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Se importar sem se importar
Quando falamos em desgraças ou qualquer ação reprovável, é comum o ser humano preterir relação entre fato e proximidade. Ele apela artificiosamente à questão geográfica como forma de distanciamento, de neutralização do peso da verdade e da realidade.
“Se não acontece aqui, está tudo bem. Estão fazendo maldade pra lá, explorando pra lá. Aqui é diferente, é sim, bem diferente.” Com respaldo ou não na realidade, esse é um efeito comum da empatia seletiva do que podemos chamar de moralidade-muleta ou ingerência factual.
Ou seja, cria-se barreiras e obstáculos que possam servir para construir muros e fortalezas de consideração fundamentada em pretensa diferenciação ou em fictício padrão moral mais elevado; que serve como máscara que desliza sem fixar-se no rosto. Assim deitam-se as indiferenças sob o labirinto das consciências.
Mas por que as pessoas fazem isso? Para não assumirem semelhanças, outras responsabilidades, quem sabe; para não pensarem sobre outras coisas, para não admitirem que independente de ser aqui ou lá a suposta diferença ainda seria mínima ou nula. Talvez aqui seja até pior dependendo do objeto de referenciação. Então pra condenar às vezes é mister camuflar.
Muitos gostam de dizer que se importam sem se importar. E o cenário perfeito pra isso é o distanciamento – real ou ficcional (distorcido da realidade por maliciosa ou conveniente vontade, ou mesmo crença em algum tipo de superioridade). “Se fosse aqui, eu até faria algo. Mas ali ou lá não é problema meu.” Mas, claro, pode-se usar de eufemismos ou colocações menos diretas que mascaram posição que não pareça agradável aos ouvidos.
Fala-se com demérito e brevidade ou mais, porém ruidosa, de tal fato repreensível, que não é aqui, porque talvez, ainda que tratando-se de algo tétrico, seja gostoso praguejar o que não parece nosso (o que nem parece nós) sob apontamentos de autoelevação moral. E como se não houvesse mais do que uma intenção fugaz em exercitar o maxilar, quem sabe.
Às vezes o queixoso, que pode não ser queixoso, quer apenas distração momentânea; não quer mudar nada, só treinar a boca e articular palavras que, talvez, se materializadas morressem antes de tocar o chão, assim como as vontades diluídas pela própria razão de parecer e não ser.