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Como o vegetarianismo entrou na vida de Franz Kafka

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“Agora posso olhar para vocês em paz. Eu não como mais vocês”, disse aos peixes no aquário

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Franz Kafka teve de enfrentar o preconceito quando se tornou vegetariano (Foto: Reprodução)

Um dos escritores mais influentes do século 20, o tcheco Franz Kafka, famoso por clássicos intrapessoais como A Metamorfose, O Processo e Um Artista da Fome, é um exemplo de ser humano que, contrariando todas as expectativas, se tornou vegetariano ainda na juventude. Seu pai, Hermann Kafka, vinha de uma linhagem de açougueiros que comercializavam carnes kosher. E foi justamente por causa dessa herança cultural que em 1910 ele ficou encolerizado quando soube que o filho não se alimentaria mais de animais.

Um dia, depois de se tornar vegetariano estrito, Kafka passeava em Berlim acompanhado da namorada do seu melhor amigo – Max Brod. Ele observou alguns peixes em um aquário e disse: “Agora posso olhar para vocês em paz. Eu não como mais vocês.” Declarações como essa podem ser encontradas na biografia que Brod escreveu sobre o amigo e publicou em 1937, baseando-se em cartas e diários.

O escritor tcheco comparava os vegetarianos aos primeiros cristãos, destacando que eles também eram perseguidos e insultados na sala de jantar. Apesar dos infortúnios, ele anotou em seu diário em dezembro de 1912 que não poderia estar mais satisfeito com a sua digestão depois de um jantar vegetariano. Tudo indica que Kafka conheceu o vegetarianismo por meio do seu tio e médico Siegfried Löwy.

Inspirado no livro Mein System, do atleta vegetariano dinamarquês Jorge Peder Müller, que ministrou uma palestra em Praga em 1906, ele adotou outros hábitos saudáveis, como a prática de atividades físicas. Também aprendeu a mastigar corretamente, seguindo os ensinamentos do especialista em alimentação saudável Horace Fletcher, conhecido como “O Grande Mastigador”.

De acordo com Jan Stastny, que ministrou a palestra “Franz Kafka – Vegetarian Activist” no Congresso da União Vegetariana Internacional em Dresden, na Alemanha, em 2008, quem também ajudou Kafka na transição foi o alemão Moriz Schnitzer, da União Vegetariana Internacional, que recomendou que ele seguisse uma dieta vegetariana, tomasse ar fresco, dormisse com a janela aberta e trabalhasse com jardinagem nas horas vagas. Kafka seguiu todas as sugestões. Sempre que terminava o seu expediente como advogado, ele atuava como ajudante de jardineiro, e sem cobrar nada em troca.

Apesar de não existir nenhuma prova de que ele era um membro da União Vegetariana Internacional, o escritor aparece na edição de junho de 1911 da revista alemã Reformblatt como um doador de uma campanha antivivissecção. “Seis meses depois, o vegetarianismo, aliado aos exercícios físicos, não apenas curou o meu sistema digestivo como permitiu que eu não tivesse mais vergonha do meu corpo ao frequentar a piscina pública”, escreveu em seu diário.

Na comemoração de ano-novo de 1911, ele jantou schwarzwurzeln, um tipo de raiz comestível conhecida no Brasil como escorcioneira, com espinafre e 250 ml de suco de frutas. Era hábito comum de Kafka falar sobre a sua alimentação cotidiana em cartas enviadas a amigos e familiares. “Estou comendo repolho recheado, sopa de frutas e bebendo suco de oxicoco”, contou à sua irmã Elli em 1911. Sua empolgação aumentava a cada dia. Em 1912, ele revelou em seu diário que gostaria de fundar uma organização de cura pela natureza.

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A maior resistência ao novo estilo de vida de Kafka veio do seu pai (Foto: Reprodução)

Quando entrava de férias ou precisava se internar para tratamento médico em algum sanatório, Kafka sempre escolhia lugares com opções para vegetarianos estritos. E por isso teve muitos conflitos com a família, principalmente com o pai. O novo estilo de vida incomodava tanto Hermann que por meses ele se negou a olhar para o filho durante o jantar.

Sobre o vegetarianismo, não há dúvidas de que a escolha do jovem Franz foi motivada pelo seu frágil estado de saúde. Mesmo assim, Kafka daria grandes demonstrações de que a sua ética também tinha peso sobre a sua decisão. A maior prova disso é que frequentemente ele escrevia sobre a natureza e o estado de consciência dos animais – cães, chacais, ratos, cavalos, bois e toupeiras, entre outros.

Um exemplo é o conto Ein Bericht für eine Akademie (Um Relatório para a Academia), de 1917, que conta a história de um macaco que aprende a se comportar como um ser humano para fugir do cativeiro. Nesse ínterim, o animal escreve para a academia sobre a sua transformação.

“Quando em Hamburgo fui entregue ao primeiro adestrador, reconheci logo as duas possibilidades que me estavam abertas: jardim zoológico ou teatro de variedades. Não hesitei. Disse a mim mesmo: empregue toda a energia para ir ao teatro de variedades; essa é a saída. O jardim zoológico é apenas uma nova jaula, se você for para ele, estará perdido”, narra em Ein Bericht für eine Akademie.

Entre as mais surpreendentes experiências vividas por Kafka está uma registrada em outubro de 1918, quando ele contraiu a nefasta gripe espanhola, epidemia que dizimou aproximadamente 100 milhões de pessoas no mundo todo. Enquanto jovens saudáveis de sua idade morriam às centenas, Kafka conseguiu se recuperar rapidamente e atribuiu a vitória ao seu estilo de vida vegetariano.

“O açougueiro pensou que podia ao menos se poupar do esforço do abate, e uma manhã trouxe um boi vivo. Isso não deve se repetir. Fiquei uma hora estendido no fundo da oficina com todas as roupas, cobertas e almofadas empilhadas em cima de mim, tudo isso para não ouvir os mugidos do boi que os nômades atacavam de todos os lados para arrancar com os dentes pedaços de sua carne quente. Quando me atrevi a sair, já fazia silêncio há muito tempo. Como bêbados em tomo de um barril de vinho, eles estavam deitados e mortos de cansaço ao redor dos restos do boi”, registrou no conto Ein altes Blatt (Uma Folha Antiga).

Outra característica intrigante de Kafka é que em muitas de suas histórias seus personagens comem carne crua e ensanguentada, talvez um recurso usado pelo autor para avultar a barbárie que envolve o consumo de carne.  Idealista, o escritor tcheco confidenciou em um de seus diários o desejo de se mudar para a então Palestina e abrir com sua namorada Dora um restaurante vegetariano em Tel Aviv. “Eu trabalharia como garçom. Gostaria de servir as pessoas”, informou.

Perto do fim da vida, e sofrendo em decorrência de uma tuberculose laríngea que o acompanhava desde 1917, ele foi pressionado a voltar a consumir carne. Desesperado e sentindo-se impotente, fez um acordo com a irmã Ottla, pedindo que ela se tornasse vegetariana para compensar sua iminente falha jamais concretizada. “Um de nós precisa continuar salvando os animais”, argumentou ele. A irmã manteve a promessa por toda a sua vida, até que foi executada em um campo de concentração nazista em 1943.

Saiba Mais

Frank Kafka nasceu em Praga em 3 de julho de 1883 e faleceu em 3 de junho de 1924.

Seu pai também possuía uma loja de presentes para homens e mulheres em Praga.

Referências

Brod, Max. Franz Kafka, eine Biographie. Berlin S. Fischer Verlag (1937).

Kafka, Franz. Ein Landarzt – Ein Bericht für eine Akademie/Ein altes Blatt. Stroemfeld Verlag. (1920).

União Vegetariana Internacional. Stastny, Jan. Franz Kafka – Vegetarian Activist (2008).

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A ansiedade social de Kafka

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Samsa é a gradação surrealista do escritor em estado patológico, como uma figuração quimérica

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1906 – Kafka sofria de ansiedade social (Foto: Reprodução)

O primeiro e mais pungente indício de que o escritor tcheco Franz Kafka sofria de ansiedade social está na sua obra mais famosa – “A Metamorfose”, de 1915. A transformação de Gregor Samsa revela não apenas o medo, aceitação seguida de ostracismo e o rompante de cólera do protagonista diante de um mundo que pouco representa além da compressão da sua própria existência, mas também as inúmeras facetas das afecções e doenças então inominadas que atingiam Kafka.

Samsa é a gradação surrealista do escritor em estado patológico, como a sua própria figuração quimérica e exemplarmente estruturada a partir de seus problemas registrados em cartas e diários. “Sou incapaz de viver com as pessoas, de falar. Vivo imerso em mim. Me sinto apático, sem juízo e com medo. Não tenho nada a dizer a ninguém. Nunca!”, escreveu em uma das cartas enviadas à tradutora tcheca Milena Jesenská, com quem se correspondeu entre os anos de 1920 e 1923, estabelecendo um grande laço de confiança.

Estar sozinho era tão essencial para Kafka que ele via nisso uma genuína forma de poder, algo que dissolvia o seu interior e o preparava para trazer à tona o que ele resguardava de mais profundo em seu âmago. “Quando estou voluntariamente só, há uma ligeira ordenação em meu interior e isso faz com que eu não sinta falta de nada”, declarou.

Introvertido, as interações sociais faziam com que o autor se sentisse drenado. Somente a completa solitude garantia a recuperação de sua energia e serenidade. “Escrevo diferente de como falo e falo diferente de como penso”, revelou. Kafka experimentou beber para lidar com a ansiedade social, um método comum incentivado por seus colegas, mas que não o ajudou em nada. “Não posso usar drogas para enganar a minha solidão, pois ela é tudo que tenho. E quando os efeitos das drogas e do álcool se dissiparem, será tudo que meus colegas terão também”, refletiu.

Ele reconhecia o condão da sua eloquência com a escrita, porém sempre se deparou com uma barreira que o impedia de se expressar da mesma maneira quando conversava com alguém. “Sou muito tímido para dizer o que realmente penso e acabo me sentindo mal por isso”, confidenciou. Franz Kafka lamentava o desconforto por não conseguir se comunicar com outras pessoas da mesma forma que ele fazia com os parentes mais próximos.

“Não fico ansioso com minha irmã mais nova e eu gostaria de ser assim com todos. Destemido e poderoso, é como me sinto quando escrevo. É como se minha ansiedade não existisse. A ideia de alguém ler o que escrevo também nunca me incomodou, a não ser que peçam que eu fale sobre o que escrevi”, registrou em outra carta.

“Sou incapaz de viver com as pessoas, de falar. Vivo completamente imerso em mim"

“Sou incapaz de viver com as pessoas, de falar. Vivo completamente imerso em mim” (Foto: Reprodução)

Em uma de suas queixas, o escritor admitiu que nunca teve um relacionamento sério e que a ideia de ter filhos lhe parecia muito distante. “Quando alguém fala comigo, não consigo evitar de pensar que posso ser atacado, então meu instinto é fugir”, desabafou, lembrando-se de um episódio em que um dia à meia-noite um conhecido se aproximou dele em frente a uma cafeteria quase deserta e o convidou para uma conversa. Assustado, Kafka declinou o pedido e foi embora às pressas.

Outros convites se repetiram e ele sempre suspeitava que se aproximavam dele por piedade. Foram poucas as ocasiões em que o escritor concordou em sentar-se à mesa com pessoas que não faziam parte de sua família. “Tudo que não é literatura me aborrece e eu odeio isso. Me falta toda a aptidão para a vida familiar, exceto, na melhor das hipóteses, como observador. Quando recebemos visitas em casa me vejo prestes a me tornar alvo de algum tipo de malícia”, relatou.

Milena Jesenská: "Ele era tímido, gentil e amável, mas escreveu livros muito dolorosos" (Foto: Reprodução)

Milena Jesenská: “Ele era tímido, gentil e amável, mas escreveu livros muito dolorosos” (Foto: Reprodução)

Kafka se julgava como alguém sem vida social, que passava as noites na pequena varanda de casa, observando o rio. Não se considerava uma boa pessoa. “Eu pouco me preocupo com os outros. Sou uma pessoa ridícula. Se você estiver um pouco apaixonada por mim, só posso crer que seja comiseração. E de minha parte, só posso sentir medo”, segredou em carta à jovem Hedwig W., escrita em Praga em 29 de agosto de 1907. Para ela o escritor produziu o poema “Anos Atrás”.

Também afirmou que sua vida se pautava na permanente tentativa de comunicar o incomunicável, explicar o inexplicável. “Estou sempre escrevendo sobre algo que habita meus ossos e que só pode ser experimentado através deles. Basicamente sinto o medo se espalhando por mim, um temor paralisante de pronunciar uma palavra. E não somente pavor, mas também um anseio por algo maior do que tudo o que representa o medo”, confessou em carta a Milena Jesenská.

Como Milena definiu Franz Kafka

“Ele era tímido, gentil e amável, mas escreveu livros muito dolorosos. Viu um mundo cheio de demônios invisíveis que rasgam e destroem pessoas indefesas. Ele era lúcido e sábio demais para a vida. Chegou a um ponto que dominado pela fraqueza não conseguiu mais lutar. Era uma fraqueza dos nobres, de quem teme o mal entendido, a indelicadeza e as mentiras intelectuais. Era de uma casta de pessoas com sensibilidade que poucos são capazes de entender. Um solitário com um olhar profético que através de uma olhadela é capaz de perceber coisas que outros jamais notariam. Ele próprio representava um mundo profundo e extraordinário.”

Nascida em 10 de agosto de 1896, em Praga, então território do Império Austro-Húngaro, Milena foi a principal tradutora de Kafka – da língua alemã para a tcheca.

Saiba Mais

Nascido em Praga em 3 de julho de 1883, Franz Kafka faleceu aos 40 anos em decorrência de uma tuberculose laríngea que o impedia de se alimentar. Curiosamente, quando faleceu, Gregor Samsa, seu personagem mais famoso, estava bem magro porque há muito tempo não se alimentava. O escritor que pouco se importava com a fama só ficou conhecido após sua morte.

Referências

Kafka, Franz. Letters to Milena, Schocken Books, 1952.

Kafka, Franz. Letters to Family, Friends and Editors, Schocken Books, 1959.

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