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Quando eu comprava cigarro para os meus pais
Suspeitei que o inventor do cigarro tivesse errado a escolha dos ingredientes e criado algo indesejado
Na infância, eu comprava cigarro para os meus pais. Sim, eu e todos os meus amigos e colegas que nasceram nos anos 1980 e tinham pais fumantes. Minha mãe abandonou o vício na minha adolescência, mas meu pai, um tabagista inveterado, faleceu em decorrência de um câncer de pulmão. Começou a fumar muito cedo, quando astros de Hollywood ajudaram a transformar o cigarro em um obtuso símbolo de charme, rebeldia e sensualidade.
Nunca perguntei porque ele fumava, só que um dia, ainda criança, comentei com minha mãe que “só o trem a vapor tinha motivo para soltar fumaça, já que o movimento dele dependia da queima do carvão”. Desde pequeno, eu não via graça na ideia de colocar algo na boca simplesmente para soltar fumaça. Eu associava aquela imagem com a da fumaça preta que saía dos escapamentos dos caminhões velhos que víamos nas ruas. Óxido de carbono, óxido sulfúrico, óxido de nitrogênio e hidrocarboneto aromático, fiquei sabendo mais tarde.
“Quem sabe as pessoas que fumam sejam como os escapamentos dos caminhões, a diferença é que soltam menos fumaça porque são menores. E talvez ela seja menos suja porque sai diretamente da boca”, escrevi num caderno quando tinha sete ou oito anos. Nunca coloquei um cigarro na boca. Também não me gabo disso. Não! Minto! Coloquei sim, aquele de chocolate lançado pela pan e que trazia uma criança negra sorrindo na caixinha. Não vou negar. Fingi fumar com o cigarrinho de chocolate entre os lábios. Afinal, a ideia de fumar, por pior que fosse, preservava seu ardil romanesco nas brincadeiras.
Aos dez anos, suspeitei que o inventor do cigarro tivesse errado a escolha dos ingredientes e criado algo indesejado. Quem sabe a ideia inicial fosse fazer com que saísse algo de bom da boca das pessoas em vez de uma fumaça ruça e malcheirosa. E a ironia já subsistia no fato de que a fumaça por si só era suspeita na sua nebulosidade, como um mandrião velando suas verdadeiras intenções.
Comecei a comprar cigarros com sete anos, quando morávamos na Rua Pernambuco. Eu e meu irmão Douglas caminhávamos 100 metros para buscar um ou dois maços de Free em um bar na Avenida Distrito Federal. Por causa da fumaça, entrar lá era como subir num palco instantes antes de um show. A diferença era que o gelo seco não escurecia como a fumaça do cigarro. Nem fedia como aqueles corpos macerados pelo vício em álcool e tabaco.
Alguns sujeitos tossiam como se estivessem prestes a vomitar ou expelir pedaços de tecido do organismo. Aquela era a realidade dos dependentes mais figadais, e me vi diante dela nos primeiros anos de vida. Eu gostava do lugar, de testemunhar a salada social composta por pessoas das mais diferentes faixas etárias – onde pobres e ricos, vagabundos e trabalhadores se misturavam sem formalidades.
Ações, expressões e reações de alegria, tristeza, inconformismo, cólera, sabedoria, ignorância, tudo poderia ser encontrado no bar da Dona Maria, mãe do meu amigo Fabiano. Porém, nenhum sentimento parecia mais destacável do que um híbrido de ilusão e decepção. Naquele lugar, homens de poucas palavras chegavam sorrindo e partiam chorando assim que as aparências descortinavam as essências.
Junto ao balcão, Dona Maria mantinha um taco de beisebol, apelidado de “Juízo”, para conter os desordeiros. Repreendia bêbados, dava conselhos e às vezes alimentava os mais miseráveis. Era visceral a forma como seu semblante mudava de um segundo a outro caso alguém fizesse algo de errado. Chapas (carregadores de mercadorias), vendedores ambulantes e artistas de rua passavam por lá com frequência. Um dia ganhei um quadrinho de madeira com a minha imagem entalhada por Maneta, um escultor que viajava por todo o Brasil de carona.
Enquanto alguns sentavam diante das mesas laterais, outros preferiam o balcão, sentindo o aroma das conservas, ouvindo o som dos congeladores e da TV com caixa de madeira. Incomum era encontrar alguém no bar que não fumasse. Eu ziguezagueava pelo espaço, tentando evitar inalar a fumaça que se movia pelo ambiente como uma serpente tentando me engolir. Pior ainda era quando meu nariz entupia por causa da rinite alérgica.
Diante do balcão, eu sentava em um banquinho, balançava as pernas, pedia dois maços de cigarro e observava os doces das vitrines. Assim que Dona Maria me entregava as duas carteiras de Free, eu pagava, guardava os maços no bolso esquerdo da bermuda e o troco no bolso direito. Saía de lá desviando da fumaça e ouvindo gargalhadas e gritos de três ou quatro homens entretidos em uma partida de truco. “Ladrão! ladrão! Isso que tu é, seu porco malandro!”, berrou numa tarde um homenzarrão barbudo com voz tão grave que meus tímpanos latejaram. Me senti como se estivesse diante do próprio demônio.
Ele sentava sobre duas cadeiras em vez de uma, e sua mão chegava a ser maior do que a cabeça dos seus adversários. Assustado, assisti as cartas miúdas desaparecendo entre suas mãos. Era como se fossem miniaturas em papel. De repente, o sujeito olhou para mim e disse: “Que foi, garoto? Perdeu alguma coisa?” Sem abrir a boca, movimentei a cabeça negativamente e me afastei. Antes de pisar na calçada, vi ele tirando um Belmont do bolso da camisa, o acendendo e o tragando com tanta sofreguidão que em poucos segundos o cigarro foi reduzido às cinzas, restando apenas um filtro diminuto resvalando dentro de um cinzeiro de madeira.
Sua boca também era descomunal. Quando ele mirou o teto e expirou a fumaça, foi como se uma nuvem pesada demais para suportar a própria sustentação se formasse sobre sua cabeça, como uma névoa eivada e gulosa. Aquele era o Terebintina, fumante e bebedor profissional, diziam. Trabalhou para as maiores empresas de tabaco e destilados do Brasil na década de 1980. Não era difícil encontrar jovens e até pessoas mais velhas que sonhavam com essa vida. Beber, fumar e nada mais, sim, era o ideal de muita gente. Em casa, enquanto minha mãe sovava uma massa de pão na cozinha, comentei o que aconteceu no bar. Ela se divertiu com o meu relato embora não conhecesse o gigante mal-encarado.
Naquela época, cheguei a acreditar que o mundo era dos fumantes. Por onde eu andasse, falava-se em cigarro. Na TV, no rádio e nos outdoors perseverava a glamourização do fumo. No centro, na saída da escola, eu sempre via embalagens vazias e bitucas de cigarro próximas do meio-fio. Ofereciam até amostras grátis. E, claro, alguns tabagistas eram mais educados do que outros. Minha mãe, por exemplo, evitava fumar perto de mim e do meu irmão. Quando notava que eu o observava, meu pai copiosamente passava o cigarro da mão direita para a esquerda, tentando ocultar a fumaça por trás do livro, e declarava: “Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço.”
Pela manhã, vez ou outra, eu assistia minha mãe trocando os lençóis queimados pelas brasas do cigarro. Talvez aqueles furos com bordas negras significassem mais do que imaginávamos. Afinal, eram disformes e incertos como pequenos tumores. “Ontem, disse para mim mesmo que era o último. Eu não quis imaginar que seria o fim, que eu não fumaria mais até a minha morte. Preferi pensar que se eu parasse agora, teria a possibilidade de fumar de vez em quando”, escreveu Henri-Pierre Jeudy em “O Último Cigarro”.
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Supino e o direito de ser marombeiro
“Olha o naipe desse cara. Que otário! Muito músculo e pouco cérebro”, ocasionalmente dizia alguém
Na década passada, eu sempre encontrava um amigo no mesmo horário na academia. Era um sujeito bem animado, sorridente e que gostava de ser notado. Quando não percebiam sua presença, ele encontrava um jeito de chamar a atenção – dava um urro sorrateiro, falava alto ou causava algum atrito ruidoso entre as anilhas. Jamais o percebi conversando sem arquear os braços, chacoalhar a cabeça, espichar as veias do pescoço ou fazer movimentos curiosos com as mãos. Era um exibicionista de boa índole.
Ao sair da academia depois de um treino de peito ou braços, tirava a camiseta, aproveitando para mostrar o pump – aquele aspecto que faz todo cara parecer maior após os exercícios por causa do aumento do fluxo sanguíneo bombeado no músculo. “Agora vou ‘apavorar’ na rua”, comentou um dia. Nessas circunstâncias, eu apenas ria. Aquela era a sua alegria, e se ele tinha algum tipo de prazer nisso, era o que importava, não cabendo a mim nem a ninguém julgá-lo.
Supino, como eu o chamava porque ele treinava mais peito do que qualquer outro grupo muscular, tinha o costume de atravessar o centro da cidade com a camiseta sobre o ombro, ignorando comentários e olhares desdenhosos, principalmente de quem menosprezava marombeiros. Se alguém fizesse careta ou criticasse e ele percebesse, não era raro Supino reagir de forma inesperada.
“Olha o naipe desse cara. Que otário! Muito músculo e pouco cérebro”, ocasionalmente dizia alguém. Sua reação instantânea era retribuir com um sinal de joia e uma contração muscular elevando a cabeça do bíceps. “Fica sossegado, irmão! É só entrar na academia, seguir dieta e treinar certinho por anos que você chega lá”, comentava sorrindo e finalizando a breve interação com uma piscadela provocativa e um tapinha no próprio deltoide.
Quando ele atravessava a movimentada Rua Getúlio Vargas, algumas mulheres também o depreciavam às vezes, incomodadas em vê-lo na sua caminhada fruitiva, com o torso à mostra enquanto o sol aquecia o asfalto, atravessava vitrines e exasperava os mais afoitos. “Nossa, o tipo! Se acha demais! Tem gente que faz de tudo pra aparecer! Pensa que é bonito ser vagabundo e andar seminu na rua!”, ouviu numa tarde.
Sem titubear, caminhou até a moça que fez o comentário com a amiga e a observou nos olhos por alguns segundos. “Com licença, senhorita. Tu paga as minhas contas? Lava minha roupa? Prepara minha comida? Acho que não, né? Então pode parar de admirar que aqui não tem nada de graça”, declarou sorrindo e dando dois tapas no próprio peito. Constrangida, a moça puxou a amiga pelo braço e caminhou apressada até o fundo de uma loja.
Supino agiu assim por muito tempo, na sua tenra espontaneidade. Um dia, logo que saiu da academia, quando já não treinávamos mais no mesmo horário, foi surpreendido e atropelado. Ele rolou sobre o capô do carro e caiu deitado com as costas contra o asfalto tórrido de uma manhã altaneira de verão. No chão, sentiu uma luz quente bloqueando sua visão.
O motorista fugiu e Supino continuou deitado no chão. Não gemia nem agonizava. Somente ria de si mesmo e do seu próprio azar, ignorando os ferimentos pelo corpo. Surpreendendo quem testemunhou a cena, ele se levantou e limpou os ferimentos com a própria camiseta branca transfigurada em vermelha.
Joelhos e cotovelos esfolados, muitas escoriações nas costas e no peito, um corte superficial na testa e outro no topo da cabeça, nada disso o impediu de soerguer-se para assistir o autor já distante, fugindo pela Rua Pernambuco. Na manhã seguinte, Supino estava na academia praticando musculação.
E mais, na mesma semana, tomou uma decisão. Foi até uma loja no centro de Paranavaí e pediu para uma vendedora mostrar-lhe algumas camisetas. Enquanto ele as observava, em dúvida sobre quais escolher, as mãos da moça tremiam e as frases saíam incompletas de sua boca. “Você precisa tomar um copo de água com açúcar ou maracugina, moça. Não parece nada bem!”, sugeriu.
De repente, ela começou a chorar e a pedir desculpas. Supino não disse nada. Complacente, assistiu a reação dela em silêncio. Comprou três camisetas e saiu da loja com a consciência tranquila. Lá fora, a observou pela última vez antes de partir. Ele sabia e ela sabia. Supino descobriu que a mesma jovem que antes se incomodou com sua presença, fazendo um comentário preconceituoso que ele retribuiu quando ela o viu sem camiseta, pediu ao namorado que o atropelasse, alegando que Supino deu em cima dela.
À época, o questionei sobre o porquê de não ter procurado a polícia. Ele deu uma de suas respostas minimalistas e filosóficas: “Sua consciência é o seu único e verdadeiro guia.” O episódio me traz lembranças de uma subjetiva frase escrita por Balzac no século 18: “Quando todo o mundo é corcunda, o belo porte torna-se a monstruosidade.”
O guarda Clemente
Eu via seu bigode escuro, espesso e longo como se fosse as cortinas do firmamento
Quando eu tinha seis anos, todos os dias um guarda nos aguardava na mesma rua para fazer a nossa travessia. Eu e centenas de outras crianças passávamos por lá pontualmente. Clemente sorria de longe e estendia a mão com tanta devoção que até os raios de sol pareciam mais intensos, iluminando sua fronte e destacando seus dentes nevados.
Levava o apito à boca e emitia um som curto e oxítono, porém eficaz. Era o suficiente para que todos ficassem atentos. Então Clemente segurava minha mão miúda com firmeza e me guiava até a calçada da escola, me protegendo de motos, carros, caminhonetes e caminhões. Cuidadoso, sempre mantinha o próprio corpo mais próximo dos veículos enquanto o meu era velado pelo seu.
A sincronia entre o apito e a instantânea paragem era surreal, como se coreografada. E poucos ousavam encostar sequer um centímetro de pneu na faixa de pedestre. Se alguém o fizesse, Clemente tirava uma trena do bolso, agachava no asfalto por segundos, caminhava até o motorista e o cumprimentava com um caloroso aperto de mão.
“Como vai? Tudo bem? Está quente hoje, não? Imagino que o senhor tenha pressa, claro, quem não tem hoje em dia, não é mesmo, meu amigo? Por isso entendo porque o senhor está com os dois pneus dianteiros sobre a faixa. Acontece. A pressa faz a gente cometer esses pequenos deslizes. Dê uma olhadinha aqui. São apenas 25 centímetros de invasão, o que acredito que o senhor, assim como eu, sabe que não vai garantir que o senhor chegue mais rápido a lugar nenhum. E, claro, agora não temos muitas crianças na rua, mas há horários em que esse espacinho faz uma falta que o senhor nem imagina. Posso contar com sua colaboração?”, disse num início de tarde, retribuindo a concordância do motorista com um aceno de cabeça e um sorriso frugal.
Durante a travessia com Clemente, eu erguia a cabeça, mirando o céu com o nariz, e o observava. Pequeno, eu acreditava que ele podia tocar aquela imensidão azul com o topo do seu quepe. Eu via seu bigode escuro, espesso e longo como se fosse as cortinas do firmamento. As nuvens se moviam próximas de sua cabeça, reafirmando a ideia de que pelo menos naquele cruzamento ele era a autoridade suprema, e além dele não havia mais ninguém.
Após às 17h30, quando o sinal da escola era acionado, avisando que as aulas acabaram, fazíamos o mesmo trajeto. Horas se passavam e Clemente continuava sorrindo e estendendo as mãos. Ele jamais demonstrava cansaço, irritação ou enfado. Era tão educado que às vezes os motoristas estacionavam seus veículos e caminhavam até ele para parabenizá-lo pelo trabalho.
E aquilo fazia dele um dos personagens mais admiráveis da minha infância, alguém em quem eu também poderia me espelhar para me tornar um ser humano digno quando crescesse. Não era raro ver pessoas querendo presenteá-lo. Comprometido com sua ética de trabalho, ele agradecia com olhos abrilhantados e recusava, a não ser os presentes feitos a mão, uma comidinha ou doce caseiro.
Criança, eu nunca tinha ouvido falar em racismo, até que no recreio perguntei ao meu coleguinha Beto porque ele e alguns outros garotos não seguravam a mão de Clemente. Inclusive um dia o vi tirando a mão do guarda de cima do seu ombro. “Ué, porque ele é preto! Meu pai falou que não devia existir guarda preto porque essa gente não é de confiança; tem só a palma da mão branca. Fora que tem mau cheiro e cabelo duro”, respondeu com naturalidade.
Assustado, fiquei em silêncio. Durante o recreio, sem saber o que aquilo significava, sentei num canto do pátio e pensei nas palavras de Beto. Me dei conta de que realmente Clemente era um homem negro, o primeiro que vi desde que nasci, mas e daí? Dias depois, Beto me deu um ultimato falando que eu não poderia andar mais com ele e com outros três coleguinhas se eu continuasse segurando a mão de Clemente. Ignorei e ao longo de meses fui excluído das brincadeiras no parquinho da escola. Na hora do futsal, Beto convencia todas as outras crianças a me deixarem de fora.
Um mês se passou e não vi mais clemente no cruzamento, seu local de trabalho. Ele não voltaria mais. Em seu lugar colocaram um rapaz loiro e de olhos claros que dedicava sua atenção às adolescentes que circulavam pelas imediações. Influente, o pai de Beto conseguiu fazer com que Clemente fosse transferido para outra cidade. Inventaram uma desculpa de falta de guardas e o convenceram a partir.
Mais tarde, num sábado, Beto caminhava e chupava um picolé quando foi surpreendido por um carro desgovernado que invadiu a calçada no cruzamento da Rua Pernambuco com a Rua Souza Naves. Aturdido, jogou o palito, fechou os olhos e se encolheu. Não viu Clemente sair do mercado, arremessar as sacolas e se jogar com ele no asfalto.
O guarda ganhou ferimentos superficiais por todo o corpo. Ao ver Beto ileso, sorriu, sem se importar com a roupa rasgada. Constrangido e com olhos esgazeados, o menino se encolheu em posição fetal. Descobriu que a mão rejeitada é aquela que mais deveria ter sido afagada.
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O dia em que Tio Lú escapou da morte
O artista plástico Tio Lú, de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, me contou hoje uma história que acho interessante compartilhar. Durante o relato, me recordei de “A Narrativa de Arthur Gordon Pym de Nantucket”, de Edgar Allan Poe, que anos depois deixou de ser apenas ficção para se tornar realidade, fazendo muitos de seus leitores refletirem sobre a quimera que envolve questões de probabilidade e impossibilidade.
Há cinco anos, Tio Lú estava pedalando pela Rua Pernambuco, perto do antigo depósito dos Correios, quando lhe chamou a atenção o fato de um homem passar diante dele vestindo roupas iguais e com as mesmas cores – sandálias amendoadas de couro, camisa azul e calça jeans escura. Assim como Tio Lú, o sujeito também era alto, negro e tinha cabeça raspada, além de composição corporal muito semelhante.
Por descuido, o homem quase esbarrou nele e seguiu guiando a bicicleta, também da mesma cor, com pressa, logo desaparecendo no horizonte. Intrigado, mas despreocupado, o artista plástico continuou pedalando, até que de repente ouviu um tiro que passou raspando à direita de sua camisa. O outro balaço coincidiu com o momento em que Tio Lú jogou a bicicleta sobre a calçada, se lançando sobre o pavimento de mosaico português e assim se livrando da morte.
Assustado, olhou para trás e viu um rapaz correndo e empunhando um revólver calibre 38. “O que é isso? Você tá louco?”, questionou Tio Lú, lívido e com o corpo trêmulo. O homem o observou rapidamente, o ignorou e prosseguiu acelerado. Desorientado, o artista plástico só conseguiu se levantar cinco minutos após o choque. No dia seguinte, ficou sabendo que ele foi confundido com o homem mais tarde assassinado na Rua Pernambuco, em Paranavaí.
Nestor e Pompeu
Nestor ria efusivamente conforme as patas traseiras e curtas de Pompeu se moviam para a frente
A primeira vez que vi Nestor e Pompeu eu tinha cerca de oito anos. Foi num terreno baldio na esquina de casa, na Rua Pernambuco, onde em meio à capoeira que crescia livremente havia um tanque velho e uma torneira encardida de plástico. Nestor, um rapaz de não mais que 35 anos e estatura mediana, banhava seu cachorro mestiço que imóvel o observava esfregando-lhe o dorso com um pedaço carcomido de sabonete.
Depois do banho, Nestor enrolou Pompeu em uma toalha branca já amarelecida e forrou o chão com um lençol azul-celeste que tirou da mochila. Com as costas escoradas na parede vizinha, sentou e começou a assear Pompeu, tentando reduzir ao máximo a umidade do corpo do cãozinho pardo até então silencioso. O que mais me chamou a atenção naquele dia foi o fato de que a comunicação entre os dois era baseada em olhares, não em palavras. Os dois se entendiam na completude da ausência de diálogos. Quando Nestor sorria, o dorso de Pompeu tremia e o seu rabo chicoteava o ar em regozijo.
Me intrigava a expressão de serenidade, traduzida em um tipo peculiar de satisfação, daqueles dois seres que adotavam todo lugar ou lugar algum como morada provisória. Nestor usava um surrado par de sandálias amendoadas de borracha, uma camiseta bege de algodão e uma calça jeans azul com barras que não chegavam a tocar-lhe os calcanhares, lembrando um tipo pula-brejo. Pompeu tinha porte mediano, aspecto saudável e feições tão expressivas que chegava a parecer um ser humano. Tudo que Nestor comia, ele dividia em partes iguais com Pompeu. A comunicação entre os dois pouco parecia a de espécies diferentes. Juntos, se completavam de maneira singela e curiosa.
Um dia, enquanto chovia, observei Pompeu a metros de distância, saltando no ar com a boca aberta, engolindo a água fria da chuva. Nestor ria efusivamente conforme as patas traseiras e curtas de Pompeu se moviam para a frente – como se impulsionasse o próprio corpo para golpear o nada ou o vazio do alheamento humano. “Simbora, Pompeu, já brincou bastante. Tu vai ficar doente. Vem pra cá!”, disse Nestor ao notar como o focinho do companheiro tornara-se tão fino e pândego por causa da chuva.
Do outro lado da rua, um gatinho abandonado na sarjeta miava tão alto e esganiçado que Pompeu correu até ele mantendo as orelhas em pé para assimilar melhor o som. Assustado, o filhotinho acinzentado e molhado se encolheu diante de uma boca de lobo por onde a água escorria em direção à completa escuridão. Entre um olhar para Pompeu e outro para o bueiro caliginoso, se retraiu ainda mais, inclinando a cabeça em direção ao peito, e aceitou seu destino sem miar outra vez. Pompeu então o segurou pelo couro entre a região do pescoço e do dorso e o carregou até uma cobertura improvisada no terreno baldio na esquina de casa.
Lá, o cão manteve o gatinho aninhado entre suas patas, aquecendo seu corpo trêmulo e diminuto, castigado pela água fria, mas que para ele, um animalzinho nascido há pouco tempo, talvez fosse tão gelada que lhe amofinasse até os ossos. “Vejo que tu fez nova amizade”, comentou o lacônico Nestor ajeitando o boné sobre a própria cabeça. O novo integrante da família recebeu o nome de Curumim em um batismo selado com um pouquinho de ração canina transformada em mingau e servida em uma tampa plástica.
No dia seguinte, pela manhã, corri até a esquina para ver se continuavam no mesmo lugar. Sem graça e sem querer, fiquei frente a frente com Nestor. Ele estava saindo para buscar mais ração. “Ei, amigo! Vou ter que dar uma saidinha. Você pode ficar de olho naqueles dois?”, pediu. Sem dizer palavra, movimentei a cabeça em concordância e caminhei até Pompeu e Curumim que dormiam agarrados um ao outro. Sem mover as patas, Pompeu levantou um pouco os olhos e voltou a dormir, assim como Curumim. Talvez minha presença não significasse risco algum a eles, concluí.
Sentado no chão, tirei o meu boneco Comando Travessia (Hawk) do bolso e comecei a brincar, sem fazer muito barulho, simulando uma incursão por um curto trecho de gramínea. Tudo parecia tranquilo. Eu ouvia o som tênue da brisa que contrabalanceava com o sol que cobria o centro do terreno, iluminando o pouco verde fulgurante e rasteiro que balouçava pejoso.
De repente, senti coceira na mão esquerda. Quando olhei o chão onde me apoiei, vi um bando de formigas enfileiradas transportando alimentos por um trajeto em que a ausência de sol talvez tornasse a jornada menos tortuosa. Apenas mudei de lugar e continuei em silêncio. Olhei para a rua e assisti os passantes nos observando com olhares curiosos e inquisidores. Entre passos céleres e vagarosos, alguns sorriam enquanto outros se protegiam sob feições carrancudas. Carros, motos e caminhões subiam e desciam nas mais distintas velocidades. A pressa de uns, por bem, não era de todo contagiante.
Nestor retornou depois de hora e meia, trazendo mais ração em uma sacola da Casa Moreira. Pompeu comia sem alarde. Observava o entorno e engolia vagarosamente. Afoito, Curumim lambuzava até as orelhas e as patas sobre a pastinha de ração com água. Após uma gargalhada expansiva, destacando bem os dentes, Nestor comentou:
“Curumim é como esses carros e essas pessoas que vimos passar agorinha há pouco. Têm pressa pela simples e ingênua motivação de ter. Não sabem na verdade o porquê e mesmo que soubessem não faria diferença. Não há que se ter pressa para nada. O que a pressa já trouxe de bom? A pressa na verdade diz muito sobre nossas falhas. Curumim ainda é bebê e na idade certa há de aprender. É uma pena que poucos se importam com isso hoje em dia.” Na época, não entendi muito bem, mas achei bonito o discurso.
Nestor possuía cabelos longos e traços indígenas, embora eu desconhecesse sua origem. Seus olhos castanhos eram sempre serenos, mesmo quando alguém o confrontava ou ofendia, o que não era tão raro. Alguns o desprezavam justificando que ele vivia na rua e não tinha trabalho fixo, logo não poderia ser “homem de bem”. O fato de não pedir esmolas pouco pesava na consciência de seus críticos. Nestor não se incomodava. Gozava de seu próprio código de vida, tanto que só aceitava algo se pudesse retribuir.
Mais tarde, numa noite amena, brincando de cabra-cega na varanda de casa com meu irmão e dois amigos, ouvi um barulho vindo da rua. Pedi para minha mãe me deixar ir lá fora ver o que estava acontecendo. Ela autorizou que eu saísse por poucos minutos. Corri até a esquina e encontrei Nestor ensanguentado com as costas escoradas na parede chapiscada do terreno baldio. O sangue, misturado às lágrimas, escorria de seu rosto trigueiro e ele gemia em silêncio, com os braços arroxeados envolvendo Pompeu que emitia um uivo abafado, afônico e lastimoso. Curumim fazia o mesmo, protegido por Pompeu.
Minutos antes, três homens encostaram um Opala preto, desceram e, carregando pedaços de pau, caminharam até Nestor. “Olha, vagabundo, se reagir, a gente mata o cachorro e o gato. Outra coisa, mande eles ficarem quietos senão a coisa vai feder mais ainda pro seu lado, seu índio de merda!”, esbravejou um homem de mais de 45 anos, apontando para o revólver de calibre 38 na cintura, acompanhado dos dois filhos que participaram da selvageria. Assim que Nestor amarrou Pompeu e Curumim com o lençol azul-celeste, tantas vezes usado para servir de abrigo, os três começaram a golpeá-lo.
Caiu desnorteado no chão, ouviu pessoas gritando e viu num átimo anuviado os três agressores correndo em direção ao Opala e partindo bruscamente. Nestor não morreria mais naquele dia. Passado um mês, sentiu-se muito bem após receber atendimento hospitalar e contar com os cuidados da vizinhança que o acolheu com mais desvelo do que nunca.
Algum tempo depois, não sei ao certo quanto, Nestor caminhava à noite pelas imediações da Praça da Xícara quando viu um jovem ensanguentado, caído na calçada. Vítima de assalto, recebeu uma facada no pescoço. Sem pensar duas vezes, Nestor tirou a própria camiseta, fez um torniquete, colocou o rapaz em seus ombros e caminhou até o Pronto Socorro da Santa Casa de Paranavaí. Sua força era prodigiosa. Pesando em torno de 70 quilos, transportou sem dificuldade uma pessoa de 85.
A vítima chegou ao hospital com a tez lívida e jamais teria sobrevivido sem a compassiva intervenção do desconhecido. Ao avisarem que o rapaz não corria mais risco de morte, Nestor deu um breve sorriso veraz e caminhou até a saída do hospital. Logo uma médica o alcançou e disse que uma pessoa queria muito falar com ele. “Foi esse rapaz que salvou seu filho”, revelou ela. Constrangido, o pai da vítima agradeceu, sem olhar diretamente nos olhos de Nestor que sequer piscava diante do homem, observando com bonança e acuidade sua reação.
“Tens aqui seu filho, tão importante para ti como são os meus para mim. Lá fora existe vida em cada centímetro de nossos passos. Não há nada neste mundo que nunca tenha sido tocado pela vida. Ela é sempre maior do que tudo que tocamos e vemos, mesmo quando cegos ou desassistidos pela compreensão. Desconheço algo de maior valor, imagino que também pense assim o senhor. Afinal, o que resta ao homem se não tiver ele o direito de respirar, de caminhar ou de existir onde quiser e como quiser?”, declarou Nestor antes de desaparecer na noite enluarada e estrelada que principiava o fim de um longo período de cerração.
O homem, aflito ao ver Nestor no hospital, foi o responsável por atacá-lo no terreno baldio na esquina de casa. E o rapaz fora de perigo era seu filho, um dos que desferiu-lhe alguns golpes nas costas com um pedaço de pau. “Ajudai-me, óh Manitu, a não julgar meu semelhante antes que eu tenha andado sete dias com suas sandálias”, diz uma oração sioux.
Meu amigo Chico
Ele se despedia, piscava e partia segurando os sacos e correndo de costas
Na fase mais tenra da minha infância, eu tinha amizade com personagens improváveis para alguém da minha idade. Idosos e vendedores ambulantes sempre atraíam minha atenção. Os mais velhos pelas copiosas e esmiuçadas histórias que gostavam de relatar. E os ambulantes pelas altissonantes experiências que faziam questão de compartilhar. Mas hoje quero falar em específico sobre o meu amigo Chico.
Em 1990, Chico passava todos os dias em frente de casa, na Rua Pernambuco, ao final do entardecer. De longe eu via sua roupa lucilando com a incidência vulcânica do sol. Ele corria de um lado para o outro com um par de galochas. Sorria, gesticulava, apontava, ziguezagueava e saltava sobre os meios-fios, arbustos ou qualquer tipo de obstáculo que aparecesse à sua frente.
Chico não tinha mais do que 30 anos, a pele bronzeada, cabelos castanhos ondulados e afogueados na altura da orelha. Seus olhos miúdos e escuros pareciam marias-pretinhas. Sempre que se aproximava de mim, retirava o seu surrado par de luvas, o colocava debaixo do braço esquerdo, segurava minha mão direita com as suas duas mãos, sorria efusivamente e dizia: “Boa tarde, David! Muito bom te ver de novo. O que temos pra hoje, meu amigo?”
Eu retribuía a atenção com um sorriso frugal que destacava boa parte dos dentes, inclusive uma janelinha alinhada ao meu nariz. “Oi, Chico! Tá aqui ó”, respondia com parcimônia. Ele abria um ou dois sacos grandes acinzentados sobre a lixeira, fazia algumas micagens ou trejeitos cômicos e comentava: “Ora, ora, David, quanta coisa boa você comeu esta semana, hein? Continue nesse ritmo e vai se tornar um rapaz mais forte que eu!”
Ele se despedia, piscava e partia segurando os sacos e correndo de costas. A menos de um metro do caminhão, girava o corpo, arremessava cuidadosamente os sacos de lixo e saltava, se apoiando em uma barra lateral esquerda. Acenava pra mim e desaparecia junto com o veículo na curva da Rua Amazonas.
Meu encontro com Chico era no mínimo semanal. De vez em quando, brincando com meus amigos em algum lugar distante de casa, logo que a lua despontava com o poente, eu lembrava do meu compromisso voluntário. “Vixi, o Chico! Ele precisa de mim pra entregar o lixo!” Então eu corria para casa desviando das pessoas nas calçadas, saltando sobre buracos e me esquivando de cães que se sentiam provocados pela minha debandada.
Foi assim que um dia encontrei o caminhão de lixo subindo a Rua Pernambuco, a duas quadras de casa. Quando me viu, Chico pediu que o motorista parasse. Esfregou o punho da mão direita na testa, me chamou e saltou. Como era alto, arqueou ligeiramente as pernas para ficar mais próximo de mim. Frente a frente com ele, me senti um pouco pejoso pela situação. Vendo meu sorriso amarelo e meus olhos retraídos, Chico me deu um tapinha no ombro e falou: “Uau, David! Que demais! Não vai me dizer que você correu tudo isso pra me alcançar? Cara, você é um atleta! O que acha de um passeio rápido de caminhão? Será que seus pais vão brigar?”
A verdade é que eu não tinha a mínima ideia do que eles achariam, mas respondi instantaneamente com a cabeça que não enquanto sentia um comichão de alegria percorrer todo o meu corpo. Meus dedos miúdos se entrelaçavam dentro da botinha camuflada do Rambo. Era impossível desfazer o sorriso. Fiquei tão emocionado e banzado que percebi o maxilar acalorado. Chico e seus dois companheiros de labuta se divertiam com a minha reação. Notei pelo riso fácil e espalhafatoso. Em poucos segundos, me vi sobre uma enorme barra de apoio frisada com uma largura que garantia segurança para pés até quatro vezes maiores que os meus.
Chico pediu que eu apoiasse as mãos miúdas com firmeza numa barra lateral tão longa e maciça para a minha pequenez que era impossível fazer as pontas dos meus dedos encostarem na minha palma. Ao mesmo tempo, ele me segurava com uma das mãos que cobriam minhas costas quase que completamente. Eu me sentia imponente sobre a traseira do caminhão de lixo. Era como se aquela máquina de ferro fosse uma extensão da força que eu sonhara em ter.
Lembrei do Bumblebee da primeira geração de Transformers lançada na década de 1980, meu robozinho já velho que assim como o caminhão também era amarelo. “Sou o Bumbleblee! Sou o Bumblebee! Sou o Bumblebee!”, gritava euforicamente dentro da minha própria consciência. Queria mesmo era ficar pulando, só que não podia correr riscos nem preocupar ninguém. Naqueles menos de 200 metros até chegar em casa, nem o mau cheiro exalado por alimentos orgânicos podres, principalmente restos de ovos, legumes e tubérculos, me incomodou. Tudo parecia portentoso demais para que eu me preocupasse com algo tão liliputiano.
Em frente de casa, Chico me colocou no chão, pegou um saco grande sobre a lixeira, sorriu e seguiu sua jornada, acenando com uma luva puída e toldada. Ocasionalmente, Chico me trazia presentes. Não esqueço de um caminhãozinho de lixo e um tratorzinho que me deu, meus brinquedos preferidos ao longo de alguns meses. Minha mãe retribuía seu carinho com alimentos e roupas. Também destinava algo aos colegas de trabalho dele.
Um dia me vesti de Change Dragon, do Esquadrão Relâmpago Changeman, uma das minhas séries preferidas de tokusatsu, e sentei no meio-fio segurando a change fogo, minha pistola de plástico. Ao me ver, a feição de Chico mudou. Espavorido, se aproximou e colocou as palmas das mãos para a frente, na tentativa de se proteger. Se escondeu ao lado do caminhão duas vezes, mudando de posição, arqueando o corpo e abugalhando os olhos.
“Agora vou me aproximar… Por favor, não atire, David! Aqui é seu amigo Chico. Olhe, tenho balas 7 Belo. Vamos fazer uma troca. Você fica com as balas e eu com a minha vida, ok? Não vamos nos precipitar. Não sou nenhum Gyodai da vida”, argumentou, já de joelhos, numa interpretação inesquecível. Quando comecei a gargalhar, a direcionar a cabeça ao céu azul e límpido e encostar as duas mãos na barriga, deitando as costas na calçada, Chico riu junto e me entregou algumas balas.
Em seguida, sugeriu que eu jamais aguardasse o inimigo sentado, porque poderia ser surpreendido. “Tem que se manter em estado de vigília, meu amigão!”, recomendou. Com o tempo, meu sonho de curto prazo passou a ser galochas como as do Chico. Insisti tanto que minha mãe me deu um par. Eu as calçava e me sentia indômito ao me ver no espelho – mais imponente que a turma do Capitão Planeta. No meu universo diminuto, uma galocha não era apenas uma galocha. Era a projeção de um mundo de fantasias, onde eu me via mais alto, mais forte, mais matreiro, mais inteligente e mais rápido. Nunca que eu a consideraria somente como um calçado de borracha. Seria uma blasfêmia.
A primeira vez que me viu de galochas, Chico assobiou para os dois colegas em cima do caminhão, apontou pra mim e gritou: “Olhem, pessoal! O David agora faz parte do nosso clube. Tá preparado pra ser um herói na selva urbana de Paranavaí!” A frase me marcou tanto que eu não queria mais tirar as galochas dos pés. Pedia até para ir com elas à Casa Moreira, na Rua Manoel Ribas, fazer compras com minha mãe. Ela deixava, claro que não sempre, e eu acreditava, com o respaldo do meu candor, que mostrava ao mundo que eu era um grande aventureiro. Afinal, no meu ideário meninil, eu fazia parte da casta dos heróis que usavam a força para livrar a cidade dos monstros que eu idealizava a partir do lixo.
Porém, num dia de 1991, eu estava sentado em uma mureta. O caminhão passou e Chico não saltou. Ele não estava lá. O vácuo da sua ausência parecia alargado por uma corrente de ar que agitava o vazio de um espaço inabitado na traseira do caminhão amarelo. Passou mais um mês e Chico não apareceu. Então comecei a aceitar o fato de que talvez eu nunca mais o visse.
Numa manhã de outono, eu estava na cozinha comendo um pão francês quando ouvi alguém batendo palmas. Caminhei até o portão e levei um susto ao ver Chico mais magro e sem o seu tradicional uniforme de herói urbano. “Bom dia, David. Desculpe interromper o seu café da manhã. Um colega me falou que você ainda me espera em frente à sua casa. Perdão por não ter avisado antes, meu querido amigo. Me colocaram para trabalhar longe da sua casa, em outra cidade. Mas veja que legal! Agora tenho meu próprio caminhão e posso ajudar muito mais pessoas”, justificou.
Fiquei feliz em vê-lo e o abracei. Seus olhos, assim como os meus, ficaram úmidos e lustrosos como bolas de bilhar. Antes de nos despedirmos, ainda disse: “David, deixa eu te contar uma coisa talvez interessante. Sabe por que recolhi lixo por tanto tempo? Porque era o que meu pai fazia e o pai dele também. O lixo nunca foi ou vai ser apenas lixo. Nele encontro sonhos, desejos, desilusões, vazios e esperanças de tanta gente. Em cada saco há pedacinhos de vida, amores, escolhas, preocupações, bem-querença, alegria, tristeza e insegurança. No lixo vejo a fragilidade e a força dos seres. É a minha escola, meu amigo. Nunca deixe de ver coração naquilo que nos toma pela razão, porque uma vida que não irradia emoção é o gatilho da solidão.”
Depois daquele dia, nunca mais vi Chico. Fiquei sabendo meses depois que ele se mudou para Curitiba. Motivado por boa intenção, mentiu sobre a história do caminhão. Segundo a empresa, foi demitido porque suas brincadeiras atrasavam o serviço, custavam tempo. A verdade é que Chico perdeu o emprego porque era humano, demasiado humano.
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O amor e a romã
Jamais entendi como o amor, tão colorido simbolicamente, poderia ter compleição tão funesta
Ao longo da vida, sempre ouvi alguém dizendo que o amor, confundido com paixão, é arrebatador, como se feito de fagulhas de insipiência. Quando chega até você o cega e o torna avesso ao juízo e à razão das coisas serenas. O consome de forma inesperada, deixando os lábios ressequidos como chão tracejado pela estiagem severa. Quantas histórias conheci de suicídio por amor; pessoas saltando de prédios, lançando carros contra árvores, se enforcando, consumindo estricnina e atirando contra a própria cabeça. Jamais entendi como o amor, tão colorido simbolicamente, poderia ter compleição tão funesta.
O amor não deve ser como o luto, um manifesto de pesar. Nem merece ser relacionado à morte se abarca na sua essência os destemores da luz. O coração que ama em abnegação só obscurece quando deixa de bater, este sim fato irremediável do nosso epílogo. Mas enquanto vive é corado e robusto como uma manga colhida em março. Está além do bem e do mal. O amor é belo na literalidade, na pureza de sua semântica. Nem por isso unilateral ou menos distorcido e depreciado por imperícia, fabulações e desconstruções de sentido.
Não que não haja dor no amor, afinal ela é inerente à vida e nos envia iterados sinais de que o sofrimento também dignifica a existência; ensina que somos pechosos, frágeis e efêmeros como todos os seres que habitam a Terra. Porém, um sentimento torna-se nocivo somente se assim o permitirmos. Pelo menos é o que me mostra a vida desde que comecei a reconhecer o seu enredamento e profundidade.
Com não mais que sete anos, eu morava com meus pais e irmão em uma velha casa na Rua Pernambuco. À época, uma parte da população de Paranavaí ainda tinha o costume de realizar velórios na sala da própria residência. Um dia, do outro lado da rua, a pouco mais de 50 metros de casa, caminhando e passando os dedos da mão direita pelo muro pintado com cal, parei em frente a um portão onde vi e ouvi pessoas num choro tacanho, conversando e coçando os olhos.
Estavam ao redor de um caixão preto tão lustroso que parecia um sapato desmesurado recém-engraxado. A sala era pequena e as pessoas, dependendo da estatura, quase roçavam o umbigo e o peito na cabeça da falecida para chegarem ao banheiro. Por causa da distância, eu não conseguia ver seu rosto coberto por um tecido níveo que mais lembrava um véu de noiva. Sabia que era mulher porque ouvi alguém dizer que a finada era a Dona Estela. “Ué, tão enterrando ela com pano de festa?”, me perguntei num rompante de espontaneidade e singeleza.
Na manhã seguinte, quando saí pra comprar pão, encontrei Seu Onofre, marido de Dona Estela, caminhando a passos lentos, rindo sozinho, e sem apontar os olhos para nada que o cercava nas imediações de uma padaria na Avenida Distrito Federal. Parecia num transe solene e talvez disparatado na concepção de alguns. Me aproximei, o cumprimentei, e num ato tipicamente irrefletido de criança, questionei: “Seu Onofre, por que o senhor tá rindo se sua mulher morreu ontem?”
Então ele continuou em silêncio por três ou quatro segundos enquanto me observava e ajeitava o penúltimo botão superior de uma camisa florida, dessas que os aposentados usam quando saem de férias para um paraíso tropical. Sua tez e seus olhos reluziam tanto que eu podia ver o meu pequeno reflexo distorcido nas suas pupilas amendoadas e aveludadas.
“Olhe, David, você ainda é muito criança, não sei se vai entender, mas vou lhe revelar um segredo. Não me sinto feliz, só que me comprometi em reencontrar um novo sentido na minha vida. Antes de Estela falecer, ela sabia o quanto eu era dependente dela. Ela foi minha primeira e única companheira por mais de 40 anos, desde a adolescência. Então sabe o que ela fez quando ficou doente e lhe contaram que não viveria por muito tempo? Não se lamentou. Tirou um caderninho de dentro do criado-mudo, pegou uma caneta e planejou minha vida, meu dia a dia pelos próximos cinco anos. Ela sempre soube que sou relaxado. Disse que era pra eu seguir direitinho, assim não me sentiria perdido. Se antes eu conseguisse recomeçar uma nova vida, eu poderia abandonar o caderninho. Senão, bastaria reiniciar as tarefas. O primeiro dia é hoje. Dê uma olhada!”
Peguei o caderninho com as duas mãos e lá estavam as primeira sugestões. “Querido Onofre, meu grande amor, se levante amanhã, tome um bom banho, vista a camisa florida que está no primeiro cabide, a bermuda bege da segunda gaveta e as sandálias castanhas que estão na primeira fileira da sapateira. Vá até a padaria caminhando vagarosamente e sorria. Lembre-se da primeira vez que nos vimos, de quando nos casamos, de quando Laurinha nasceu. Não deixe de sorrir, mesmo que as pessoas o julguem. Ignore toda a negatividade. Mais cedo ou mais tarde esse exercício há de contagiar o seu coração, transformando a dor em uma nova forma de amor.”
Devolvi o caderninho e caminhamos até a padaria. Lá, me pagou um doce e uma sodinha. Preservou o sorriso a maior parte do tempo, inclusive quando me relatou as dificuldades que passaram nos anos 1950 em Paranavaí. “Nossa casinha era praticamente um ranchinho. A gente não tinha geladeira, então só podia comprar alimento que não estragasse rápido. Éramos jovens, muito jovens, só que felizes num lugarzinho no meio do mato”, disse, já com os olhos marejados.
Na volta, notei que durante o trajeto Seu Onofre acariciava com esmero a aliança na mão esquerda. Havia um silêncio morno e abafado como o de um escafandro que se misturava aos sons de motos, carros e caminhões atravessando a Avenida Distrito Federal. De repente, a rescendência desconfortável daquela fugaz amostra de poluição foi ofuscada pela olência uniforme e sutil de um buquê de lírio azul transportado a pé por uma jovem funcionária de uma floricultura. “Era a preferida da Estela. Ela chamava de Xodó Azul”, comentou Seu Onofre num riso lacônico.
Em frente ao portão de sua casa nos despedimos. Quando eu estava me afastando, gritou meu nome e pediu que eu o aguardasse. Logo voltou trazendo nas mãos de palmas rosadas uma porção de romãs colhidas no quintal. “Que nunca falte amor na sua casa, assim como nunca faltou na minha”, falou com um lhano sorriso. Continuei visitando Seu Onofre até 1993, quando morávamos no Jardim Progresso. Com o tempo, minha rotina mudou e a dele também, até que perdemos contato.
Um dia, em 2002, recebi uma carta assinada pela sua filha Laurinha que vivia em Curitiba há mais de 15 anos. Achei até que a correspondência foi enviada por engano, pois já não me recordava dela. Quando abri o envelope, encontrei sementes de romã, trazidas da Palestina, e uma pequena carta. “Meu querido e bom amigo David, o que morre hoje, renasce amanhã, desde que o coração assim o aceite. Saiba que nem mesmo o Mar Morto conseguiu ofuscar o perfume das romãs que irradiavam até Jericó”, escreveu Seu Onofre.
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Quando Alex Kidd nos inspirou a viver
“Por um momento, quis ser admirado por explodir tijolos e saltar sobre balões vermelhos”
A primeira vez que joguei videogame foi em 1988, quando meus pais trouxeram para casa um Atari 2600. O ligávamos em uma TV com caixa de madeira de 21 polegadas. Eu achava o controle engraçado porque me lembrava o estribo de uma bicicleta na posição vertical. No dia do teste, minha empolgação era tão grande que eu não conseguia parar de sorrir. Parecia o Animal do desenho animado Muppet Babies. Também tive uma repentina crise de comichão que só desapareceu depois de 30 minutos jogando Enduro. Para mim, aqueles carrinhos que mais se assemelhavam com aranhas deformadas representavam a mais fidedigna perfeição. “Olha, Douglas! Legal demais, né? Tem até disputa na neve”, comentava com meu irmão mais velho.
Depois de Enduro, conhecemos uma infinidade de outros jogos, como River Raid, H.E.R.O, Keystone Kapers, Space Invaders, Pac-Man, Pitfall, Boxing, Ice Hockey, Freeway, Sneak ‘n Peek, Spider-Man, Adventure, Donkey Kong, Skiing e Mario Bros. O que facilitava o acesso eram os cartuchos multijogos. A maior diferença de se jogar Atari quando o videogame ainda estava no auge era a oportunidade de ver as reações de crianças, adolescentes e adultos. Não era difícil testemunhar pessoas chorando de alegria ao jogar pela primeira vez. O videogame também funcionava como um tipo peculiar de “medidor de solidariedade”. Ou seja, você podia perceber facilmente quem eram seus amigos, colegas e conhecidos mais egoístas. Alguns chegavam a chamar vizinhos apenas para assistir aos jogos, sem oferecer qualquer possibilidade dos convidados encostarem as mãos em um controle.
Participei de um episódio assim na casa do garoto mais rico do meu bairro em 1989. Detentor de um Master System novinho, ele fez questão de chamar a minha atenção e a de mais outras seis crianças. Na tarde daquele dia, brincávamos de esconde-esconde nas imediações de um terreno baldio perto da minha casa, na Rua Pernambuco, em Paranavaí. “Olha, meu pai trouxe pra mim dos Estados Unidos o melhor videogame do mundo. É um Master System. Hum…aposto que nunca ouviram falar dele, né? É muito, muito melhor do que o seu Atari. Quem quiser pode ir lá em casa daqui meia hora que vou mostrar como ele é perfeito”, disse o menino. Imediatamente, sem se despedir, virou as costas e foi embora.
Na hora, nem me importei com o tratamento dado pelo garoto. Ignorei a sua altivez, arrogância e pedantismo. Me preocupei apenas com as palavras Master System. A princípio, o resto foi descartado como se eu jamais tivesse ouvido qualquer outra frase saída de sua boca descarnada. Aquele nome mexeu tanto com a nossa imaginação que paramos de brincar de esconde-esconde. Sentamos no meio-fio e comentei em tom de contemplação: “Master System parece um nome bonito, né? Maaa…sss…teer…Syyysss….teeem. Aaaah, mas será que existe coisa melhor que Atari? Atari é Atari!” Na nossa turma de jovens de quatro a sete anos, todo mundo concordou. Alguns balançaram a cabeça e outros emitiram apenas um monossilábico “aham” seguido por risos. Chegada a hora, fomos até a casa do “Pozinho”, um apelido oculto que atribuímos àquele garoto que vivia no palacete branco da esquina. Como passamos boa parte da tarde brincando de esconde-esconde, escalando árvores e atirando com pistolas de água, não estávamos bem limpos.
Quando chegamos à esquina, do alto de seu quarto, contíguo a uma sacada romanesca, Pozinho nos observou com um olhar displicente e sobranceiro. Talvez nos enxergasse como formigas obreiras que estavam ali para cultuá-lo, levá-lo ao êxtase com nossa inferioridade reafirmada na falta de acesso a um videogame, um objeto de desejo recém-despertado em nós por ele mesmo, na gana de tentar ferir nossos sentimentos. Sim, lá em cima estava uma criança de seis anos, mas com anseios perniciosos tão sobressaltados que despertava admiração até em adolescentes celerados. Assim que Pozinho se afastou da janela, fiquei na ponta dos pés para acionar o interfone. Martinha, uma senhora negra, alta, simpática e de pele reluzente que trabalhava como empregada doméstica na casa há mais de 20 anos, destravou o portão. Quando coloquei meus pés sobre um tapete felpudo dourado que ornava o antepasso da sala, percebi como meu tênis chinesinho branco estava demasiado sujo.
Os cadarços encardidos me deixaram constrangido ao ver tudo brilhando no interior daquele cômodo. Um aroma suave e cítrico, simbolizando a mais devotada das limpezas domésticas, amplificava o meu pré-remorso. “Que vergonha! Ela limpou aqui agora”, pensei comigo mesmo. No canto, um vaso grande com lírios-da-paz, uma das plantas preferidas da minha mãe, realçava ainda mais o perfume do ambiente. Ao ver minha hesitação, Martinha disse que não tinha problema nenhum. “Entre, menino! Não vão ser seus pés miúdos e menores que a palma da minha mão que vão atrapalhar o meu trabalho. Pode ficar sossegado!”, garantiu ela com um sorriso tão confortável que fez sucumbir o meu mal-estar. Na mesma esteira, seguiram-me as outras crianças. Martinha então nos levou até o quarto de jogos do Pozinho, situado no terceiro piso.
Éramos como os sete anões seguindo os comandos de Martinha, a nossa laboriosa Branca de Neve nos guiando aos aposentos da Rainha Grimhilde. Antes de abrir a porta e se despedir, ela recomendou que ignorássemos o jeito grosseiro e a metidez do juvenil patrão. Assim que entramos, Pozinho nos deu uma olhadela e comentou: “Todos vocês vieram? Certo! Só não fiquem muito perto de mim nem da TV porque preciso de espaço pra me concentrar.” Olhamos uns aos outros e seguramos o riso com as mãos, ignorando nossas unhas com resíduos de terra e de cascas de árvore. Sem perceber nossa reação, o garoto ligou o videogame e se acomodou em uma confortável poltrona inclinável que trazia uma etiqueta com a bandeira dos Estados Unidos. Ao alcance de sua mão direita, havia uma bandeja com Dadinho, Ice Pop, balas Fizz, pirulitos do Zorro, 7 Up e Sukita.
Ensaiando uma centelha de educação, sugeriu que sentássemos onde quiséssemos. Não havia lugar para todo mundo, então fomos todos para o chão. Em poucos minutos, nos mostrou Alex Kidd, um jogo de plataforma em que um garoto orelhudo destrói pedras com os punhos. Nossos olhos brilhavam ao ver tantas cores em um game. O que era aquilo? Quem era aquele herói cabeçudo serpenteando por bosques e cavernas? Pensei que estivesse sonhando. Quis morar naquele quarto para sempre. Não! Por um momento, quis viver dentro do jogo, sendo admirado por explodir tijolos e saltar sobre balões vermelhos. Como o jogo estava em inglês, Pozinho fez questão de dizer sem base alguma que ele entendia tudo e nós não entendíamos nada.
O ignoramos e trocamos olhares maliciosos. Nos comunicamos muito bem sem precisar abrir a boca. Havia um desejo unânime, não verbalizado, de tapar a boca de Pozinho com esparadrapo e trancá-lo dentro do guarda-roupa. Jogaríamos Alex Kidd por algumas horas e então o soltaríamos. Sim, na teoria parecia plausível. Só que a realidade era muito diferente. Não tínhamos coragem, nem achávamos aceitável fazer algo assim. Fabiano e Mariana, dois da nossa turma, não resistiram, se levantaram e pediram para jogar. Pozinho desdenhosamente declinou a proposta com um olhar de desprezo seguido por uma careta de nojo. A negativa os emocionou sobremaneira que ao longe se podia notar a transparência e o aspecto orvalhado de seus olhos. “Rá! Até parece! Chamei aqui só pra vocês passarem vontade mesmo. Agora podem sair daqui. Tchau!”, declarou sem velar o sorriso sardônico e a intenção capciosa.
Nos levantamos, abrimos a porta e descemos os degraus. Olhei para trás e mais uma vez ele estava nos observando. Se regozijava com a nossa pequenez, já que a sua anormal baixa estatura para alguém de seis anos não permitia tal comportamento tão empertigado quando estávamos de pé diante dele e sobre o mesmo piso. Para quebrantar sua satisfação, acenei, sorri e agradeci o convite. Lá embaixo, a iluminada Martinha nos aguardava com doces e refrigerantes. “Olha o que separei pra vocês. Coloquem em seus bolsos ou escondam em suas roupas e vão com Deus”, sugeriu numa despedida afetuosa. De volta ao meio-fio, entre goles de Soda Limonada, dividimos sorvete fura bolo, arrozinho em flocos, azedinho de morango e balas. Ao escurecer, fomos para casa. No dia seguinte, eu soube que três amigos adoeceram de tanta vontade de jogar Alex Kidd no Master System. Ficaram febris e passaram dias sem consumir alimento sólido.
Irritado, me senti tentado a retornar à casa de Pozinho para destruir o seu videogame a marteladas. Consegui me controlar e também evitei de contar a algum adulto o que aconteceu. Ninguém da nossa turma relatou nada. Uma semana depois, já não nos importávamos muito com o Master System. Continuamos jogando Atari, realizando pequenos torneios de jogos de corrida e luta. Quando enjoávamos, saíamos para escalar árvores, colher frutas ou brincar de esconde-esconde, pega-pega e “balança, caixão”. Em frente à Sanepar, subíamos em um muro alto que permitia uma visão privilegiada da baixada do Jardim Paulista, onde mais tarde desceríamos com carrinhos de rolimã.
Azul e límpido ou enuviado e chovediço, o céu nunca nos mostrou limites, assim como as sibipirunas, os ipês, as sete-copas e os jamelões que se refaziam conforme as estações do ano. Os muros e as escadas cada vez maiores também reconduziam nossas aventuras. As novas construções instigavam nossas visitas tanto quanto as casas e os barracões abandonados. Cães de diversos tamanhos ainda nos perseguiam, não por maldade, mas porque no dia a dia eles eram personagens dos jogos de plataforma que eram nossas vidas. No final de 1989, Pozinho ainda me observava ao longe. Tentando me provocar, um dia balançou o controle retangular do Master System para fora da sacada do seu quarto. O cumprimentei e sorri brevemente. Não, não quis ser irônico. Senti pena e compaixão ao ter certeza de que enquanto ele simulava ser um personagem aventureiro de um videogame, nós éramos felizes por sermos os Alex Kidd do mundo real.
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