David Arioch – Jornalismo Cultural

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Augusto dos Anjos e a consciência vegetariana

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Na mão dos açougueiros, a escorrer/Fita rubra de sangue muito grosso/A carne que ele havia de comer!

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Augusto dos Anjos: “Cedo à sofreguidão do estômago. É a hora De comer” (Arte: Reprodução)

O paraibano Augusto dos Anjos, por vezes qualificado como simbolista, parnasiano e pré-modernista, era na realidade um poeta solitário que pouco se via no contexto de qualquer corrente literária. Assim como muitos outros artistas, sofria com o anacronismo em relação às suas obras, poemas que fundamentados num tipo peculiar de panteísmo místico já externavam uma conexão entre o homem e a natureza, algo pouco compreendido até o seu falecimento precoce, aos 30 anos. Embora não haja registros sobre os hábitos alimentares de Augusto dos Anjos, não há dúvidas de que ele foi um dos primeiros escritores brasileiros a abordar a consciência vegetariana em suas obras. Ou seja, foi muito além da escatologia, da consciência da morte enquanto tema.

Sofredor é o termo coloquial que melhor define a essência do poeta paraibano que raramente se via livre da cefaleia e do desconforto existencial. Dotado de exímia sensibilidade, Augusto dos Anjos cristalizava suas insatisfações, anseios e observações com a mesma angústia do simbolista francês Arthur Rimbaud. E talvez esse fosse o maior indicativo de que ele era humano, demasiado humano, como no conceito criado e publicado por Nietzsche em 1878.

Educado em casa pelo próprio pai, um profícuo homem das letras, Augusto se identificou na infância com a linguagem das ciências naturais, o que o motivou a criar seus primeiros sonetos aos sete anos. “Desde a mais tenra idade me entreguei exclusivamente aos estudos, relegando por completo tudo quando concerne ao desenvolvimento, numa atmosfera de rigorosíssima moralidade, da chamada vida física”, disse o poeta em entrevista concedida a Licinio Santos em 1912 e publicada no livro A Loucura dos Intelectuais em 1914.

E o rigor moral realmente acompanhou o escritor ao longo de toda a sua vida. A maior prova são seus poemas publicados na obra póstuma Eu e Outras Poesias, lançada por iniciativa da Imprensa Oficial do Estado da Paraíba em 1920. No livro, sua consciência da relação dissonante da humanidade com a natureza é apresentada de forma ácida e veemente. Em À Mesa, a mórbida ironia revela a leviandade e a consciente cumplicidade humana no ato de se alimentar de animais:

Cedo à sofreguidão do estômago. É a hora
De comer. Coisa hedionda! Corro. E agora,
Antegozando a ensanguentada presa,
Rodeado pelas moscas repugnantes,
Para comer meus próprios semelhantes
Eis-me sentado à mesa!

Como porções de carne morta… Ai! Como
Os que, como eu, têm carne, com este assomo
Que a espécie humana em comer carne tem!…
Como! E pois que a razão me não reprime,
Possa a terra vingar-se do meu crime
Comendo-me também.

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“Quando a faca rangeu no teu pescoço, ao monstro que espremeu teu sangue grosso” (Imagem: Reprodução)

No bucólico Engenho do Pau D’Arco, em Sapé, sua cidade natal, Augusto dos Anjos chegou a conduzir sessões de mediunidade. Ainda assim, ele jamais se viu como um religioso. Muito pelo contrário. Suas obras sempre abordaram de forma satírica as mais pertinentes contradições que permeiam o cristianismo. No entanto, isso nunca o impediu de se identificar com o panteísmo, assim como o célebre e também incompreendido poeta inglês William Blake.

Quem sabe o escritor paraibano tenha sido atraído pelo fato de que a doutrina se baseia no reconhecimento de Deus em tudo que compõe a natureza. E a partir dessa influência, Augusto fez cabais associações entre a tradição mística do ocidente, o cientificismo que o acompanhou por toda a vida e a cultura oriental fundamentada em religiões védicas da Índia. Esse hibridismo e a constante busca pela sabedoria provavelmente tinham relação com a sua ânsia por entender o mundo, os seres humanos e sua relação com todas as formas de vida.

Exemplos de sua aspiração transcendental são os poemas O Meu Nirvana e Budismo Moderno, publicados no livro Eu, de 1912. Extremamente sensível, Augusto dos Anjos se empenhou em encontrar em fontes orientais um amenizador para a inquietude que o atormentava. “Sinto uma série indescritível de fenômenos nervosos, acompanhados muitas vezes de uma vontade de chorar”, confidenciou em entrevista a Licinio Santos. E foi essa emotividade à flor da pele que o motivou a escrever A Um Carneiro Morto, de 1909, que fala da desproporcionalidade entre a empatia animal e a truculência humana.

Quando a faca rangeu no teu pescoço,

Ao monstro que espremeu teu sangue grosso

Teus olhos — fontes de perdão — perdoaram!

Oh! tu que no Perdão eu simbolizo,

Se fosses Deus, no Dia de Juízo,

Talvez perdoasses os que te mataram!

Augusto dos Anjos

“E o animal inferior que urra nos bosque/É com certeza meu irmão mais velho!” (Arte: Reprodução)

Alimentado com leite de escrava na infância, Augusto dos Anjos não se orgulhava de sua herança fundamentada no patriarcalismo rural. Cresceu desinteressado pela socialização, o que lhe garantiu o apelido de “O homem ausente”. Importantes nomes da literatura brasileira, como Orris Soares e José Américo de Almeida, o descreviam como um sujeito de tez pálida e morena, mais alto do que baixo, franzino e recurvo, de fronte alongada e grandes olhos sem mobilidade. Suas mãos eram moles e denunciavam timidez. Andava como se estivesse sempre na ponta dos pés, e de longe sua magreza excessiva chamava atenção pelo aspecto insalubre. E nada disso parecia-lhe relevante, talvez até insignificante, já que para além do trabalho ele vivia imerso em si mesmo e na própria poesia. Em A Obsessão do Sangue, Augusto dos Anjos discorre sobre a barbárie consentida entre o açougueiro e o consumidor que se excita diante da carne a ser servida.

Levantou-se. E, eis que viu, antes do almoço,

Na mão dos açougueiros, a escorrer

Fita rubra de sangue muito grosso,

A carne que ele havia de comer!

No inferno da visão alucinada,

Viu montanhas de sangue enchendo a estrada,

Viu vísceras vermelhas pelo chão…

E amou, com um berro bárbaro de gozo,

O monocromatismo monstruoso

Daquela universal vermelhidão!

Graduado em direito, o poeta jamais atuou como advogado. Preferiu o magistério e se tornou professor no Liceu Paraibano. Se casou em 1910 e logo se mudou para o Rio de Janeiro, onde lecionou na Escola Normal e Ginásio Nacional. O salário era tão modesto que ele mal conseguia sustentar a família. Ainda assim, prosseguia escrevendo, dando vazão à sua vocação. No poema Monólogo de Uma Sobra, Augusto dos Anjos reafirma sua crença na relação entre a solidariedade, o cosmo e o misticismo. Em um excerto, ele escreveu:

E o animal inferior que urra nos bosques

É com certeza meu irmão mais velho!

Depois de quatro anos, e atendendo à recomendação médica, o poeta migrou para Leopoldina, em Minas Gerais, com a esposa Ester Fialho e os dois filhos. Lá, ele exerceu o cargo de diretor do Grupo Escolar até que faleceu em 12 de novembro de 1914 em decorrência de pneumonia.

Na área em que estou, ao matinal assomo,

Passa um rebanho de carneiros dóceis…

E o Sol arranca as minhas crenças como

Boucher de Perthes arrancava fósseis,

Escreveu Augusto dos Anjos em Estrofes Sentidas, poema que na minha opinião sintetiza sua empatia por todos os seres vivos, mesmo diante da própria finitude extemporânea.

Saiba Mais

Augusto dos Anjos nasceu em 20 de abril de 1884 em Engenho do Pau D’Arco, em Sapé, na Paraíba.

Eu, seu único livro de poesia publicado em vida, foi lançado no Rio de Janeiro em 1912.

Os escritores preferidos do poeta eram William Shakespeare e Edgar Allan Poe.

Referências

Dos Anjos, Augusto. Eu e Outras Poesias. Bertrand SP (2001).

Santos, Licinio. A Loucura dos Intelectuais (1914).

Figueiredo, José Maria Pinto. A invenção do Expressionismo em Augusto dos Anjos. Universidade Federal do Amazonas (2012).

Paes, José Paulo. Augusto dos Anjos ou o evolucionismo às avessas. Novos Estudos (2008).

Viana, Chico. Autobiografia e lirismo em Augusto dos Anjos (2007). Disponível em chicoviana.com.

Erickson, Sandra, S. F. Augusto dos Anjos: Budismo Moderno. XVII Anais: Semana de Humanidades. UFRN (2010). Disponível em http://www.cchla.ufrn.br/shXVIII/artigos/G T05/Sandra%20S.F.%20Erickson.pdf.

Nóbrega, Humberto. Augusto dos Anjos e sua época. João Pessoa, Edição da Universidade da Paraíba (1962).

Sabino, Márcia Peters. A questão da religiosidade em Augusto dos Anjos. Disponível em http://www.seer.ufu.br/index.php/letraseletras/article/viewFile/25201/14017.

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João Franco: “Ficamos no mato por mais de vinte anos”

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Pioneiro chegou a Paranavaí quando a colônia era coberta por mata virgem

Em 1954, o desmatamento ganhou força em Paranavaí (Acervo: Fundação Cultural)

Em 1944, havia tanta vegetação nas imediações da Fazenda Brasileira, atual Paranavaí, no Noroeste do Paraná, que a mata virgem cobria toda a colônia. Tudo tinha de ser improvisado, até mesmo estradas e pontes. “Ficamos no mato por mais de vinte anos”, afirmou o pioneiro paulista João Silva Franco.

Franco conta que deixou a família no interior de São Paulo quando decidiu conhecer a Brasileira. Somente depois trouxe a mulher e a filha. Quando chegou a futura Paranavaí, antes de fixar residência, acampou onde é hoje a Praça dos Pioneiros. “Lá, naquele capoeirão que cobria os cafezais, ficamos 16 dias queimando lata. Foi assim até comprar uma terrinha pra fazer um ranchinho de colonião e sapé, tempo em que só havia movimento de carroças e cavaleiros”, declarou o pioneiro.

Em 1944, o ponto preferido dos peões e outros migrantes era uma praça localizada entre as Ruas Minas Gerais e Manoel Ribas. “Uma espécie de boca maldita”, sentenciou o pioneiro Oscar Geronimo Leite em entrevista ao jornalista Saul Bogoni há algumas décadas. Até aquele ano, não havia mais que 30 casas em Paranavaí, todas feitas de tabuinhas, e muitas estavam desocupadas há mais de dez anos, quando a Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco) foi expulsa do Distrito de Montoya, após a Revolução de 1930.

“Até mesmo uma grande serraria que ficava no fundo de um buracão no Jardim São Jorge foi abandonada”, lembrou João Franco, referindo-se ao empreendimento fundado em 1929 pela Braviaco. Ainda em 1944, o pioneiro comprou uma propriedade na “Água do 22”, no Distrito de Graciosa. Enfrentou todas as dificuldades que atingiram Paranavaí nos anos 1940 e 1950; desde problemas com golpes, tempestades, animais silvestres, falta de higiene, doenças e até escassez de alimentos.

“Tudo que aconteceu aqui nós vimos ao vivo. Os contratantes judiavam do povo. Queriam que trabalhasse sem direito a nada. Na hora de pagar, eles batiam demais e se teimasse era morto e jogado no rio”, desabafou. À época, para ampliar o tráfego de pessoas, animais e veículos, os pioneiros abriram picadões. O trabalho era bem simples. Um tratorista apenas empurrava o mato para o lado.

As pontes eram improvisadas com coqueiros derrubados, uma alternativa à morosidade do poder público em enviar profissionais qualificados para a construção de pontes e vias. “Trabalhei muito na abertura de estradas. Desmatei de Paranavaí até Capelinha [Nova Esperança]”, ressaltou Franco que sobreviveu na Brasileira porque tinha resistência para viver em lugares isolados, mesmo sob precárias condições. O pioneiro já tinha trabalhado como foiceiro, enxadeiro, serrador e lavrador.

Em 1940, de acordo com o pioneiro mineiro José Antonio Gonçalves, muitos dos migrantes que chegavam à Brasileira eram peões. “Foi assim até 1945, quando o Governo do Paraná parou de dar terras”, enfatizou o pioneiro paulista José Ferreira de Araújo, conhecido como Palhacinho. Um ano depois, com o crescimento populacional, as terras da Colônia Paranavaí começaram a ser bem valorizadas.

Segundo o pioneiro paulista Paulo Tereziano de Barros, só a partir de 1946 surgiu a preocupação em nominar as ruas e avenidas da cidade. “Em 1948, chegava gente aqui todos os dias. Era como a corrida do ouro”, avaliou o pioneiro paulista Salatiel Loureiro. Entretanto, a erosão hídrica já era um problema para o solo do arenito Caiuá nos anos 1940, o que foi se intensificando décadas depois. Migrantes que não tinham adquirido terras aproveitavam as áreas sem donos, como os buracões, para plantar feijões.

Em 1954, o desmatamento ganhou força em Paranavaí, conforme palavras do frei alemão Henrique Wunderlich em carta enviada à revista alemã Karmelstimmen. O padre alemão Alberto Foerst fez coro às palavras de Wunderlich. “O mato era derrubado e ficava no chão algumas semanas até ser queimado”, confidenciou no artigo “Die Stimme Der Mission”, publicado em outubro de 1954 na Karmelstimmen.

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