David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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As crianças do Cine Ouro Branco

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Vi as lágrimas escorrendo pelo seu rosto, molhando sua camisa xadrez abotoada até na altura do pescoço

Cine Ouro Branco marcou gerações em Paranavaí (Acervo: Osvaldo Del Grossi)

Não faço parte de uma geração que tem as lembranças mais sólidas e claras do Cine Ouro Branco, um dos grandes pontos de entretenimento da população de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, até 1993. Quando o cinema foi fechado, eu ainda era criança. Apesar disso, frequentei o Ouro Branco por alguns anos da minha infância e tenho boas recordações daquele tempo.

A minha primeira vez no cinema foi numa sessão de “Os Heróis Trapalhões – Uma Aventura na Selva”, num final de semana em 1988. Até então, a maior tela que eu tinha visto era da TV de 21 polegadas, coberta por uma caixa de madeira envernizada, que ficava na sala de casa. Mesmo assim eu era feliz assistindo desenhos animados nela.

Logo que eu, meu irmão e minha mãe chegamos em frente ao Cine Ouro Branco, na Rua Manoel Ribas, no centro de Paranavaí, prestei atenção na grande movimentação de pessoas na fila da bilheteria. Miúdo, eu observava tudo na proporcionalidade da minha estatura. Via mais sapatos, pernas e cintos do que rostos. A não ser, claro, quando as pessoas eram tão pequenas quanto eu.

Antes de entrarmos, caminhei vagarosamente e de costas pela calçada, tentando observar a altura do prédio do Cine Ouro Branco, mas era impossível para mim. Então pensei que aquele fosse o maior cinema do mundo. Quem sabe, atravessasse os céus e tivesse contato direto com o paraíso de que falavam na escolinha.

O gentil pipoqueiro sorria pra mim, percebendo através dos meus olhos grandes, cilíndricos e pretos que aquela era a minha estreia no cinema. “É sua primeira vez? Você vai gostar e vai querer voltar mais vezes”, disse enquanto ajeitava uma pequena quantidade de pipoca doce que tentava se misturar com a salgada.

Quentinha, a pipoca pronta para consumo estalava dentro do carrinho. Por um momento, cheguei a crer, na minha ilusão meninil, que talvez a pipoca tivesse vida própria e também quisesse entrar no cinema para assistir Os Trapalhões. Ao meu lado, prevalecia um aroma adocicado que pacificava as crianças mais buliçosas – sim, era um eficaz calmante açucarado e rubro.

Trazia recordações dos airosos ipês-vermelhos que eu via todos os dias perto de casa, quando apontava com o dedo e gritava: “Olha lá um pé de pipoca-doce!” Do outro lado do carrinho de pipoca, a olência mudava, assim como o público. Os adultos, principalmente os homens, se achegavam para comprar: “Me vê da salgada, por favor!”

Habilidoso, o pipoqueiro sabia como ninguém quantas pazinhas de alumínio eram necessárias para encher um saquinho. Eu assistia suas mãos sulcadas lucilando diante da pequena lâmpada já amarelecida que iluminava e dourava seu rosto crispado. Era desse jeito, sempre que ele se inclinava ou se aprumava. Aquele era seu espetáculo e na entrada do Cine Ouro Branco ninguém era mais importante do que o pipoqueiro.

Naquele dia, antes de entrarmos no cinema, cinco engraxates, com idade entre 6 e 14 anos, se aproximaram, encostaram numa parede ao lado do Cine Ouro Branco e, como os jovens farroupilhas do filme Los Olvidados, de Buñuel, começaram a fumar, observando famílias descendo dos automóveis e atravessando a calçada.

“Se tivesse pai ou mãe não tava nessa vida, irmão! Ser pobre e sozinho não é fácil não. Olha quanto luxo dessa molecada”, comentou um deles com os quatro amigos que o acompanhavam. Sem falar nada, apenas balançaram a cabeça em concordância, esmagando bitucas a pés pequenos.

Sujo, com unhas encardidas e cheiro nauseante de cigarro barato, um engraxate de não mais que 12 anos se aproximou de uma turma de crianças. Como alguém indeciso sobre entrar ou sair, cruzou os braços e ergueu o rosto enquanto uma das luzes da entrada realçava sua dúbia expressão de satisfação.

“Pessoal, escuta aí! Rapidinho! Esse filme dos Trapalhões é bom demais. Só tem uma coisa ruim. O Mussum e o Zacarias morrem no final. Valeu! Tchau!”, gritou e correu rindo, com os cabelos ondulados e escuros esvoaçando. Naquele momento, ele se tornou um antagonista digno do vilão Cicatriz interpretado por Carlos Koppa no filme dos Trapalhões.

O garoto arrastou os chinelos surrados e, acompanhado de seus comparsas, desceu satisfeito em direção à Rua Pará. Algumas crianças não se importaram com a revelação, mas outras ficaram tão irritadas que queriam que seus pais chamassem a polícia ou fizessem algo a respeito. Por bem, ninguém os perseguiu.

Dentro do Cine Ouro Branco, fiquei boquiaberto com as poltronas a perder de vista. “Aqui cabe mil e quinhentas pessoas. Olhe lá em cima, é como numa ópera”, informou minha mãe, observando a minha reação e a do meu irmão Douglas. Sem pressa, giramos ao redor da sala mastodôntica, tentando registrar os detalhes.

Por sorte, havia lugares vagos nas primeiras fileiras. Então caminhamos até lá, atravessando corredores e ouvindo sons de espectadores comendo pipoca, conversando, fazendo troça e se abraçando. Perto de nós, o lanterninha acompanhava tudo com sua aura indefectível de vagalume. Se sentia o líder de um coliseu onde nada aconteceria sem sua autorização, ainda mais quando as luzes se apagavam.

Assim que me sentei, observei um garoto com roupas remendadas sentado ao meu lado, acompanhado de sua mãe. Seu nome era Juscelino e ele era um ou dois anos mais velho do que eu. Também era a primeira vez dele no cinema. Percebi sua ansiedade porque seus pés miúdos não paravam de balouçar, assim como os meus.

Suas mãos trêmulas suavam tanto que toda hora ele as enxugava nas laterais da calça xadrez de barras curtas. Juscelino falava comigo mantendo o rosto em direção à desmesurada tela de projeção. Achei que era empolgação por causa do filme, até que notei algo de diferente em seus olhos, uma clareza cristalina como nunca vi antes. Com naturalidade, a mãe revelou que o filho nasceu cego.

Juscelino não enxergava nada. Ainda assim sua empolgação no Cine Ouro Branco superava até a minha. Os sons e olores que chegavam até ele eram como presentes imateriais, memoriais. Com uma rara acuidade auditiva e olfativa, Juscelino percebia até o que as pessoas faziam ou comiam nas poltronas mais distantes – e comentava tudo comigo.

Filho de um casal de lavradores de Alto Paraná, ele chegou a Paranavaí de ônibus pela manhã e ficou horas esperando a bilheteria abrir. Seu pai não prestigiou o grande acontecimento porque o dinheiro economizado a duras penas só cobria as despesas da mulher e do filho. “Vai começar, mãe!”, disse o garotinho segundos antes do projetor iniciar a rodagem do filme, como se tivesse um dom para presságios.

Do início ao fim, Juscelino ficou em completo silêncio, tentando absorver o máximo possível de informações sonoras. Ocasionalmente, se movia sobre a poltrona sem fazer barulho, preocupado em incomodar. Eu, ele e meu irmão estávamos unidos por uma experiência que jamais se repetiria. As nossas maiores descobertas eram visuais e as de Juscelino auditivas. Talvez até mais ricas, já que ele se colocava na condição de criador para dar vazão à criatividade de tudo que ouvia.

Ainda no escuro, vi as lágrimas escorrendo pelo seu rosto, molhando sua camisa xadrez abotoada até na altura do pescoço. Ao final, com o retorno das luzes, perguntei a ele como era a assistir a um filme no cinema sem poder ver. Minha mãe me repreendeu, mas a de Juscelino não se importou com a pergunta.

“Não sei explicar direito, mas eu vejo sim, só não vejo com os olhos. Vejo tudo que carrego pra dentro de mim”, justificou antes de segurar a mão de sua mãe e caminhar a passos curtos em direção à saída, onde a iluminação artificial contrastava e se harmonizava com a luz anilada e complacente da venusta Lua recém-chegada.

Na esquina, no cruzamento entre a Rua Pará e a Manoel Ribas, os cinco engraxates, crianças vivendo como adultos, tamborilavam suas caixas, sentados no meio-fio, imersos em sorrisos postiços e olhares acabrunhados, tentando existir para um mundo que pouco reconhecia suas verdadeiras intenções.

Retornando para casa a pé, atravessamos a rua. Quando passamos por eles, o mesmo garoto que causou o alvoroço na entrada do cinema me puxou pelo braço e, com um olhar supliciado, perguntou: “Ei, amigo. Você pode contar pra gente a história do filme que tu viu lá no cinema?”

Curiosidade

Fundado em 27 de janeiro de 1961 pela Família Del Grossi, o Cine Ouro Branco foi uma das mais importantes fontes de entretenimento da população de Paranavaí até 1993.

A indiferença e os artistas de rua

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Pensei também em como eles resistem na contramão deste mundo cada vez mais consumista em que vivemos

Pensei também em como eles resistem na contramão deste mundo cada vez mais consumista em que vivemos

Eu estava voltando pela Avenida Heitor Alencar Furtado quando parei em um sinaleiro. À minha frente, um artista de rua fazia malabarismo com facões. Fiquei imaginando quanto tempo ele deve ter levado pra chegar àquele nível.

Pensei também em como ele resiste na contramão deste mundo cada vez mais consumista em que vivemos. Não tenho dúvida alguma de que ele não é ambicioso ou ganancioso. E são pessoas com esse tipo de nobreza que vivem alheios à inveja. Do contrário, não estaria lá, entretendo um público ocasional que muitas vezes pouco se importa com o que ele está fazendo.

Notei pessoas mantendo os vidros fechados e desviando os olhos pouco antes do sinal ficar verde. Achei a cena triste, mas de um contraste que realça a nobreza de quem está sempre acima das mesquinharias. O rapaz fazia reverências e sorria efusivamente até para quem o ignorava ou acenava dizendo que não tinha dinheiro algum, mesmo que esses guiassem veículos que custam mais de R$ 100 mil.

Mais do que uma Era de Consumismo, me deparo com situações no dia a dia que reafirmam a existência de uma Era da Mesquinharia, um sentimento que fui incentivado desde cedo a não ter. Cada vez que você vira as costas ou ignora alguém, você reforça uma tentativa de marginalizar alguém. Se você acredita que não tem nada a oferecer, tudo bem, desde que assim sua consciência o reconheça. Mas triste é quando você sabe que tem, mas prefere não oferecer nada baseando-se na descrença generalizada a respeito do ser humano.

Anteontem à tarde foi diferente. No sinaleiro da Rua Manoel Ribas, em frente ao Posto Minas, um rapaz fazendo malabarismos com pinos ganhou um dinheirinho de todos os motoristas. Achei aquilo bonito e raro porque percebi que existia harmonia naquela ação individual que ganhou força coletiva iniciada nas primeiras fileiras. Havia beleza e uniformidade. E a fisionomia do rapaz realmente mostrou que ele se sentiu recompensado.

Me recordei de um costume que o meu pai tinha quando estava fazendo quimioterapia no Hospital Beneficência Portuguesa em 1997. Sempre que ia a São Paulo, ele separava um pouco de dinheiro. Um dia minha mãe perguntou qual era a finalidade e meu pai respondeu: “É que até chegar ao hospital não quero ter que dizer não a nenhum pedinte.”

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“Nunca vou cortar com ela não!”

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Kengo Toyokawa fala sobre a estranheza dos homens de Paranavaí ao ver uma mulher barbeira em 1949

Barbearia funcionava junto ao Bar São Paulo (Acervo: Família Toyokawa)

Barbearia funcionava junto ao Bar São Paulo (Acervo: Família Toyokawa)

Em 1949, na barrenta Rua Manoel Ribas, no Centro de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, por onde trafegavam muitas carroças, não tinha quem não olhasse uma senhora no interior de um salão de duas portas, contíguo ao Bar São Paulo, aparando barba ou cortando os cabelos de algum cliente. “Mas, rapaz, mulher cortando cabelo de homem? Nunca vou cortar com ela não!”, diziam copiosamente os mais conservadores.

A cena rendia muita conversa. Um curioso chamava o outro e quando menos se esperava havia muita gente em frente ao salão discutindo sobre o assunto. “Essa mulher era minha avó, a dona da barbearia que se tornou a mais famosa da região. Naqueles primeiros anos, muita gente não aceitava e agia com preconceito”, diz o comerciante Kengo Toyokawa, proprietário do famoso bar homônimo.

Outros não se importavam, apenas ignoravam a conversa na entrada enquanto esperavam a vez de receber uma toalhinha confortável, quente e cheirosa que amaciava a pele do rosto. O corte de barba ou cabelo era sempre metódico e como diferencial privilegiava os detalhes. As técnicas seguiam os preceitos da tradição japonesa.

Mas a maioria da população masculina de Paranavaí, no Noroeste Paranaense, acostumada a ser freguês de homens, estranhava os cuidados daquela mulher habilidosa de mãos leves e finas que além disso era uma boa administradora. “No começo foi esquisito, mas depois me acostumei. Quando saía de lá alguém sempre perguntava como foi e se valia a pena. Eu explicava que ela comandava o salão. Aí que o povo estranhava ainda mais: ‘Ué, será, mas a muié memo?’”, lembra o pioneiro João Mariano sem velar o sorriso.

A barbearia da avó de Kengo surpreendia também pela rapidez no atendimento. A equipe era formada por cinco profissionais. “Você pode me apontar uma barbearia hoje que tenha cinco barbeiros? É raridade!”, destaca o comerciante, acrescentando que o interesse por trabalhar no comércio surgiu com os avós.

Aos poucos, a fama da barbearia aumentou e em finais de semana muitos trabalhadores do campo, desde colonos até peões que atuavam na mata, vinham a Paranavaí de charrete. Percorriam quilômetros para cortar cabelo e barba no salão ao lado do popular Bar São Paulo que tinha três portas e também pertencia aos Toyokawa. “A boa fama foi longe”, resume Kengo Toyokawa.

Antes de se mudar para Paranavaí, a família trabalhou um bom tempo nas lavouras de café, pelo menos até conseguir guardar um pouco de dinheiro. “Antes meus avós e meus pais moraram em Guaritá [atual Nova Aliança do Ivaí]. O mais curioso é que depois decidiram investir no comércio sem saber falar português”, relata Toyokawa.

A princípio, foi bem complicado, mas a persistência e a vontade de garantir um bom futuro fez os avós de Kengo superarem até mesmo a barreira do idioma. “No começo, eles negociavam tudo por gestos, uma comunicação universal. Depois aprenderam a falar bom dia e outras frases básicas. As coisas foram se ajeitando”, enfatiza.

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No tempo dos engraxates

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O preço médio para engraxar um par de sapatos era um cruzeiro

Antonio de Menezes: “Não se trabalhava pela produtividade ou dinheiro, mas pelo aprendizado” (Foto: Vincenzo Pastore)

Já havia muitas crianças em Paranavaí, no Noroeste Paranaense, no começo dos anos 1950. Para estimulá-las a ocuparem o tempo livre quando não estavam na escola, os pais autorizavam que os filhos exercessem alguma atividade remunerada. “Não se trabalhava pela produtividade ou dinheiro, mas pelo aprendizado”, comenta o artista plástico Antonio de Menezes Barbosa que em 1949, aos cinco anos, aprendeu a diferenciar diversos tipos de cultura, pouco tempo depois de ganhar uma enxada do pai Augusto de Mendonça Barbosa.

À época, os mais jovens que residiam na área urbana de Paranavaí descobriram na engraxataria uma atividade regular. Dezenas de garotos percorriam as vias mais movimentadas da cidade, como a Avenida Paraná e ruas Minas Gerais, Marechal Cândido Rondon, Manoel Ribas e Getúlio Vargas, sem se intimidar com o “areião”, para ganhar uns “trocados” engraxando calçados. As principais referências eram as áreas do antigo Terminal Rodoviário Urbano, Prefeitura, Bar Gruta da Onça e Hotel Elite.

Artista plástico era engraxate em Paranavaí em 1951 (Foto: David Arioch)

O preço médio para engraxar um par de sapatos era um cruzeiro, dinheiro que normalmente era usado pelas crianças para comprar sorvete de groselha. “A gente comprava em uma sorveteria de uma família de origem japonesa, próxima ao Bar Gruta da Onça. Era um sorvete muito delicioso”, afirma sorrindo Barbosa que se tornou engraxate aos sete anos, em 1951. Na Rua Marechal Cândido Rondon, entre o Banco do Brasil e a Ótica Pupila, havia uma famosa engraxataria, muito bem frequentada. Lá, dois garotos conhecidos como Chiquita e Ligueira trabalhavam para um homem a quem pagavam comissão.

“Era tudo muito tranquilo. Não havia preocupação em saber quanto cada um ganhava. O pessoal tratava bem e lembro que uma vez juntei 100 cruzeiros”, relata. Recentemente o artista plástico reencontrou um cliente de quem na infância engraxou muitos sapatos pretos de pelica na Rua Minas Gerais. O movimento sempre aumentava nos finais de semana, quando colonos e peões que trabalhavam na derrubada de árvores retornavam à cidade. Com base em uma estimativa, pode-se dizer que cada criança engraxava pelo menos cinco pares de sapatos por dia.

Réplica rústica da caixa usada por Antonio de Menezes (Foto: David Arioch)

Muita gente desembarcava na primeira parada de ônibus de Paranavaí, o Ponto Azul, onde eram assediados pelos engraxates mirins. As crianças os cercavam e gritavam: “Vai graxa, aí? Vai engraxa?” “Dava pra trabalhar o dia todo. Comprava graxa da marca nugget na Casa São Paulo. Tinha latinha de dois tamanhos. A gente passava com escova de dente ou de engraxar”, relata Antonio de Menezes. Para dar um brilho nos calçados, a garotada não dispensava o paninho de flanela. E claro, nem os clientes que faziam questão de cobrar quando o serviço não era completo.

Barbosa tinha a própria caixa de engraxate, o que era um privilégio para poucos, pois podia trabalhar sozinho e onde quisesse, sem precisar cumprir horário ou prestar contas do serviço. Porém, a função não era bem encarada por todos os moradores de Paranavaí. “A figura do engraxate já era de uma pessoa marginalizada, de alguém que não era de confiança”, desabafa Antonio de Menezes que conquistou um bom número de clientes fiéis, mas no início da adolescência desistiu da atividade para trabalhar na área comercial. O auge dos engraxates em Paranavaí se estendeu até a década de 1960.

A boa mão para a engraxataria fez Barbosa ser chamado para um serviço na casa de um homem conhecido como “Seu Euquério”, ex-gerente da Boa Táxi Aéreo. “Um dia, ele me pagou só para encerar o piso da casa dele com cera canário e dar um brilho no assoalho”, conta rindo.

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João Franco: “Ficamos no mato por mais de vinte anos”

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Pioneiro chegou a Paranavaí quando a colônia era coberta por mata virgem

Em 1954, o desmatamento ganhou força em Paranavaí (Acervo: Fundação Cultural)

Em 1944, havia tanta vegetação nas imediações da Fazenda Brasileira, atual Paranavaí, no Noroeste do Paraná, que a mata virgem cobria toda a colônia. Tudo tinha de ser improvisado, até mesmo estradas e pontes. “Ficamos no mato por mais de vinte anos”, afirmou o pioneiro paulista João Silva Franco.

Franco conta que deixou a família no interior de São Paulo quando decidiu conhecer a Brasileira. Somente depois trouxe a mulher e a filha. Quando chegou a futura Paranavaí, antes de fixar residência, acampou onde é hoje a Praça dos Pioneiros. “Lá, naquele capoeirão que cobria os cafezais, ficamos 16 dias queimando lata. Foi assim até comprar uma terrinha pra fazer um ranchinho de colonião e sapé, tempo em que só havia movimento de carroças e cavaleiros”, declarou o pioneiro.

Em 1944, o ponto preferido dos peões e outros migrantes era uma praça localizada entre as Ruas Minas Gerais e Manoel Ribas. “Uma espécie de boca maldita”, sentenciou o pioneiro Oscar Geronimo Leite em entrevista ao jornalista Saul Bogoni há algumas décadas. Até aquele ano, não havia mais que 30 casas em Paranavaí, todas feitas de tabuinhas, e muitas estavam desocupadas há mais de dez anos, quando a Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco) foi expulsa do Distrito de Montoya, após a Revolução de 1930.

“Até mesmo uma grande serraria que ficava no fundo de um buracão no Jardim São Jorge foi abandonada”, lembrou João Franco, referindo-se ao empreendimento fundado em 1929 pela Braviaco. Ainda em 1944, o pioneiro comprou uma propriedade na “Água do 22”, no Distrito de Graciosa. Enfrentou todas as dificuldades que atingiram Paranavaí nos anos 1940 e 1950; desde problemas com golpes, tempestades, animais silvestres, falta de higiene, doenças e até escassez de alimentos.

“Tudo que aconteceu aqui nós vimos ao vivo. Os contratantes judiavam do povo. Queriam que trabalhasse sem direito a nada. Na hora de pagar, eles batiam demais e se teimasse era morto e jogado no rio”, desabafou. À época, para ampliar o tráfego de pessoas, animais e veículos, os pioneiros abriram picadões. O trabalho era bem simples. Um tratorista apenas empurrava o mato para o lado.

As pontes eram improvisadas com coqueiros derrubados, uma alternativa à morosidade do poder público em enviar profissionais qualificados para a construção de pontes e vias. “Trabalhei muito na abertura de estradas. Desmatei de Paranavaí até Capelinha [Nova Esperança]”, ressaltou Franco que sobreviveu na Brasileira porque tinha resistência para viver em lugares isolados, mesmo sob precárias condições. O pioneiro já tinha trabalhado como foiceiro, enxadeiro, serrador e lavrador.

Em 1940, de acordo com o pioneiro mineiro José Antonio Gonçalves, muitos dos migrantes que chegavam à Brasileira eram peões. “Foi assim até 1945, quando o Governo do Paraná parou de dar terras”, enfatizou o pioneiro paulista José Ferreira de Araújo, conhecido como Palhacinho. Um ano depois, com o crescimento populacional, as terras da Colônia Paranavaí começaram a ser bem valorizadas.

Segundo o pioneiro paulista Paulo Tereziano de Barros, só a partir de 1946 surgiu a preocupação em nominar as ruas e avenidas da cidade. “Em 1948, chegava gente aqui todos os dias. Era como a corrida do ouro”, avaliou o pioneiro paulista Salatiel Loureiro. Entretanto, a erosão hídrica já era um problema para o solo do arenito Caiuá nos anos 1940, o que foi se intensificando décadas depois. Migrantes que não tinham adquirido terras aproveitavam as áreas sem donos, como os buracões, para plantar feijões.

Em 1954, o desmatamento ganhou força em Paranavaí, conforme palavras do frei alemão Henrique Wunderlich em carta enviada à revista alemã Karmelstimmen. O padre alemão Alberto Foerst fez coro às palavras de Wunderlich. “O mato era derrubado e ficava no chão algumas semanas até ser queimado”, confidenciou no artigo “Die Stimme Der Mission”, publicado em outubro de 1954 na Karmelstimmen.

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