David Arioch – Jornalismo Cultural

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O dilema do chouriço

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Fotos: Jo-Anne McArthur/Deli Portugal

Alexandre Dumas escreveu no “Grand Dictionnaire de Cuisine”, de 1873, que o chouriço de porco tem, em todo o caso, todas as más qualidades desse animal, e a maneira como é preparado o torna ainda mais indigesto. Permita-me discordar. Creio que o chouriço carrega a tradição sedimentada na centelha da barbárie, e esta não diz respeito às “péssimas qualidades” do suíno, mas sim do ser humano, embora isso não signifique que o faça amiúde conscienciosamente.

E a indigestão talvez seja conchavo da ferocidade e da teimosia projetando franca manifestação. Esqueça! Deixe me perguntar. Você já foi a uma pequena fábrica de chouriço? Ah! Normalmente o animal não é seviciado, morto e destrinchado tão distante do local onde se prepara o embutido – uma iguaria à base de gordura, sangue e pedaços de carne temperados com uma pequena diversidade vegetal. Vísceras! Vísceras! Entranhas! Cabidelas! Sortidas! Fornidas! Envolvidas…Tudo aquilo que nos enoja em seu estado natural, cruento, porém honesto.

Não parece-te um ritual? O sangue como elemento axial; aquele sangue soalheiro que verte como calor de água termal e torrente de bica de mina – sem igual. A tradição diz que é mais saborido quando colhido enquanto o animal respira, barafusta-se, agoniza e luta pela vida no tenro desconhecimento da impossibilidade. Quiçá, entrementes perguntaste: “Por que então me alimentaste? Me abraçaste? Deste-me um nome? O que fui para ti?” Pobre animal, nunca imaginou que a mão que afaga é a mão que apaga. Quem se importa? Quem come, pretere, omite, anui? Hã? Será? Veras?

Se o porco for morto sobre a mesma mesa em que o chouriço é preparado? Sem dúvida, sabor sui generis! “Tremendo!”, berram os lambe-beiços. Imagine só. Lanham as tripas do porco para embalá-lo em novas ou velhas tripas – orbiculares, unímodas. Talvez dele mesmo, talvez d’outros. Ou talvez artificiais caso o freguês não queira ter contato nu-a-nu com as “tripas” da vítima. Ah, alegórica sensibilidade…Claro, pelo menos não manualmente, no rostir de dedos. Já garganta abaixo é outra história, pois não?

 

 





 

Bashevis Singer: “Não sou vegetariano pela minha saúde, mas pela saúde dos animais”

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“Vou continuar sendo vegetariano, mesmo que o mundo inteiro comece a comer carne”

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Singer se tornou vegetariano por compaixão aos animais (Foto: Reprodução)

Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1978, o escritor polonês Isaac Bashevis Singer foi uma importante voz em defesa dos direitos dos animais no século 20. Vegetariano, o autor de clássicos como “A Família Moscat”, “O Mágico de Lublin”, “Spinoza da Rua do Mercado” e “Gimpel O Tolo”, abordou o animalismo em muitas de suas histórias. Entre as mais impactantes estão “O Açougueiro”, “O Escritor de Cartas”, “Sangue” e “Debaixo da Faca”.

Em “O Açougueiro”, que assim como muitos contos de Singer possui elementos surrealistas, ele narra os conflitos de um açougueiro kosher que reconhece a própria negação moral na morte de cada animal reduzido à carne, além da legitimação da injustiça e da naturalização da crueldade. A história se passa no século 19, em um shtetl, ou seja, em uma cidadezinha de população predominantemente judia.

No matadouro, o protagonista começa a ter devaneios com vacas e galinhas se preparando para uma retaliação. Elas querem se vingar por toda a violência perpetrada contra os de suas espécies. Em um determinado momento, os animais berram: “Todo mundo pode matar e todo assassinato é permitido.” Embora tenha sido publicado na revista The New Yorker em 25 de novembro de 1967, “O Açougueiro” continua sendo um conto bastante atual, em que o escritor judeu aborda a realidade da produção de carne e atua como uma consciência moral, uma luz para a sociedade.

Singer dedicou pelo menos 35 anos de sua vida ao vegetarianismo, qualificado por ele como a sua própria religião. Sua principal motivação era a compaixão pelos animais. Antes de falecer em 24 de julho de 1991, aos 88 anos, o polonês concedeu uma entrevista ao escritor estadunidense Rynn Berry que o questionou se ele havia se tornado vegetariano por questões de saúde. “Não sou vegetariano pela minha saúde, mas pela saúde dos animais”, respondeu.

Isaac Bashevis, que escrevia principalmente em iídiche, não raramente questionava em seus contos a hipocrisia humana de consumir carne, e a incapacidade de ponderar sobre o real custo dela. Exemplo disso é um excerto do conto “Sangue”, do livro “Breve Sexta-Feira”, lançado em 1963.

Segurando o ganso, Reuben olhou Risha com intensidade, o olhar subindo e descendo e, afinal, detendo-se no peito. Ainda a fitá-la, golpeou o ganso. As penas brancas tingiram-se de sangue. O ganso torceu o pescoço, ameaçador, e súbito pulou, conseguindo voar alguns metros. Risha mordeu o lábio.

— Dizem que vocês nascem com instinto de assassinos, mas tornam-se açougueiros — disse ela.

— Se é tão delicada assim, por que me trouxe as aves?

— Por quê? Ora, é preciso comê-las!

— Pois para comer carne é preciso matar.

"O Açougueiro", um dos contos em que o escritor questiona a relação do ser humano com os animais (Arquivo: The New Yorker)

“O Açougueiro”, conto em que o escritor questiona a má relação do ser humano com os animais (Arquivo: The New Yorker)

Em “O Escritor de Cartas”, publicado na revista The New Yorker em 13 de janeiro de 1968, Singer narra a história de Herman Gombiner, um sobrevivente do Holocausto que vive em companhia de um rato. O vínculo entre os dois é tão intenso que Gombiner desenvolve uma consciência animalista: “O que eles sabem? Todos esses filósofos, todos os líderes do mundo? Convenceram-se de que o homem, o pior transgressor de todas as espécies é a coroa da criação. Todas as outras criaturas foram criadas apenas para fornecer-lhe comida e pele, para serem atormentadas e exterminadas. Em relação a elas, todas as pessoas são nazistas. Para os animais, há uma Treblinka eterna.”

O escritor polonês viu semelhanças entre a realidade das vítimas do Holocausto e dos animais transformados em comida, isto porque os dois viveram a experiência do confinamento em espaços apertados, sendo transportados sem água e alimento. “A diferença é que os nazistas tentaram varrer os judeus da face da Terra enquanto os pecuaristas visam sempre aumentar a produção e a quantidade de vítimas”, avalia o escritor Jeffrey Cohan, autor de “Isaac Bashevis Singer, Yiddish Food Writer”.

“Três açougueiros matavam aves sobre uma pia de mármore que refletia a luz de um lampião de querosene, estendendo-as depois a depenadores, que as depenavam e amontoavam-nas, ainda vivas, num cesto.” Excerto de “Debaixo da Faca”, página 66 de “Breve Sexta-Feira”.

De acordo com Isaac Bashevis Singer, quando um ser humano mata um animal para comer, ele negligencia sua própria fome de justiça. “O homem reza por clemência, mas não se dispõe a estendê-la aos outros. Por que então ele deve esperar misericórdia de Deus? É injusto esperar algo que você não está disposto a oferecer”, registrou no texto publicado como prefácio do livro “Diet for Transcendence: Vegetarianism and the World Religions”, de Steven Rosen, de 1987.

Questionado sobre o que diz a Bíblia em relação à sua filosofia de vida, Singer argumentou que a defesa do vegetarianismo pode ser encontrada no Velho Testamento. “Às vezes, eles dizem que Deus quer que animais sejam sacrificados e mortos. […] Mas eu acredito que Deus é sábio e mais piedoso do que isso. E há interpretações das escrituras religiosas dizendo que o vegetarianismo é um grande ideal. Se as pessoas aceitam ou não a interpretação do que é ser vegetariano no contexto da religião, isso não me importa. […] Vou continuar sendo vegetariano, mesmo que o mundo inteiro comece a comer carne”, declarou o premiado escritor na obra “Diet for Transcendence”.

Para Bashevis Singer, ser vegetariano é um protesto, um ato de discordância em relação ao status quo. “Poder nuclear, fome, crueldade, nós temos que nos posicionar contra essas coisas”, recomendou. Mas nada o entristecia mais do que o sofrimento animal. Citava como exemplo o fato dos animais serem capazes de demonstrar benevolência mesmo diante de uma faca ou outra arma a ser usada para matá-los.

o homem não tem o direito de matar um animal e tortura-lo simplesmente para “encher sua barriga de carne” (Foto: Reprodução)

“O homem não tem o direito de matar um animal e torturá-lo simplesmente para ‘encher sua barriga de carne'” (Foto: Reprodução)

“Isso me dá um sentimento de miséria e às vezes de raiva em relação a Deus. Você precisa de sua glória para estar conectado com o sofrimento de tantas criaturas ingloriosas, que apenas gostariam de passar alguns anos em paz. Sinto que os animais estão tão confusos quanto nós, exceto que eles não são capazes de comunicar isso”, desabafou em entrevista à revista Newsweek em 16 de outubro de 1978, após receber o Prêmio Nobel de Literatura.

Segundo o escritor polonês, o homem não tem o direito de matar um animal e torturá-lo simplesmente para “encher sua barriga de carne”, ainda mais levando em conta que os animais podem sofrer tanto quanto os seres humanos. Na realidade, a sensibilidade e as emoções animais são ainda mais intensas porque eles não têm a capacidade de verbalizá-las. “Vários religiosos e filósofos tentaram convencer seus discípulos e seguidores de que animais não são nada mais do que máquinas sem alma, sem sentimentos. No entanto, qualquer pessoa que viveu com um animal, seja um cão, um pássaro ou um rato, sabe que esta teoria é uma mentira descarada, inventada para justificar a crueldade”, critica.

“O vento não era dos mais fortes, e no entanto Cunegunde sabia de onde vinha. Tinha o poder de sentir o odor de carvões fumegantes, carne e outra coisa oleosa e rançosa, cuja fonte somente ela podia perceber. Sua boca desdentada franziu-se num arreganho: “É uma pestilência, uma pestilência. A aproximação da morte…” Excerto de “Cunengunde”, página 138 de “Breve Sexta-Feira”.

Isaac Singer jamais deixou de se surpreender quando lia sobre humanistas, poetas altamente sensíveis, pregadores da moralidade e benfeitores de todos os tipos que sentiam prazer em caçar – perseguindo pobres lebres e raposas, e ensinando seus cães a fazerem o mesmo. “Pessoas dizem que quando se aposentar vão se dedicar à pesca. Falam isso com um entendimento de que  a partir de então não farão mais mal a ninguém. Como se uma época de caridade e tranquilidade fosse começar em suas vidas. Nunca lhes ocorre por um momento que esses seres inocentes vão sofrer e morrer por causa de um esporte ‘inocente’. Às vezes, tenho medo de que a caça aos seres humanos também se torne um esporte”, lamentou.

No livro “Food for the Spirit: Vegetarianism and the World Religions”, de Steven Rosen, lançado em 1987, Singer afirmou que os seres humanos não terão paz enquanto continuarem derramando o sangue dos animais. “Foi necessário um pequeno passo baseado na matança de animais para que fossem construídas as câmaras de gás de Hitler e os campos de concentração de Stalin. Todas essas ações foram praticadas em nome da justiça social. Não haverá justiça enquanto o homem empunhar uma faca ou outra arma para destruir seres mais fracos que ele”, queixou-se. Por outro lado, o escritor reconheceu que sempre vão existir pessoas dispostas a protestarem contra a tortura e a matança de animais.

“Antes de morrer, chamou o rabi e os sete anciãos e informou-lhes que seu nome era Reuben, o açougueiro, com quem Risha cometera pecados. Durante anos vagueara ele de cidade em cidade, sem comer carne, jejuando às segundas e quintas-feiras, usando um saco à guisa de camisa e arrependendo-se de suas abominações.” Excerto de “Sangue”, página 31 do livro “Breve Sexta-Feira”.

Saiba Mais

Isaac Bashevis Singer nasceu em 21 de novembro de 1902 em Leoncin, na Polônia, e faleceu em 24 de julho de 1991 em Surfside, Flórida, nos Estados Unidos, em decorrência de um acidente vascular cerebral (AVC).

Em Tel Aviv, em Israel, foi construído o Isaac Bashevis Singer Humane Education. O centro, que possui uma extensa biblioteca e uma grande videoteca, faz um trabalho de prevenção à crueldade contra animais. A entidade possui um programa específico para educar crianças judias e árabes sobre como elas podem ajudar os animais.

Referências

Singer, Bashevis Isaac. Breve Sexta-Feira (1963). Tradução de Hélio Pólvora. Livraria Francisco Alves Editora (1978).

Singer, Bashevis Isaac. The Collected Stories of Isaac Bashevis Singer. Farrar, Straus and Giroux (1983).

Noiville, Florence. Isaac B. Singer: A Life. Northwestern University Press (2008).

Berry, Rynn. Famous Vegetarians and Their Favorite Recipes: Lives and Lore from Buddha to the Beatles. Pythagorean Publishers (1993). Eight Printing (2003).

Rosen, Steven. From Food for the Spirit: Vegetarianism and the World Religions. Bala Books (1987).

Rosen, Steven. Diet for Transcendence: Vegetarianism and the World Religions (1987). Torchlight Publishing; Revised Edition (1997).

Cohan, Jeffrey. Isaac Bashevis Singer, Yiddish Food Writer (20 de novembro de 2012). Disponível em http://forward.com/food/166228/isaac-bashevis-singer-yiddish-food-writer/

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Fazendo a diferença em Ruanda

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Violette Mutegwamaso, a mulher que superou uma guerra civil e o brutal assassinato do marido

Aldeia onde a então dona-de-casa vivia com a família (Foto: Rosemary Lycett)

Aldeia onde a então dona de casa vivia com a família (Foto: Rosemary Lycett)

Em 1994, milícias armadas entraram em conflito em Ruanda, na região dos Grandes Lagos da África. Pessoas de etnias hutu e tutsi tornaram-se inimigos mortais, se enfrentando pelas ruas à luz do dia. A motivação foi o desvio de recursos que deveriam ser utilizados para a reestruturação do país. Com a expansão do caos, iniciado na capital Kigali, 250 mil pessoas foram mortas. Ainda assim, muita gente acreditava que estava livre das zonas de guerra civil. Um exemplo era a dona de casa Violette Mutegwamaso que cuidava dos filhos enquanto o marido trabalhava na capital, a três horas de distância de Gahini, a pacata aldeia onde a família sempre viveu.

“Quando percebi que a guerra já estava ao lado, peguei meus dois filhos nos braços e fugi para a igreja mais próxima. Pensei que encontraria um santuário de paz. Na realidade, entrei em um pesadelo”, lembra. Atacados por uma milícia munida de facões e armas de fogo, muitos moradores de Gahini caíram mortos dentro da igreja. Para sobreviver, Violette deitou-se em um corredor e lambuzou os corpos dos filhos e o próprio com sangue para evitar que os agressores os matassem.

“Nos escondemos entre os cadáveres e nos fingimos de mortos. Ficamos naquela igreja por uma semana até que o exército ruandense apareceu para libertar a área”, conta. No episódio, sobreviveram apenas 20 pessoas dentre os mais de 700 escondidos no templo religioso. O marido de Violette não teve a mesma sorte. Foi brutalmente assassinado quando retornava para casa depois de mais um dia de trabalho.

Sobrevivente viu a morte de centenas de pessoas (Foto: Daniel Chen)

Sobrevivente viu a morte de centenas de pessoas (Foto: Daniel Chen)

A dona de casa se viu obrigada a assumir sozinha a criação do filho Eric, de cinco anos, e Angelique, de quatro anos. Demonstrando muita força, Violette ainda cuidou de um órfão que perdeu a família inteira na guerra. “Não tive quase apoio, mas tentei reconstruir a vida cultivando as terras de outras pessoas. O que ganhava não dava para alimentar a mim e meus filhos. Também não conseguia pagar a escola, comprar remédios e roupas. Foi muito difícil”, admite em tom emocionado.

Dez anos depois, Violette ouviu falar de um programa internacional de patrocínio para mulheres. Sem nada a perder, se matriculou e ganhou uma ajuda da estadunidense Liz Hammer, uma mãe de dois filhos comprometida em repassar 30 dólares por mês ao longo de um ano. A quantia que partia de Boston pode parecer ínfima para muita gente, mas Violette soube fazer a diferença com tão pouco.

Usou o dinheiro para investir em cerveja de sorgo. “Cheguei a produzir uma tonelada e meia do cereal. Ainda assim, a demanda era tão grande que tive de comprar sorgo de outros agricultores”, explica. De modo artesanal, Violette Mutegwamaso preparava de 150 a 180 litros de cerveja a cada três dias, lucrando cerca de 50 dólares por lote.

Com o dinheiro da bebida, investiu no plantio de feijão. Além de garantir alimento para a família, também conquistou uma nova fonte de renda. “Se o preço está alto, vendo o feijão para os vizinhos. Já quando cai, repasso no atacado para lojas e restaurantes”, revela. Enquanto a maior parte da população de Ruanda tinha uma renda mensal familiar de 260 dólares, segundo dados do Banco Mundial, Violette, superando todas as expectativas, já conseguia faturar 1,8 mil dólares com a safra de feijão.

Marido de Violette morreu durante a Guerra Civil de Ruanda (Foto: Frank Randall)

Marido de Violette foi uma das vítimas fatais da Guerra Civil de Ruanda (Foto: Frank Randall)

Mais tarde, ampliou ainda mais os negócios e contratou trabalhadoras locais para atuar no campo e no gerenciamento das atividades. Preocupada com a comunidade, fez um empréstimo bancário para instalar uma tubulação de água na aldeia, evitando que as mulheres tivessem de andar por horas até achar uma torneira. “Vivemos em um país onde apenas 20% das pessoas tem acesso à água potável, então muitas mulheres são obrigadas a carregar jarros pesados por longas distâncias”, desabafa.

Hoje, Violette Mutegwamaso é presidente de uma cooperativa de artesanato. Dentre os produtos mais populares está a cesta de paz que faz parte da cultura ruandense e normalmente é comprada para presentear a noiva e o noivo no dia do casamento. “Também vendemos bastante cerâmica e artigos de crochê. Fico feliz por reunir na mesma cooperativa mulheres de origem hutu, tutsi e twa. Elas sentam lado a lado para tecer fibras de sisal com técnicas tradicionais de desenho”, afirma Violette.

A cooperativa tirou da miséria muitas vítimas do genocídio e até mesmo pessoas que assumiram a autoria dos mais chocantes homicídios cometidos durante a Guerra Civil de Ruanda. “Se perdoei o assassino do meu marido por que não aceitaria aqueles que cometeram outros crimes?”, questiona, incitando reflexão.

Independência e sangue

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O que o mundo ignorou sobre a Guerra da Tchetchênia

Os enormes estragos da Guerra na Tchetchênia (Foto: Reprodução)

Os enormes estragos impostos pela guerra na Tchetchênia (Foto: Reprodução)

Nos anos 1990, a Guerra da Tchetchênia entrou para a história como um dos grandes momentos de selvageria e carnificina da humanidade, chegando a ser comparada com a Segunda Guerra Mundial. O conflito foi desencadeado ao Sul da Rússia, desestabilizando completamente uma região ocupada por uma população castigada por condições precárias de vida.

A primeira fase da Guerra da Tchetchênia teve início em 1994, quando tropas russas atacaram indiscriminadamente cidades e vilas. Tudo em represália à tentativa dos tchetchenos de serem independentes e criarem um estado autônomo. Os soldados russos não hesitavam em matar e estuprar civis, além de saquear e queimar residências e lojas. O trunfo da Mãe Rússia eram as grandes formações de aviões e tanques com artilharia pesada que em poucas horas causavam enormes estragos.

Nem mesmo as crianças eram poupadas, tanto que a beligerância é lembrada como um momento histórico de revelia aos direitos humanos e às leis de guerra. Sobre o assunto, até hoje o mundo e a grande imprensa pouco se manifestou, segundo o jornalista estadunidense Barry Renfrew que por muitos anos atuou como correspondente de guerra da Agência Associated Press.

Matar ou morrer por um ideal

Tchetchenos orando antes da batalha (Foto: Reprodução)

Tchetchenos orando antes da batalha (Foto: Reprodução)

A guerrilha tchetchena se articulou para dar o troco nos opressores e conseguiu. Mais motivados e bem preparados que os russos, os guerrilheiros lutavam pelo nacionalismo e ódio étnico. O propósito era matar ou morrer por um ideal. Já os russos chegaram a um ponto em que estavam mais preocupados em sobreviver às investidas dos guerrilheiros do que vencer. “Foi uma guerra tão selvagem que não há justificativas para explicá-la”, comenta Renfrew que assistiu de perto o constituído governo democrático russo buscar no seu passado de ferocidade medieval e totalitarismo os métodos mais cruéis para punir o povo da Tchetchênia.

Enquanto os russos viam os tchetchenos como selvagens traiçoeiros e criminosos, os tchetchenos encaravam os russos como conquistadores cruéis e espoliadores de sua pátria. “A Rússia é uma colcha de retalhos formada por muitos grupos étnicos que foram conquistados à força. E todo governo russo, independente de ideologia, sempre acreditou que a preservação desse império deve ser mantida a qualquer custo”, diz o jornalista. A dissolução da União Soviética já havia sido encarada como um pesadelo que feriu profundamente o orgulho russo, então a possibilidade de perder qualquer território, por menor que fosse, era algo inaceitável.

Barry Renfrew: "Para eles, ser independente é um fato indiscutível da natureza"

Barry Renfrew: “Para eles, ser independente é um fato indiscutível da natureza” (Foto: Reprodução)

Um povo nacionalista e marcial

Os tchetchenos, desde sempre conhecidos como um povo nacionalista e marcial, foram os últimos a serem conquistados pela Rússia Czarista do Século XIX. Certa vez, na década de 1940, em punição a não subserviência dos tchetchenos, o líder soviético Josef Stalin deportou centenas de milhares de homens, mulheres e crianças para a Ásia Central, onde a maioria morreu sob terríveis condições. A resistência dos tchetchenos chegou ao ápice em 1991, quando aproveitaram o colapso da União Soviética e declararam independência.

“Para eles, ser independente é um fato indiscutível da natureza, assim como as montanhas que cercam suas terras. Eles não precisam se justificar. E se você tenta questioná-los sobre isso, recebe um olhar reprovador”, explica Barry Renfrew. Quem também não se posicionou sobre essa guerra foi a Justiça Internacional. O Ocidente fechou os olhos para a Tchetchênia e tratou o conflito como uma questão interna sem base legal para intervenção externa, mesmo ciente de que os russos foram responsáveis pela morte de milhares de civis tchetchenos. “A verdade é que o Ocidente preferiu apoiar Boris Iéltsin e o seu dito governo pró-ocidental em Moscou. Se limitou a simplesmente fazer apelos por uma conduta ‘mais moderada’”, frisa o jornalista.

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A invasão russa se transformou em um desastre (Foto: Reprodução)

O papel do exército

Em dezembro de 1994, os soldados russos chegaram à Tchetchênia, onde se surpreenderam com a grande quantidade de mulheres e crianças tentando bloquear a entrada dos tanques. A maioria implorava para que voltassem para a Rússia. Um general decidiu suspender a invasão alegando que o papel do exército não era lutar contra os próprios cidadãos. Mas nada disso impediu a tragédia que estava por vir. Mais tropas russas invadiram a Tchetchênia em uma ação prevista como rápida e inofensiva para os civis.

“A situação saiu de controle e se transformou em um desastre. Os russos começaram a bombardear os assentamentos civis. Bem organizados, os tchetchenos capturaram aviadores inimigos e em alguns casos nem se deram o trabalho de transformá-los em prisioneiros. Para servir de lição, alguns foram mortos lá mesmo”, enfatiza Renfrew que viu o despreparo do exército russo nas investidas em solo tchetcheno.

Quando Grozny sucumbiu

Grozny, a capital, sucumbiu diante de uma truculenta batalha campal. Enquanto por terra a artilharia pesada dos tanques martelava a cidade. Pelos céus, os russos apelavam para as sequências de bombardeamentos aleatórios, como se não houvesse uma real estratégia de atuação. “A meta parecia ser pulverizar a cidade, pois estavam destruindo tudo”, lembra. Um fato curioso é que a maior parte de Grozny era ocupada por uma população de etnia russa. Desesperados, os sobreviventes fugiam para as aldeias vizinhas.

Grozny depois de destruída pelo Exército Russo (Foto: Reprodução)

Grozny depois de destruída pelo Exército Russo (Foto: Reprodução)

A capital foi a mais castigada porque a Rússia acreditava que a maior base insurgente se situava no coração de Grozny. Até aquele momento, os tchetchenos se refugiavam em grandes blocos de apartamentos, onde era possível reforçar as proteções, tornando-as mais resistente aos ataques. “Eu podia ver claramente que ambos os lados fariam de tudo para ganhar. O interesse maior era derrubar o inimigo”, comenta Renfrew. Embora contassem com menos armamento militar, os tchetchenos conseguiram render muitos inimigos. Aqueles que não foram mortos receberam bom tratamento e foram até liberados.

No Verão de 1996, o Kremlin declarou ao mundo que a vitória na Tchetchênia estava assegurada, após um ataque surpresa que culminou na captura de vários líderes do movimento separatista. “Não foi bem isso que aconteceu. A Rússia retirou suas forças da Tchetchênia para salvar a própria imagem. Não havia esperança de vitória militar”, avalia o jornalista estadunidense.

Capital foi a cidade mais castigada da Tchetchênia (Foto: Reprodução)

Capital foi a cidade mais castigada da Tchetchênia (Foto: Reprodução)

A imposição russa em 2000

A Rússia apenas conseguiu se impor sobre os separatistas em 2000, quando restaurou o domínio direto da Tchetchênia ao destruir Grozny. Resistentes, os rebeldes montaram uma base de ataque nas colinas. Com o passar dos anos, os tchetchenos sofreram grandes baixas. Uma das maiores foi a morte do líder separatista Aslan Maskhadov em março de 2005, seguida pela do comandante militar Shamil Basayev, assassinado em julho de 2006.

Entre as muitas crianças mortas pelos russos entre os anos de 1999 e 2000 estava Tapa Arskeyov, irmão de Dmitri Arskeyov. Tapa que tinha 12 anos acompanhava o pai Sergey, na tentativa de convencer um grupo de soldados russos a não invadir uma área escolar em Grozny. Foi uma tentativa em vão, embora um dos invasores tenha se sensibilizado com a situação.

“Outros que vinham atrás viram meu pai e Tapa com as mãos para o alto; apenas acenavam. Antes que os russos perguntassem qualquer coisa, atiraram contra suas cabeças. Os dois caíram mortos”, confidencia Dmitri Arskeyov que hoje tem 25 anos. Enquanto alguns russos ficaram chocados com o acontecimento, outros simplesmente riram e seguiram adiante, sem se importar com os corpos de pai e filho já caídos sem vida sobre o solo. Dmitri e a mãe Lydia tiveram de recolhê-los com um carrinho de mão.

Um criminoso de guerra no poder

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Kadyrov, líder pró-Rússia responsável por 75% dos crimes de guerra na Tchetchênia (Foto: Reprodução)

Em 2007, Ramzan Kadyrov, filho do ex-presidente Akhmad Kadyrov, assassinado em 2004, assumiu a presidência da Tchetchênia, tendo como principal apoiador o presidente russo Vladimir Putin. Na segunda fase do conflito, as forças russas e seus aliados tchetchenos foram acusados de abuso generalizado de civis, incluindo desaparecimentos, torturas e matança indiscriminada. Grupos de direitos humanos internacionais estimaram que até cinco mil civis foram sequestrados por forças russas ou pró-Rússia.

Muitos inocentes eram violentados brutalmente para assumirem ligação com a guerrilha, mesmo quando não tinham qualquer relação com grupos separatistas. As forças de Kadyrov, conhecida como Kadyrovtsy, são creditadas por levarem a cabo a maior parte das abduções, tanto que a Federação Internacional de Helsinki para Direitos Humanos descobriu que a Kadyrovtsy operava uma rede de prisões secretas na Tchetchênia. O grupo é responsável por 75% dos crimes de guerra cometidos contra os tchetchenos. Ainda assim, quando reassumiu a localidade, a Rússia fez questão de oferecer o cargo de presidente da Tchetchênia ao criminoso de guerra Ramzan Kadyrov.

Como reflexo da guerra, até hoje as forças russas de segurança da Tchetchênia permanecem mal treinadas, indisciplinadas e corruptas. E isso tem relação direta com a pouca responsabilidade pelos abusos que cometeram ao longo de muitos anos. “Todos os militares russos julgados pelos crimes na Tchetchênia foram absolvidos ou receberam penas modestas. Me recordo do episódio de dois soldados que saíram impunes, após matarem seis civis em 2005”, exemplifica o jornalista Barry Renfrew. A justiça russa aceitou a alegação de que os acusados seguiam apenas ordens superiores, algo incompatível com um verdadeiro julgamento de guerra.

A retaliação tchetchena

Conforme se intensificou o ataque aos civis tchetchenos, os guerrilheiros decidiram levar a guerra até a Rússia. Lá, os rebeldes usaram civis como escudos humanos. Um dos episódios mais marcantes foi registrado em outubro de 2002, quando os tchetchenos tomaram um teatro em Moscou durante a realização de um musical popular. Nesse dia, os próprios russos mataram os reféns quando liberaram um gás venenoso.

Guerrilheiros decidiram levar a guerra até a Rússia (Foto: Reprodução)

Dois anos depois, os separatistas fizeram mil reféns em uma escola na cidade de Beslan, o que acabou na morte de 330 pessoas. Também houve ataques a hospitais, concertos públicos e áreas residenciais. O comandante tchetcheno Shamil Basayev declarou em 2005 que era preciso fazer com que todos os russos sentissem a dor da guerra. “A responsabilidade é de toda a nação russa. Se a guerra não chega até eles individualmente, ela nunca terá seu fim na Tchetchênia”, disse Basayev.

A repreensão tardia

Os Estados Unidos e alguns outros países ocidentais tardiamente decidiram repreender a Rússia pela negligência quanto aos direitos humanos na guerra. Em 2000, o então presidente estadunidense George Bush ameaçou interromper a ajuda que dava à Rússia, caso continuassem matando mulheres e crianças – deixando muitos refugiados tchetchenos órfãos. Mas tudo mudou após o 11 de setembro de 2001 e o surgimento de alegações de que alguns comandantes da Tchetchênia tinham ligação com a Al Qaeda e outros grupos terroristas internacionais.

Espertos, os russos aproveitaram o sentimento anti-islâmico para vender a ideia de que a luta na Tchechênia tinha como objetivo evitar a criação de um estado islâmico terrorista. Mesmo recebendo severas críticas da União Europeia, a Rússia conseguiu sair vitoriosa da situação. Em pouco tempo, a questão quase desapareceu das pautas da política internacional. “A Rússia transformou a Tchetchênia em um país perigoso tanto para os tchetchenos quanto para os estrangeiros. Hoje em dia, infelizmente, há pouca discussão pública sobre a Tchetchênia”, lamenta Renfrew.

Sobre Barry Renfrew

O jornalista Barry Renfrew começou a trabalhar na Associated Press em 1978. Desde então, já atuou como correspondente de guerra em Sydney, Moscou, Joanesburgo, Seul, Islamabad, Cabul e Londres. Antes de se tornar um dos diretores mais importantes da AP, Renfrew foi chefe do escritório no Paquistão e trabalhou na sede da Associated Press em Nova York e também na Virgínia Ocidental.

 Curiosidade

Imagens do documentário “Melancholian 3 Huonetta” que mostra as consequências da Guerra da Tchechênia. A música é da banda de post-rock finlandesa Magyar Posse – Single Sparks Are Spectral Fires.

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