas dos dedos das minhas duas mãos pelo seu rosto delicado e, observando atentamente seus olhos dourados, falei: “Há que se ver no olhar o reflexo de um mar que corre calmo e se arrebata com o aroma mais sereno trazido pelo ar. Acho que nem tudo na vida precisa de nome ou de definição. Se estamos aqui agora é o que importa, essa existência rara de uma conexão.”

Ela sorriu, tapou meus olhos com uma de suas mãos miúdas e percorreu meus lábios com os dedos da outra. Depois se aconchegou entre meus braços e dormimos. Pela manhã, por volta das 8h, senti o sol invadindo a janela e iluminando o quarto. Gertrude não estava mais lá. Vesti minhas roupas e desci até a recepção. Ela pagou a conta do hotel, partiu e pediu ao recepcionista que me entregasse um envelope. Numa folha de caderno, confidenciou que não tinha parentes em Paranavaí, que sequer conhecia a cidade. Somente quis me acompanhar e passar pelo menos uma noite comigo, entregue a algo que segundo ela era mais verdadeiro do que a própria vida.

“Me pergunto às vezes quantas pessoas vêm e vão sem se calar o suficiente para ouvir o som do próprio coração. Tanta gente impaciente buscando profundidade em águas rasas, forçando a semeadura de frutos em árvores desfalecidas. Amam o que não amam e amargam na própria essência a dor da falta de vigor. Distante das aparências, choram caladas porque escolheram o pouco que se revestia de muito, o desespero que se travestia fortuito. Numa noite, tive com você o que muitas pessoas nunca tiveram ao longo da vida. Isso é amor em forma inominada, livre, isento, sem rótulos, que reafirma a ideia de que a vida vale a pena até na efemeridade das horas. Somos feitos de lembranças, de momentos e experiências, não de coisas, alianças e convenções sociais. Me perdoe, eu queria muito te ver novamente, mas não posso. Só que nunca esqueça que a ti carregarei pra sempre em meu ser”, escreveu.

Meu coração disparou e minhas mãos tremularam. Voltei pra casa e passei meses sentindo o perfume da tão conhecida e tão desconhecida Gertrude em meu corpo. Ocasionalmente sua voz se projetava no horizonte da minha mente, onde sua frase final dulcificava um eterno poente. “Ficava-lhe a consolação de encontrando-se, por assim dizer, do lado de fora da vida, poder apropriar-se dela e absorvê-la toda de um trago. Restava-lhe a singular e livre paixão de contemplar e observar…Seu destino era, pois, seguir sua estrela, que não reconhecia desvios em seu curso”, registrou, em referência ao final de Rosshalde, de Hesse, que também era o nosso próprio fim.

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Uma noite em Paranavaí

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Me perdi refletindo sobre como a escuridão também aspira à vida, revela belezas inexistentes à luz do dia

"Ele defendia que a noite era o início, nunca o fim do dia” (Foto: Amauri Martineli)

“Ele defendia que a noite era o início, nunca o fim do dia” (Foto: Amauri Martineli)

Uma vez, assim como outras, saí à noite para dirigir sem propósito específico ou destino. Era por volta das 22h, e a luz anilada da lua descortinava o meu caminho. Nas imediações, um silêncio singular contrastava com pios de uma pequena coruja com as garras presas ao galho mais robusto de uma flamboyant que repousava em nossa casa, esparramando-se em formas menores que pareciam dedos de mãos disformes. Nas extremidades, o vento a acariciava com suavidade e ela estremecia, fazendo suas vagens se moverem como unhas longas em maturação.

Conhecedora da natureza, a coruja mantinha-se imóvel exatamente na altura em que a brisa era mais deleitosa, eriçando suas penas e a estimulando a inclinar a cabecinha amolgada para trás. Inflamada, observava atentamente o entorno e ajeitava as garras sobre um grande galho verdejante que cobria nosso quintal. Então emitia um canto prolongado que soava como sinal de agradecimento. Naquele dia, não vi muitas estrelas no céu. Bonançosas, as nuvens não tinham intenção de impressionar os mais desatentos. Tudo ao meu redor estava especialmente apolíneo e assim me perdi refletindo sobre como a escuridão também aspira à vida, revela belezas inexistentes à luz do dia, quando a clareza realça mais o perceptível do que o imperceptível.

“Por que relegam à noite tantos sinônimos funestos?”, pensei enquanto observava da entrada de casa a luz amarelada e desbastada sobre um poste do outro lado da rua. O sopro noturno prosseguia e me trazia o aroma orvalhado e fresco das hortelãs que minha mãe sempre plantou no quintal. Sentei no meio-fio por alguns minutos, e Kika, a cachorra mestiça de casa, se aproximou, emitindo sons miméticos que tentavam imitar a fala humana. Em situações de grande excitação, ela nunca latia. Queria uma autorização para ganhar as ruas tranquilas de uma noite acirrante. Concedida, correu empolgada, meneando o rabo torto que oscilava como ponteiro entre as pernas finas. Suas orelhas sacolejavam como pequenas e vigorosas bexigas amendoadas, recheadas de alguma coisa impalpável como um pouquinho de ar sem sê-lo.

Na praça da catedral, Kika manteve a boca aberta e os olhos intumescidos. Escorregou pela grama e fez balizas embaixo dos bancos de concreto. Quando cansou, retornou sem se importar com manchas de cal, punhado de carrapichos fincados no dorso e cheiro acentuado de sarça. Ela não ia longe. Nunca foi. Seu senso de liberdade não exigia mais de 500 metros de distância de casa. Assim que ela retornou, tirei o carro da garagem e fechei o portão. Coloquei um CD do Mogwai e comecei a ouvir “Take Me Somewhere Nice”.

O horizonte da Rua John Kennedy, no Jardim Iguaçu, parecia afunilado, entranhado numa escuridão cerúlea e silenciosa que principiava muito mais do que os olhos são capazes de ver num primeiro momento. Guiei o carro pela descida, observando mais adiante a brisa aproximando as copas das árvores, como se quisesse uni-las num túnel seivoso com uma base forrada de flores matizadas. Iam se amontoando nas ruas e calçadas, sincronizadas com o ritmo plácido e gracioso da música.

A ausência de aspereza era tão solene que as folhas e o floreado afagavam o asfalto ferido pelo descaso, remendando-o com suas figuras e cores que contrastavam com a opacidade da fuligem fedegosa de cana. A noite era dos felinos. Com poucos cães na rua, os gatos reinavam solitários. Brancos, pretos, acinzentados e mesclados atravessavam por todos os lados sem pressa, fazendo da cauda uma bandeira, um chicote e uma antena.

Antes de chegar à Avenida Parigot de Souza, um deles correu na minha frente. Ficou parado me observando com uma expressão cabalística. Depois lambeu o próprio pelo escuro como a noite. O rabo longo serpenteou remansado. As patas pouco se moviam e os olhos afogueados reluziam um vermelho portentoso. Desviei e o bichano continuou lá, imóvel no seu capitólio de piche. Assisti pelo retrovisor o reflexo dos seus rubis acompanhando o movimento das rodas do carro.

No semáforo perto do cruzamento da Avenida Paraná com a Rua Pernambuco, um catador de latinhas sem teto fez reverência medieval e estendeu as mãos calejadas, pedindo contribuição dos motoristas para comprar algo pra comer. A maioria se recusou a ajudar, até que alguém o chamou e estendeu através da janela do carro uma sacola com um lanche embalado e uma lata de refrigerante. Sem velar o sorriso largo, o rapaz agradeceu e caminhou rapidamente até um terreno baldio. Lá, abriu a sacola, retirou o lanche e de pedacinho em pedacinho alimentou uma cadelinha mestiça com as patas enfaixadas que repousava sobre um lençol surrado.

Desci mais um pouco, até as imediações do Terminal Rodoviário, onde três travestis, com cabelos bem escovados e usando saias e sapatos de salto agulha, apontavam as mãos para um homem de meia-idade embriagado e segurando uma faca de cozinha. “Se ele me chamar de corno outra vez, vou enfiar a faca nele!”, gritou cortando o vento com a lâmina apontada para o jovem que gargalhava em tom de deboche. Assistindo a cena e prevendo final trágico, o dono de um bar se aproximou e disse:

“Olha, Afonso, te conheço há muito tempo e sei que ainda não é o suficiente pra entender sua dor, mas se a vida não vale o amor, muito menos ela recompensa o desamor. Desilusão amorosa não destrói ninguém. O que te mata é a inexperiência em ver e sentir além. Perdi duas mulheres na minha vida, uma pra outro homem e outra pra morte. O amor não se trata de azar ou sorte. Não culpo Deus, não culpo ninguém. Aprendi há muito tempo que a vida é sempre maior do que nós. Ela é tão grande que muitas vezes não a enxergamos porque estamos cabisbaixos. Tenho certeza que amanhã cedo você vai perceber isso. Vá pra casa, meu amigo. Suas filhas vão precisar de você mais do que nunca.”

Afonso soltou a faca no chão e ela tiniu contra a calçada de mosaico português. Mirando o chão, falou obrigado com a voz embargada e abafada. Levou as mãos ao rosto para esconder as lágrimas, virou as costas e correu arrastando o par de chinelos pela Avenida Salvador, até desaparecer no breu da Rua Serafim Afonso Costa.

Subi pela Rua Paraíba, onde quase em frente ao Shopping Cidade um casal discutia, atraindo curiosidade e comentários até de quem passava a metros de distância. Alguns pareciam esperar e até torcer pelo pior. Não prestei muita atenção na conversa, apenas no momento em que o rapaz puxou a moça para si e a calou, segurando-a pela cintura e dando-lhe um beijo vulcânico que diminuiu até o ritmo do trânsito na Rua Getúlio Vargas.

Depois segui em direção à Avenida Distrito Federal e por um descuido entrei na rotatória sem dar preferência a uma caminhonete que vinha acelerada. Segurando uma lata de cerveja, o motorista buzinou, me ultrapassou na contramão, reduziu a velocidade, abriu o vidro e manteve o dedo médio apontado, aguardando minha reação e me impedindo de passar dos 20 quilômetros por hora. Quando levantei o polegar da mão esquerda, ele simplesmente desapareceu do meu campo de visão, deixando uma rajada de fumaça que em poucos segundos se desvaneceu como sua ira.

Continuei dirigindo, sentindo o vento brando no rosto, o bálsamo volátil das ruas e de tudo que a habita. O tráfego seguia fleumático na entrada do Jardim São Jorge. Acompanhava a lentidão que contagiava um grupo de adolescentes encostados na parede de um prédio comercial abandonado. Bebiam tubão e uns zombavam das tatuagens dos outros, numa brincadeira de ressignificações.

No entorno da Praça dos Expedicionários, um idoso sentado sobre os próprios pés monologava num tom que parecia um exercício de dicção. Quando me viu, se aproximou e me convidou pra descer do carro. “Chega aí, gente fina. Vou te contar uma história”, adiantou. O homem parecia um jovem habitando um corpo de mais de 70 anos. Mantinha a postura ereta e se movia com leveza.

“Não tenho problema na coluna porque a vida toda andei mais inclinado pra cima do que pra baixo. Como você vai enxergar o mundo se não fizer isso?”, ponderou às gargalhadas. Me puxou pelo braço e me levou até o centro da praça, onde as cinzas de seu pai foram lançadas décadas atrás. Em poucos segundos, senti perfume de hortênsia. Quando olhei para o lado, vi aquele homem de quem nunca soube o nome tirando um sem número de pétalas azuis dos bolsos de uma calça larga. Ao caírem no chão, ajudavam a completar um grande círculo apoteótico.

Era uma homenagem ao seu pai, um pracinha que participou da Segunda Guerra Mundial e sobreviveu a um bombardeio em Montese, no Norte da Itália, mas morreu atropelado no mesmo lugar onde a praça foi construída, após salvar um cão abandonado. “Ele continua por aqui. Sei disso porque o mesmo vento que tantas vezes levou suas cinzas para longe daqui as trouxe de volta. Elas vêm e vão, indeléveis, na brincadeira do sopro sul com o sopro norte. A presença do meu velho vem acompanhada do som de um assobio que ele dava sempre que ria. Defendia que a noite era o início, nunca o fim do dia.”

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O Circo dos Irmãos Cervantes

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De sua boca, saíram fumaças coloridas que serpenteavam e se fundiam, ganhando formas

Local onde o Circo dos Irmãos Cervantes foi montado em 1993 (Foto: David Arioch)

Local onde o Circo dos Irmãos Cervantes foi montado em 1993 (Foto: David Arioch)

Na minha infância, quando o circo chegou a Paranavaí, pedi à minha mãe que me levasse para assistir um espetáculo. Tradicionalmente, o picadeiro foi instalado ao lado da delegacia, na Avenida Heitor Alencar Furtado. Pelas ruas do centro da cidade, eu ouvia carros de som circulando e anunciando atrações quiméricas que na minha imaginação pareciam saídas de alguma série como Amazing Stories ou filme como Freaks. “Alô, alô, criançada, o circo chegou!”, repetia o refrão glutinoso que me lembrava a musiquinha de abertura do programa do Bozo.

Traziam adesivos enormes de personagens histriônicos na lataria. Às vezes, alguns artistas atravessavam a região central e alguns bairros na carroceria de uma caminhonete. Acenavam para as crianças, arremessavam balas, pirulitos e os convidavam para a estreia. Muitos pais se animavam com a ideia dos filhos conhecerem o circo, já outros assumiam um aspecto sorumbático e arreliado que não escondia o fato de que o circo tinha chegado na pior hora, quando lhes faltava dinheiro para gastar com qualquer tipo de diversão. “Porcaria de circo! Melhor seria se não viessem a Paranavaí. Tenho raiva e nojo dessa gente que vem pra cá com esses showzinhos ridículos só pra buscar nosso dinheiro. Lazarentos mercenários!”, esbravejou um senhor dentro de uma F-1000 na primavera de 1993 ao ver o carro de som passar em frente à Escola São Vicente de Paulo, onde ele buscava diariamente um dos filhos que estudava comigo.

Ao perceber a ofensa, o palhaço sorriu, fez uma micagem escalafobética e arremessou algumas balas sobre o chapéu de abas largas do homem. Os doces de cores sortidas deram ao sujeito trombudo uma expressão tão sarapintada e cômica que muita gente gargalhou. Confuso, só depois que a caminhonete do circo se afastou que o homem percebeu o que aconteceu. O episódio levou dezenas de crianças para o centro da Rua Getúlio Vargas. Dois guardas tiveram de interditar a rua para que as crianças da escola vissem de perto o rastro de cores formando inúmeros arco-íris de dimensões irregulares no meio do asfalto. Me aproximei, ajoelhei e senti um perfume floral que me sopitou mais do que o chá de camomila preparado pela minha mãe.

“Como aquele carro criou esse caminho de arco-íris? Como isso é possível?”, perguntavam e se entreolhavam as crianças mais abelhudas. Algumas garotinhas tentavam em vão raspar os arco-íris do asfalto com pedaços de graveto. Parecia feito de tinta sem ser tinta. Continuava impérvio e etéreo, como se entranhado em um chão do qual curiosamente não fazia parte. Para mim, na minha completude meninil, aquilo era mágica, um encantamento para ser visto e sentido sem ser tocado ou compreendido.

Tinha textura vaporosa e astuciosa de um nada revestido de um todo e vice-versa. Se estendia por mais de 50 metros, resplandecendo beleza tão portentosa que fazia os motoristas desviarem com receio dos pneus deixarem marcas de borracha sobre a curta estrada de arco-íris. Insigne era o fato de que um pequeno caminho colorido pacificou tanta gente. Fez muitos sorrirem e se tornarem complacentes, inclusive pais javardos, com fama de serem os mais aterrorizantes e bocudos da escola. Naquele final de setembro, por volta das 17h, o sol incidiu sobre a rua com tanto viço que o caminho de arco-íris ficou parecido com a estrada dos tijolos amarelos do conto “O Maravilhoso Mágico de Oz”, de Frank Baum.

Continuei no centro até escurecer, mas ao retornar com minha mãe pela Getúlio Vargas vi os arco-íris se desvanecendo após os primeiros toques suaves da garoa fleumática. Ainda assim as cores já inexistentes irradiaram uma mescla de cheiros que atravessou o centro da cidade quando a garoa se espessou, transformando-se em chuva delgada. Sem parcimônia, a olência deslizava com graça e paciência pelo asfalto, pelas beiradas dos meios-fios, espalhando fragrâncias que reafirmavam a mais pura das sinestesias. Funcionários em fim de expediente e donos de lojas olhavam de um lado para o outro, procurando a incompreensível origem do bálsamo matizado. Invisível era o vermelho resumido a um aroma de rosa. Havia também olores inebriantes de hibisco, ipê-de-jardim, trevo-de-cheiro, hortênsia, lótus e violeta.

No início da noite recortei do jornal o cupom de desconto de 50% do valor do ingresso e pedi para meus pais levarem eu e meu irmão ao Circo Espanhol dos Irmãos Cervantes. Afinal era sexta-feira e não precisaríamos acordar tão cedo no sábado. Chegando lá, por volta das 19h30, havia uma fila enorme como uma centopeia humana. Para entrar no picadeiro era preciso atravessar uma rampa de tábuas, onde um casal de anões recolhia os bilhetes enquanto um homenzarrão de mais de dois metros, com bigode trançado nas pontas e trajando collant, observava a movimentação.

Eufóricas, muitas crianças batiam os pés sobre a rampa. Se aquietavam ao notarem o olhar fixo e enviesado do galerão bigodudo. Para aliviar a tensão pré-espetáculo, o anão chamado Flecha explicou na entrada, num portunhol caricato: “Boa noche, mis amigos. Tengo certeza que verás cosas ahí que nunca olvidará. Quando saírem de qui, no verão o mundo de la misma manera. Diviértete! Boa suerte!” Em seguida, arremessou algumas bolinhas de fogo atiradas com o dedão da mão esquerda, as engoliu, abriu a boca, mostrou a língua, sorriu e exibiu os dentes de ouro. Depois tirou a cartola da cabeça, se curvou e girou os braços em direção ao picadeiro, convidando o público a se sentar nas ásperas, rangentes e modestas arquibancadas de madeira.

Mesmo com a chuva repentina, o ambiente estava quase completamente seco. Havia apenas orvalho nas rebarbas da lona. Assim que nos acomodamos, luzes vermelhas, laranjas, amarelas, verdes, anis e violetas percorreram aleatoriamente o cenário por alguns minutos, até se alinharem e formarem um arco-íris. Logo um homem de meia-idade, vestindo uma curta calça preta, camisa branca com botões pretos, gravata borboleta preta e um colete aveludado vermelho, caminhou até o centro do picadeiro e se apresentou como Ramón Cervantes, El Animal. “Respetable público. Estoy muy feliz de verlos aquí. Es genial estar en Paranavaí. Para los que vieram ver los animales, una advertência: neste circo somos los únicos animales. Y no somos pocos. Somos decenas, muchos. Só peço-te que fecha los ojos. No tengas miedo!”, disse Ramón. O apresentador bateu cinco palmas, as luzes se apagaram e a contragosto de alguns o silêncio tomou conta do ambiente.

Um cheiro de selva rapidamente se alastrou pelo picadeiro. Ouvi passos pesados e um barrir que fez meus cabelos esvoaçarem. Tive a impressão de que um elefante estava próximo de mim, encostando sua pata em meu joelho miúdo, até que desapareceu antes que eu pudesse enxergar alguma coisa. Então escutei o rugido de um tigre acompanhado de um mau hálito ferino que me causou arrepios. Era como se os animais estivessem circulando pelas arquibancadas, nos observando, analisando nossas reações e sentindo a energia emanada de nossos corpos. “No tengas miedo! No tengas miedo! Sinta la belleza de la vida y los sentidos”, repetia Ramón no microfone a cada 20 ou 30 segundos.

Também notei algo voando em minha direção. Senti um par de garras sobre o ombro direito e um bico tocando-me a cabeça. De repente ouvi o crocitar de um falcão que parecia bater as asas e voar para fora do picadeiro. Antes das luzes voltarem, uma mão aparentemente humana sem ser tocou a minha. Escutei um barulho ressonante e indecifrável. Com o retorno da iluminação, Ramón observou atentamente as expressões em nossos rostos. Apesar de não ter ouvido gritos, vi que parte do público tinha deixado o picadeiro sem entender a proposta do apresentador. Ramón não lamentou nem comentou nada sobre a evasão. Apenas agradeceu a compreensão dos que ficaram e convidou seu irmão Juanito Cervantes, El Boticario para comandar a segunda parte do espetáculo.

“Que hermoso! Quantas personas para ver nuestro show. Gracias, muchas gracias, mis amigos!”, elogiou Juanito num sorriso largo evidenciando dentes com as cores do arco-íris. O rapaz de pouco mais de 30 anos, e traje igual ao de Ramón, fechou os olhos, inspirou profundamente e expirou. De sua boca saíram fumaças coloridas que serpenteavam e se fundiam, ganhando formas de animais transformados em pessoas e pessoas transformadas em animais. As cores tinham aromas florais muito mais vigorosos do que aqueles deixados na Rua Getúlio Vargas.

Da plateia, Juanito convidou uma garotinha de sete ou oito anos para acompanhá-lo até o centro do picadeiro. “No tengas miedo. Será muy divertido”, prometeu. El Boticário se afastou aproximadamente um metro e meio e assoprou suavemente. O rosto da criança se coloriu, ganhando aspecto místico e refulgente reforçado pela imagem de um lírio amarelo que tinha o nariz miúdo e afilado da menininha como núcleo. Juanito mostrou o resultado em um espelho e perguntou se ela queria que ele lhe tirasse a pintura do rosto. Como a resposta foi negativa, o artista mostrou o desenho de um mosqueado Olho de Hórus em seu antebraço direito e assoprou. Em poucos segundos o olho se fechou e se apagou.

A plateia naturalmente se levantou e aplaudiu com palmas tão fortes e cadenciadas que El Boticário se ajoelhou e reverenciou o público. Antes de encerrar o espetáculo, Juanito fez um comentário em portunhol que reproduzo num português mais claro. “Se vê, sente ou ouve cores, cheiros e sons sem bolores, onde eles pouco existem ou até inexistem, é porque a liberdade te cativa com a tenra intensidade da sensibilidade.” Lá fora, andei em torno da lona antes de ir embora e percebi que não havia animais ou jaulas, somente uma caminhonete, um caminhão e um velho trailer variegado onde viviam os irmãos Cervantes, Flecha e sua esposa, e o gigante circunspecto.

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Meu amigo Chico

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Ele se despedia, piscava e partia segurando os sacos e correndo de costas

Altura da Rua Pernambuco, onde corri para alcançar o meu amigo Chico (Foto: David Arioch)

Altura da Rua Pernambuco, onde corri para alcançar o meu amigo Chico (Foto: David Arioch)

Na fase mais tenra da minha infância, eu tinha amizade com personagens improváveis para alguém da minha idade. Idosos e vendedores ambulantes sempre atraíam minha atenção. Os mais velhos pelas copiosas e esmiuçadas histórias que gostavam de relatar. E os ambulantes pelas altissonantes experiências que faziam questão de compartilhar. Mas hoje quero falar em específico sobre o meu amigo Chico.

Em 1990, Chico passava todos os dias em frente de casa, na Rua Pernambuco, ao final do entardecer. De longe eu via sua roupa lucilando com a incidência vulcânica do sol. Ele corria de um lado para o outro com um par de galochas. Sorria, gesticulava, apontava, ziguezagueava e saltava sobre os meios-fios, arbustos ou qualquer tipo de obstáculo que aparecesse à sua frente.

Chico não tinha mais do que 30 anos, a pele bronzeada, cabelos castanhos ondulados e afogueados na altura da orelha. Seus olhos miúdos e escuros pareciam marias-pretinhas. Sempre que se aproximava de mim, retirava o seu surrado par de luvas, o colocava debaixo do braço esquerdo, segurava minha mão direita com as suas duas mãos, sorria efusivamente e dizia: “Boa tarde, David! Muito bom te ver de novo. O que temos pra hoje, meu amigo?”

Eu retribuía a atenção com um sorriso frugal que destacava boa parte dos dentes, inclusive uma janelinha alinhada ao meu nariz. “Oi, Chico! Tá aqui ó”, respondia com parcimônia. Ele abria um ou dois sacos grandes acinzentados sobre a lixeira, fazia algumas micagens ou trejeitos cômicos e comentava: “Ora, ora, David, quanta coisa boa você comeu esta semana, hein? Continue nesse ritmo e vai se tornar um rapaz mais forte que eu!”

Ele se despedia, piscava e partia segurando os sacos e correndo de costas. A menos de um metro do caminhão, girava o corpo, arremessava cuidadosamente os sacos de lixo e saltava, se apoiando em uma barra lateral esquerda. Acenava pra mim e desaparecia junto com o veículo na curva da Rua Amazonas.

Meu encontro com Chico era no mínimo semanal. De vez em quando, brincando com meus amigos em algum lugar distante de casa, logo que a lua despontava com o poente, eu lembrava do meu compromisso voluntário. “Vixi, o Chico! Ele precisa de mim pra entregar o lixo!” Então eu corria para casa desviando das pessoas nas calçadas, saltando sobre buracos e me esquivando de cães que se sentiam provocados pela minha debandada.

Foi assim que um dia encontrei o caminhão de lixo subindo a Rua Pernambuco, a duas quadras de casa. Quando me viu, Chico pediu que o motorista parasse. Esfregou o punho da mão direita na testa, me chamou e saltou. Como era alto, arqueou ligeiramente as pernas para ficar mais próximo de mim. Frente a frente com ele, me senti um pouco pejoso pela situação. Vendo meu sorriso amarelo e meus olhos retraídos, Chico me deu um tapinha no ombro e falou: “Uau, David! Que demais! Não vai me dizer que você correu tudo isso pra me alcançar? Cara, você é um atleta! O que acha de um passeio rápido de caminhão? Será que seus pais vão brigar?”

A verdade é que eu não tinha a mínima ideia do que eles achariam, mas respondi instantaneamente com a cabeça que não enquanto sentia um comichão de alegria percorrer todo o meu corpo. Meus dedos miúdos se entrelaçavam dentro da botinha camuflada do Rambo. Era impossível desfazer o sorriso. Fiquei tão emocionado e banzado que percebi o maxilar acalorado. Chico e seus dois companheiros de labuta se divertiam com a minha reação. Notei pelo riso fácil e espalhafatoso. Em poucos segundos, me vi sobre uma enorme barra de apoio frisada com uma largura que garantia segurança para pés até quatro vezes maiores que os meus.

Chico pediu que eu apoiasse as mãos miúdas com firmeza numa barra lateral tão longa e maciça para a minha pequenez que era impossível fazer as pontas dos meus dedos encostarem na minha palma. Ao mesmo tempo, ele me segurava com uma das mãos que cobriam minhas costas quase que completamente. Eu me sentia imponente sobre a traseira do caminhão de lixo. Era como se aquela máquina de ferro fosse uma extensão da força que eu sonhara em ter.

Lembrei do Bumblebee da primeira geração de Transformers lançada na década de 1980, meu robozinho já velho que assim como o caminhão também era amarelo. “Sou o Bumbleblee! Sou o Bumblebee! Sou o Bumblebee!”, gritava euforicamente dentro da minha própria consciência. Queria mesmo era ficar pulando, só que não podia correr riscos nem preocupar ninguém. Naqueles menos de 200 metros até chegar em casa, nem o mau cheiro exalado por alimentos orgânicos podres, principalmente restos de ovos, legumes e tubérculos, me incomodou. Tudo parecia portentoso demais para que eu me preocupasse com algo tão liliputiano.

Em frente de casa, Chico me colocou no chão, pegou um saco grande sobre a lixeira, sorriu e seguiu sua jornada, acenando com uma luva puída e toldada. Ocasionalmente, Chico me trazia presentes. Não esqueço de um caminhãozinho de lixo e um tratorzinho que me deu, meus brinquedos preferidos ao longo de alguns meses. Minha mãe retribuía seu carinho com alimentos e roupas. Também destinava algo aos colegas de trabalho dele.

Um dia me vesti de Change Dragon, do Esquadrão Relâmpago Changeman, uma das minhas séries preferidas de tokusatsu, e sentei no meio-fio segurando a change fogo, minha pistola de plástico. Ao me ver, a feição de Chico mudou. Espavorido, se aproximou e colocou as palmas das mãos para a frente, na tentativa de se proteger. Se escondeu ao lado do caminhão duas vezes, mudando de posição, arqueando o corpo e abugalhando os olhos.

“Agora vou me aproximar… Por favor, não atire, David! Aqui é seu amigo Chico. Olhe, tenho balas 7 Belo. Vamos fazer uma troca. Você fica com as balas e eu com a minha vida, ok? Não vamos nos precipitar. Não sou nenhum Gyodai da vida”, argumentou, já de joelhos, numa interpretação inesquecível. Quando comecei a gargalhar, a direcionar a cabeça ao céu azul e límpido e encostar as duas mãos na barriga, deitando as costas na calçada, Chico riu junto e me entregou algumas balas.

Em seguida, sugeriu que eu jamais aguardasse o inimigo sentado, porque poderia ser surpreendido. “Tem que se manter em estado de vigília, meu amigão!”, recomendou. Com o tempo, meu sonho de curto prazo passou a ser galochas como as do Chico. Insisti tanto que minha mãe me deu um par. Eu as calçava e me sentia indômito ao me ver no espelho – mais imponente que a turma do Capitão Planeta. No meu universo diminuto, uma galocha não era apenas uma galocha. Era a projeção de um mundo de fantasias, onde eu me via mais alto, mais forte, mais matreiro, mais inteligente e mais rápido. Nunca que eu a consideraria somente como um calçado de borracha. Seria uma blasfêmia.

A primeira vez que me viu de galochas, Chico assobiou para os dois colegas em cima do caminhão, apontou pra mim e gritou: “Olhem, pessoal! O David agora faz parte do nosso clube. Tá preparado pra ser um herói na selva urbana de Paranavaí!” A frase me marcou tanto que eu não queria mais tirar as galochas dos pés. Pedia até para ir com elas à Casa Moreira, na Rua Manoel Ribas, fazer compras com minha mãe. Ela deixava, claro que não sempre, e eu acreditava, com o respaldo do meu candor, que mostrava ao mundo que eu era um grande aventureiro. Afinal, no meu ideário meninil, eu fazia parte da casta dos heróis que usavam a força para livrar a cidade dos monstros que eu idealizava a partir do lixo.

Porém, num dia de 1991, eu estava sentado em uma mureta. O caminhão passou e Chico não saltou. Ele não estava lá. O vácuo da sua ausência parecia alargado por uma corrente de ar que agitava o vazio de um espaço inabitado na traseira do caminhão amarelo. Passou mais um mês e Chico não apareceu. Então comecei a aceitar o fato de que talvez eu nunca mais o visse.

Numa manhã de outono, eu estava na cozinha comendo um pão francês quando ouvi alguém batendo palmas. Caminhei até o portão e levei um susto ao ver Chico mais magro e sem o seu tradicional uniforme de herói urbano. “Bom dia, David. Desculpe interromper o seu café da manhã. Um colega me falou que você ainda me espera em frente à sua casa. Perdão por não ter avisado antes, meu querido amigo. Me colocaram para trabalhar longe da sua casa, em outra cidade. Mas veja que legal! Agora tenho meu próprio caminhão e posso ajudar muito mais pessoas”, justificou.

Fiquei feliz em vê-lo e o abracei. Seus olhos, assim como os meus, ficaram úmidos e lustrosos como bolas de bilhar. Antes de nos despedirmos, ainda disse: “David, deixa eu te contar uma coisa talvez interessante. Sabe por que recolhi lixo por tanto tempo? Porque era o que meu pai fazia e o pai dele também. O lixo nunca foi ou vai ser apenas lixo. Nele encontro sonhos, desejos, desilusões, vazios e esperanças de tanta gente. Em cada saco há pedacinhos de vida, amores, escolhas, preocupações, bem-querença, alegria, tristeza e insegurança. No lixo vejo a fragilidade e a força dos seres. É a minha escola, meu amigo. Nunca deixe de ver coração naquilo que nos toma pela razão, porque uma vida que não irradia emoção é o gatilho da solidão.”

Depois daquele dia, nunca mais vi Chico. Fiquei sabendo meses depois que ele se mudou para Curitiba. Motivado por boa intenção, mentiu sobre a história do caminhão. Segundo a empresa, foi demitido porque suas brincadeiras atrasavam o serviço, custavam tempo. A verdade é que Chico perdeu o emprego porque era humano, demasiado humano.

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