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A lição de Dabo
Meu pai sempre me contava a história de um senhor sérvio de Novi Pazar que ele conheceu por essas bandas na década de 1960, ainda garoto. Seu nome era Dalibor, mas como poucos sabiam pronunciá-lo, logo deram-lhe o apelido de Dabo. Era um senhor de meia-idade, olhar quiescente e barba ruça que pouco falava português. Nunca reclamava de nada para ninguém, e tinha maneira ímpar de demonstrar respeito diante das contrariedades.
Dabo não se alimentava de animais; consumia mormente o que plantava em sua chácara nas imediações do Parque Ouro Branco. Alguns o chamavam de estrambótico, esquisito, místico e “fruteiro”. Ele não se importava – nunca. Nem se abespinhava diante das provocações. Às vezes, jogavam pedaços de animais mortos em seu pomar, entre os apolíneos pés de mirtilo.
Antes de colher aqueles corpos mortos, ele sempre se ajoelhava, encostava a ponta do nariz na terra virgem e se desculpava enquanto mantinha uma das mãos sobre o corpo desfalecido – ou parte do que um dia foi um corpo. O ritual se repetia – um de cada vez. Então recolhia os animais e os sepultava.
Os episódios se repetiam e, em vez de reclamar ou denunciar os autores, logo transformou parte da chácara em um cemitério de animais. Alguns vizinhos começaram a se queixar, mesmo na inexistência de mau cheiro ou qualquer laivo cadavérico. Em uma noite de outono, convidaram Dabo para um grande churrasco em um sítio vizinho. Ele não rejeitava convites – nunca.
Quando a fumaça da churrasqueira começou a subir, ele a observou e se afastou a passos suaves. Depois de 15 ou 20 minutos, perguntou se alguém sabia a quantidade de carne que seria assada naquela ocasião e que tipo de carne.
Agradeceu e retornou para casa. Caminhou até o cemitério de animais e acendeu uma vela para cada quilo de carne. Havia muitas; as labaredas ganharam vida e iluminaram o céu da chácara. Tudo ao redor era escuridão. A fumaça da churrasqueira mirada ao longe vanesceu-se de súbito.
Muitas pessoas se aproximaram e o assistiram. Dabo, de olhos fechados, nem se moveu. Continuou de joelhos honrando a vida e a morte. Abriu a boca por um momento e disse: “Svetlost poštovanja je bombardovanje volje” – “A luz do respeito é o bombardeio da vontade.”
Massacre de Srebrenica completa 23 anos este mês
De 11 a 22 de julho de 1995, o Exército da República Sérvia e os Chetniks, um grupo paramilitar sérvio, mataram mais de oito mil muçulmanos ao leste da Bósnia e Herzegovina. Muitas das vítimas eram crianças, adolescentes e idosos.
Esse crime em massa foi o primeiro genocídio reconhecido legalmente após o Holocausto, segundo informações do NIOD Institute for War – Holocaust and Genocide Studies. A ação foi liderada pelo general ultranacionalista Ratko Mladić que, visando uma “limpeza étnica”, ordenou que os muçulmanos do sexo masculino (de crianças a idosos) fossem localizados e executados. Tentando escapar da morte, muitos homens buscaram refúgio em um complexo da ONU.
Quem supostamente fazia a segurança no local era uma pequena tropa neerlandesa da Missão de Paz, mas eles testemunharam todos os crimes sem reagir. Além disso, o pedido de ajuda dos perseguidos foi ignorado pela ONU.
De acordo com relato de Zumra Šehomerovic, os invasores sérvios selecionaram meninas e jovens mulheres do grupo de refugiados. Todas elas foram estupradas. Os abusos sexuais muitas vezes ocorreram diante de testemunhas – inclusive dos filhos das vítimas. “Um soldado neerlandês simplesmente ligou seu walkman e circulou pelo local, ignorando o que estava acontecendo. Vi isso pessoalmente. Estava diante dos nossos olhos. Seria impossível eles não verem isso”, afirma Zumra.
Também havia uma mulher com um bebê de poucos meses. Um chetnik ordenou que a criança parasse de chorar. Como a criança continuou chorando, ele a degolou e riu. Outro soldado neerlandês assistiu tudo e não fez nada. “Vi coisas ainda mais terríveis. Havia uma garota, ela devia ter nove anos. Em um momento, recomendaram ao irmão que a estuprasse”, declara.
O garoto não fez isso e, segundo a sobrevivente, nem poderia, já que ele era só uma criança. Então puniram o garoto o matando. Zumra testemunhou todas essas ações. “Quero enfatizar que tudo isso aconteceu ao lado da base [da ONU]. Também vi outras pessoas serem assassinadas. Algumas delas tiveram suas gargantas cortadas e outras foram decapitadas”, narra Zumra Šehomerovic.
Referências
Van Diepen Van der Kroef Advocaten. Writ of Summons: District Court, The Hague. legal-tools.org. Páginas 107–108.
http://www.cnj.it/documentazione/Srebrenica/NIOD/NIOD%20part%20IV.pdf
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Ajde Jano, um hino balcânico não oficial
A beleza de uma composição folclórica que atravessa os séculos
Uma das mais belas, tristes e famosas composições folclóricas do Sul da Sérvia e do Kosovo, Hayde Yano ganhou uma versão com um singular “que” de autoralidade em 2001, na versão da banda estadunidense Kultur Shock, uma das mais respeitadas do gênero gypsy punk.
O grupo, conhecido por valorizar o cancioneiro nômade, explorar suas habilidades técnicas multi-instrumentistas e influências multiétnicas, nunca se faz de rogado quando o que está em jogo é a espontaneidade não de apenas entreter, mas reacender os valores semeados e preservados pela música folclórica. É exatamente o que encontramos na versão que o Kultur Shock gravou de Hayde Yano.
Concebida com preciosismo, a canção segue a premissa do kolo tradicional, uma das danças coletivas e circulares mais difíceis do mundo – que exige uma contumaz flexão de joelhos, recaindo o peso sobre os calcanhares. É muito popular entre os povos eslavos, com destaque para sérvios, bósnios, herzegovinos, croatas, macedônios e montenegrinos. A versão dos estadunidenses para Ajde Jano é baseada em instrumentos que popularizaram o kolo, com predominante característica de gravador radiofônico, como frula, tamburica, šargija, zurla, gajde, tapan e gaita.
O que a distingue das versões menos ousadas é a roupagem moderna e eletrônica que lembra ocasionalmente o trabalho de aspiração mediterrânea do projeto israelense-estadunidense Balkan Beat Box, referência em gypsy punk e cultura roma. Outro ponto interessante de Hayde Yano é que durante a execução do kolo os punhos cerrados atrás das costas representavam no passado um desafio ao governo turco – como um protesto, o que rende ao ouvinte uma extra carga simbólica sobre a importância contextual da música com status de hino não oficial.
Hayde Yano recebeu dezenas de versões desde que foi gravada pela primeira vez em 1928 pelo desconhecido V. Georgevich. A história da canção remonta aos séculos anteriores, principalmente ao tempo e as consequências do duradouro domínio do Império Otomano. Ao longo dos anos, a letra foi modificada algumas vezes. No entanto, a ideia original fala sobre a necessidade de se preservar os velhos e bons hábitos.
Isso é representado pela recusa do homem em vender o cavalo e a casa, os únicos bens de um casal sérvio que passa por um grave momento de crise econômica e privação imposta pelos turcos. Além disso, a residência é o único local onde podiam dançar o kolo, honrando as próprias origens e a relação com a terra.
Mais tarde, a letra foi alterada e o personagem masculino sugere a Jana, sua mulher, que o melhor é vender a propriedade, já que teriam mais tempo para dançar o kolo, sem precisar se preocupar com o animal ou a residência. Assim, a letra ganhou um novo e distinto caráter conceitual e imaterial. O mais importante para o casal estava com eles o tempo todo – a sabedoria de se dançar o kolo, não apenas uma dança, mas um legado de identidade e valores que ninguém poderia destruir.
Antes de Hayde Yano ser gravada, o kolo entrou para a história como uma das mais importantes danças balcânicas; o que foi endossado em 1886 pela peça orquestral No. 7 (15) em C Maior (Kolo), pertencente a série Danças Eslavas, do compositor tcheco Antonín Dvořák, um gênio do romantismo que sincretizava tradição sinfônica e influências populares e folclóricas.
Enfim, Ajde Jano, kolo da igramo!
A letra traduzida:
Hayde Yano
Vamos, Jana, vamos dançar o kolo!
Vamos, Jana, vamos, querida, vamos dançar o kolo!
Vamos, Jana, vamos, querida, vamos dançar o kolo!
Vamos, Jana, vamos vender o cavalo!
Vamos, Jana, vamos, querida, vamos vender o cavalo!
Vamos, Jana, vamos, querida, vamos vender o cavalo!
Vamos vender apenas para dançar!
Vamos vender, Jana querida, apenas para dançar!
Vamos, Jana, vamos vender a casa!
Vamos, Jana, vamos, querida, vamos vender a casa!
Vamos, Jana, vamos, querida, vamos vender a casa!
Vamos vender tudo apenas para dançar!
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Miodrag Petrović e a arte que nasce da guerra
Quando a poesia humanista de um sérvio é capaz de eternizar soldados
Não faz muito tempo que a Biblioteca Nacional da Sérvia (Народна библиотека Србије) lançou um projeto da Coleções Europeana baseado na obra de Miodrag Petrović, um artista que acompanhou todos os passos do Exército Sérvio na Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Pouco conhecido no mundo todo, com exceção da Sérvia, parte do trabalho de Petrović só se tornou público após mais de 90 anos. Seus desenhos e pinturas são acompanhados de poemas e textos alusivos em que amplifica interpretações pessoais, recria metáforas e enigmas. Vez ou outra detalhava o que acontecia no momento de criação de cada imagem, como se reconhecesse a importância de confundir e ao mesmo tempo situar o espectador no contexto da guerra – em situações de conflito ou bastidores.
Para entender a pluralidade do trabalho de Miodrag Petrović é preciso primeiro saber um pouco sobre o seu passado. Nascido em 1888, começou a estudar arte ainda na infância. Mais tarde, migrou para a Alemanha, onde se aperfeiçoou na Academia de Belas Artes de Munique. Com a animosidade do pré-guerra, retornou para a Sérvia e se alistou no Exército. As boas qualificações lhe garantiram um raro reconhecimento como artista militar.
Petrović participou de várias batalhas ao redor de Belgrado em 1914, até que no inverno de 1915 o enviaram para Montenegro, Albânia e ilha grega de Corfu. Antes da guerra chegar ao fim, o artista tinha documentado muitas impressões e criado inúmeras obras das experiências em Tessalônica, na Grécia, e também nos hospitais das campanhas acirradas na Tunísia e Argélia.
Em 1919, Miodrag retomou os estudos de arte em Paris, onde trabalhou e conviveu com alguns dos mais importantes nomes da pintura francesa da época. Apaixonado pelas artes visuais, prosa e poesia, o artista que faleceu em Belgrado em 1950 desenhou, pintou e escreveu até os últimos meses de vida.
Uma de suas obras de maior repercussão é O Funeral no Navio-Hospital Divona, sobre a embarcação para onde eram transportados os soldados e oficiais sérvios e franceses – doentes e feridos na Primeira Guerra Mundial. Em um de seus trabalhos disponíveis na Biblioteca Nacional da Sérvia, Miodrag explica que em 1915 participou de uma missão no Divona para enviar a Bizerta, na Tunísia, os impossibilitados de lutar. “Dois de nossos soldados morreram durante a nossa viagem pelo Mar Mediterrâneo. Um estava ferido e o outro doente. Testemunhei seus corpos sendo lançados ao mar sob a noite enluarada”, contou.
No relato, diz que às 20h a lua cheia engrandecia o céu límpido. Os dois jovens mortos eram mantidos com a cabeça voltada às bordas do navio enquanto os pés miravam o mar. “Incrível como aqueles cadáveres estavam mentindo, cobertos com a bandeira francesa. Claro, a cor vermelha mais próxima do mar e o branco e o azul disperso, ao longe”, comentou. Para Miodrag, o mar estava especialmente azul-esverdeado, assim como o céu, com o acréscimo do brilho do luar que refletia na água com certa magia.
As lâmpadas da parte de trás do navio continuavam desligadas. Apenas uma pequena luz parcial do lado direito iluminava a cerimônia fúnebre capitaneada por um sacerdote. O homem vestido de preto e usando uma estola se voltou para os corpos e o mar quando começou a ler a bíblia em voz baixa, quase em silêncio. Logo atrás estava o capitão do navio, também trajando roupa preta e, pela primeira vez em toda a viagem, com a cabeça descoberta.
À esquerda do capitão, havia um oficial francês ferido e dois sérvios. Os corpos estavam ladeados por dois marinheiros à esquerda e dois à direita. “Era possível ver de longe o azul ao redor de suas cabeças, a cabeleira branca e o topete vermelho. Nossos soldados feridos e doentes vinham logo atrás, acompanhados por duas enfermeiras de branco com a cruz vermelha em torno de seus braços”, detalhou.
Enquanto a cerimônia era iluminada por uma trêmula e pálida luz amarela-esverdeada, os rostos de todos os presentes tinham o mesmo aspecto – de tristeza e solenidade. Assim que o padre terminou a oração, as enfermeiras sussurraram a Oração do Senhor. “Me recordo do padre dando alguns passos para trás, fechando a bíblia, virando-se para o capitão e falando: ‘Terminei’. Em seguida, o comandante fez um rápido sinal e se aproximou dos corpos”, confidenciou Petrović.
No discurso arquivado há quase cem anos, e muito bem preservado pela Biblioteca Nacional da Sérvia, o capitão disse o seguinte: “Camaradas, longe de sua terra natal, vocês deram o último suspiro neste fraternal barco francês. Vão para o outro mundo, confiantes de que seus filhos, esposas e pais muito em breve viverão a liberdade que vocês não puderam desfrutar. Adeus, camaradas. Adeus…Adeus…”
Ao final, o capitão deu um sinal e dois marinheiros levantaram uma parte do tabuleiro e os deslizaram em direção ao mar, onde os corpos afundaram com 30 quilos de ferro presos aos pés. Logo que os cadáveres se chocaram contra a água, um marinheiro soprou bem alto um apito. O ato foi seguido por cinco minutos de silêncio. “Mesmo que tenhamos enterrado tantos companheiros e visto milhares de defuntos, ainda assim era algo que tinha um impacto muito grande sobre todos, a ponto de ninguém ser capaz de dizer uma palavra”, revelou o artista militar.
Prosa, Poesia e a Nova Odisseia (Ulisses)
Em outra de suas obras, intitulada Prosa e Poesia, Miodrag Petrović apresenta um retrato peculiar e bucólico da guerra, baseado na imagem de um soldado sentado debaixo de uma bela laranjeira, abundante em frutos, tentando remover os piolhos que o incomodavam. “O percebi intoxicado pelo cheiro da laranja. As cascas se deitavam ao seu lado. Ele estava encantado com o céu azul e a superfície azul-esverdeada do mar por onde um barco colorido deslizava. Do outro lado da água, podia-se ver a costa da Albânia com as docas cobertas em neve. O rapaz gentilmente retirou o casaco e interrompeu os incômodos insetos aninhados. Tudo para não se distrair da poesia daquele momento”, escreveu Petrović.
Já a obra Nova Odisseia (Ulisses) nasceu de um episódio envolvendo o bombardeamento de um navio por submarinos alemães. A embarcação partia de Bizerta, na Tunísia, para a cidade grega de Tessalônica. Na tragédia, apenas um soldado sérvio, um senegalês e dois franceses – um soldado e um marinheiro – sobreviveram. Os quatro se salvaram graças a uma jangada feita de tábuas grossas, um recurso salva-vidas muito comum nos barcos da Primeira Guerra Mundial.
Chegaram a uma costa rochosa vestindo apenas trapos, morrendo de fome, sede e quase “azuis de frio”. “Só lhe restaram as túnicas de verão. Apesar da exaustão, ficaram muito felizes por sobreviverem depois de remarem tanto com as pernas”, enfatizou. Segundo a obra de Miodrag, o mar ficou extremamente agitado e os quatro só não morreram porque surgiram as nereidas.
Enquanto riam histericamente, as ninfas do mar os rodearam e puxaram a jangada em direção à costa, percorrendo pelo menos cem metros. Os sobreviventes estavam pálidos, assustados e confusos. Sentado sobre uma pedra, o soldado sérvio ficou com o olhar vagando em direção à pátria. Logo atrás, uma nereida em pé tocava uma harpa feita de madeira e cantarolava melodias expansivas, na tentativa de animá-lo. “O mar já estava calmo e o dia claro, mas perto das rochas havia apenas uma caverna”, narra o artista, deixando a interpretação livre.
Um banho de sangue sérvio
A incrível história de sobrevivência de Bogdan Bukumiric
Em 13 de agosto de 2003, Bogdan Bukumiric tinha 15 anos quando foi baleado oito vezes. O motivo? Ser sérvio. Apesar da crueldade com a qual foi surpreendido, o jovem sobreviveu e dias depois já estava fora do coma. Até hoje, Bukumiric não sabe quem foi o responsável pelo banho de sangue contra todas as crianças e adolescentes que descansavam no Rio Bistrica, perto de Goraždevac, uma aldeia do Kosovo, na península balcânica.
É impossível visitar Goraždevac sem se emocionar com o monumento em homenagem aos jovens vitimados pelos terroristas albaneses. Os rostos de Panto Dakic e Ivan Jovovic estampam a obra que denuncia a maldade vivida por sérvios em um gueto que até então era considerado um oásis. Panto e Ivan foram assassinados enquanto brincavam no Rio Bistrica com um grupo de amigos.
É chocante saber que essa carnificina jamais esquecida pelos sérvios teve a conivência da Organização do Tratado Atlântico Norte (Otan), segundo testemunhas que viviam em Goraždevac. Perto das fotos de Dakic e Jovovic há uma frase profunda em sérvio com os dizeres: “Mais assustador que a morte é ser enterrado vivo.”
Panto e Ivan foram surpreendidos por um grupo de desconhecidos que abriram fogo contra todos que estavam nas imediações do Rio Bistrica. “Quatro de nós ficaram gravemente feridos. O meu quadro era o pior. Os médicos disseram que eu tinha 96% de chance de morrer e 4% de chance de sobreviver”, conta Bogdan Bukumiric, alvejado com oito tiros na emboscada de 13 de agosto de 2003.
Superando todas as expectativas, Bukumiric sobreviveu e hoje vive em Belgrado, na Sérvia, onde lamenta o desrespeito dos albaneses ao monumento de seus amigos mortos. Há várias marcas de tiros na escultura erigida em memória de Panto Dakic e Ivan Jovovic. Nascido em Goraždevac, no Kosovo, Bogdan aprendeu a conviver com os abusos e agressões dos albaneses e da Otan, organização militar intergovernamental que em tese deveria garantir a segurança dos civis em regiões de guerra.
A situação na localidade só começou a melhorar depois de 1999, com o fim da Guerra do Kosovo. “Naquele tempo, a aldeia tinha uma população de apenas mil pessoas e era cercada por assentamentos albaneses. A cidade mais próxima era Peć. Tínhamos sempre que sair para comprar comida escoltados pela Kfor [Força do Kosovo]”, relata Bogdan Bukumiric.
Mas a emboscada no Rio Bistrica não foi o primeiro atentado sofrido pela família Bukumiric. Anos antes, Milica Bukumiric, tia de Bogdan, foi assassinada em frente a própria casa, quando terroristas albaneses arremessaram granadas no seu quintal. O garoto cresceu sendo obrigado a se isolar para sobreviver. Teve uma infância difícil, sem entretenimento ou possibilidade de viajar para outros lugares. “Só tínhamos a nossa comunidade e a escola. Viver era muito arriscado”, admite.
Em 13 de agosto de 2003, cansados da monotonia na aldeia, os amigos de Bukumiric passaram em sua casa e o convidaram para dar um mergulho no Rio Bistrica. Como se prevesse o pior, o pai de Bogdan disse que ele deveria ficar em casa, até porque a água estava muito fria, especialmente naquele dia. “Então eu perguntei de novo, ele acabou cedendo, mesmo sem querer. Havia bastante crianças no rio, além de jovens adultos e pais. Como fazia muito frio, fiquei perto do fogo. Em menos de dez minutos, ouvi tiros de metralhadora. Eu e meus amigos estávamos mais próximos dos terroristas”, lembra.
Em questão de segundos, três balas atingiram o lado esquerdo de Bogdan que conseguiu ver uma grande movimentação na floresta. Outros tiros o acertaram no peito, estômago e cabeça. Ele se recorda que a oitava bala se alojou em sua perna esquerda. O garoto só teve tempo de gritar bem rápido por ajuda, cair, tentar se levantar e em seguida sentir a vida se esvaindo.
Os sérvios não atingidos pegaram Bukumiric nos braços e o levaram para um hospital na base militar da Kfor. Infelizmente, não havia médicos e os primeiros socorros foram feitos em uma pequena clínica local. A primeira medida era estancar o sangramento. Ainda consciente, Bogdan pediu para afastarem seu irmão da sala de emergência, evitando ser visto em estado tão preocupante. Um senhor sérvio exigiu que a Kfor levasse Bukumiric para o hospital em Peć. O pedido foi negado e muitas desculpas foram dadas.
Por conta e risco, o irmão de Bogdan e um vizinho o transportaram de carro até Peć, uma cidade de predomínio albanês. Tentando mantê-lo acordado, os dois disseram: “Bogdan, espere, você é um herói e vai sobreviver!” O garoto retribuiu afirmando: “Não me renderei!” Perto de um mercadinho em Peć o motor do carro parou. Como a placa do veículo era sérvia, os albaneses os atacaram. O automóvel foi destruído e nenhuma das janelas ficou intacta. Para piorar, tentaram arrastar os três garotos para fora do carro. O vizinho e o irmão de Bogdan foram atingidos com pedras enquanto tentavam ligar o veículo e se defender, mantendo os punhos sobre a cabeça.
Mesmo com uma pessoa quase morta dentro do carro, os albaneses não demonstraram misericórdia. A sorte dos três foi que minutos depois apareceram dois carros de patrulha da Kfor. “Só os vi atirando para o ar, espantando os agressores. Não demorou e entrei em coma. O que soube depois me foi relatado por amigos”, enfatiza Bukumiric, levado para um hospital de Peć, onde também estava em estado grave o amigo Panto Dakic que não sobreviveu.
Naquele dia, uma médica albanesa tentou examinar Panto, mas o pai do garoto não permitiu, preocupado que garantissem sua morte. Um médico sérvio alertou sobre a importância de levar Bogdan de helicóptero até o Norte de Kosovska Mitrovica. Para isso, era preciso a permissão da Kfor. Três horas depois, Marco Bogicevic, outra criança ferida no atentado, chegou a Peć em um helicóptero. No mesmo veículo, enviaram Bukumiric para o hospital da Kfor em Mitrovica.
Depois de operarem o baço do garoto e extraírem uma bala a dois milímetros do rim esquerdo, os médicos franceses da Kfor perceberam que dificilmente o garoto sobreviveria, pois não havia nenhum neurocirugião para dar continuidade aos procedimentos. Ciente da gravidade da situação, o médico Milenka Cvetkovic desempenhou um papel crucial que evitou a morte de Bogdan. Cvetkovic insistiu para o levarem até Belgrado, na Sérvia. Aí surgiu um dilema porque a Kfor não permitia o desembarque de helicópteros sérvios sem autorização.
A solução apresentada pelo médico foi transportar Bukumiric de carro até a Academia Médica Militar de Belgrado. Mesmo com a pressão extremamente baixa, e perdendo os sinais vitais, tiveram de aguardar 11 horas para chegar a Belgrado com toda a documentação necessária. Bogdan já estava com pouco sangue, então foi preciso realizar uma transfusão emergencial na Academia Militar. A cirurgia só pôde ser feita no dia seguinte.
Em 19 de agosto, o prognóstico ainda era o mesmo. As chances de sobrevivência se resumiam a 4%. Logo que saiu do coma, o garoto teve muita febre em função das lascas de ossos que danificaram o córtex cerebral. Quatro cirurgias mais tarde e uma meningite, Bukumiric conseguiu recuperar os movimentos do lado direito do corpo. Passados alguns meses de muita luta, peserverança e exercícios intensos, Bogdan voltou a andar.
A história de sobrevivência do jovem sérvio chamou a atenção do alto escalão da Missão das Nações Unidas para a Administração Interina do Kosovo (Unmik), inclusive do líder Harri Holkeri, ex-primeiro-ministro da Finlândia que o visitou em Belgrado, onde desejou-lhe melhoras e um rápido retorno a Goraždevac. Bogdan supreendeu Holkeri ao perguntar se ele já havia prendido os criminosos.
“Ele não esperava esse tipo de pergunta de um jovem de 15 anos”, confidenciou um funcionário da Unmik. O finlandês explicou que estavam trabalhando nisso, mas não tinham conseguido recolher provas o suficiente. A verdade é que muito tempo se passou e até hoje nada de concreto foi feito. Ao longo dos anos, Bukumiric tentou buscar justiça, se correspondendo com várias organizações internacionais. Algumas assumiram o compromisso de ajudá-lo.
As boas intenções para resolver o caso se estenderam até 2007, quando as investigações cessaram. Apesar de tudo, Bogdan ainda busca justiça. “Fomos atacados por monstros enquanto nos divertíamos no rio. Eles não se importaram nem com as crianças de cinco anos. Foi um plano extremo, de atacar os mais jovens para atingir os mais velhos”, avalia Bukumiric. Embora tenha uma vida praticamente normal, o sobrevivente sérvio ainda não tem controle total sobre o braço esquerdo, mas se anima com a ideia de viajar para a Rússia, onde soube que há excelentes médicos dispostos a tratá-lo.
Desde 2003, Bukumiric, que perdeu a mãe quando tinha apenas cinco anos, mora com o pai e o irmão em um apartamento arrendado em Belgrado. Sensibilizado com a difícil situação financeira de Bogdan, o tabloide sérvio Večernje Novosti lançou uma campanha para arrecadar 59 mil euros para que a família compre um imóvel. “O governo nunca esteve interessado em meu caso, então sou obrigado a contar com a ajuda das pessoas. Tenho formação técnica de eletricista, mas como ainda sofro por causa de algumas limitações preciso me cuidar a maior parte do tempo”, frisa.
Bogdan até hoje não teve a chance de retornar a Goraždevac porque precisa estar em constante observação médica em Belgrado. Os demais sobreviventes do atentado ainda vivem na aldeia, assim como os pais de Panto e Ivan. “Sou orgulhoso de minha aldeia. Temos a igreja mais antiga dos Bálcãs. Ela foi construída há oito séculos sem um único prego. Acredito que ela protege minha terra natal porque superamos a Primeira e Segunda Guerra Mundial, o Conflito do Kosovo e muitas outras tragédias”, comenta Bukumiric emocionado.
A essência pacifista de Tanović
Terra de Ninguém mostra como a guerra é vazia em sentido
Ničija Zemlja, que no Brasil ganhou o nome de Terra de Ninguém, é um filme de 2001, do cineasta bósnio Danis Tanović. A obra que gira em torno de um episódio da Guerra da Bósnia foge do romantismo hollywoodiano e retrata com realismo o despropósito de um conflito sem heróis.
A história se desenvolve a partir de dois inimigos naturais; o sérvio Nino (Rene Bitorajac) e o bósnio Ciki (Branko Djuric) que se perdem de seus agrupamentos e vão parar na “terra de ninguém” – uma área que não pertence a nenhuma das nações envolvidas na guerra e pode receber tanto uma investida militar dos sérvios quanto dos bósnios. O que torna a situação mais delicada é a presença do bósnio Cera (Filip Sovagovic) que depois de ferido foi colocado sobre uma mina por soldados sérvios.
Como o artefato é de fabricação estadunidense, há uma alusão à falta de empenho dos EUA pelo armistício, mesmo tendo o privilégio de ser a nação com maior apelo junto à Organização das Nações Unidas (ONU), além de símbolo da expansão ocidental. Enquanto a carnificina prossegue na “terra de ninguém”, Nino e Ciki firmam um pacto de mutualidade, iniciado com a tentativa de desativar a mina sobre a qual Cera repousa. O absurdo da situação cria uma atmosfera cômica; os protagonistas trocam favores e ao mesmo tempo tentam encontrar meios de se eliminarem.
Entre as cenas de destaque de Terra de Ninguém está uma em que o representante da ONU se empenha para negociar algumas medidas com o alto escalão, na esperança de tirar os dois soldados da zona de perigo. O pedido é negado. Tanović também denuncia o desserviço dos meios de comunicação de massa ao explorar o telejornalismo de mercado. No filme, uma repórter que sonha em ser famosa tenta gerar animosidade entre Nino e Ciki enquanto o idealista da ONU faz o possível para ajudá-los, mesmo sem o consentimento dos superiores. Em suma, Ničija Zemlja é um filme de caráter pacifista que explora o paradoxo da violência e mostra como a guerra é vazia em sentido.