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“E se você estiver em uma ilha deserta, só você e um porco?”
— Me falaram que você é vegano.
— Sim…
— E isso significa que você não come nada de origem animal?
— Isso mesmo.
— E posso fazer a piada do peixe?
— Não seria muito original, creio eu…
— Ah! Ok…
— Mas e se você estiver em uma ilha deserta, só você e um porco?
— Por que um porco?
— Sei lá, porco, galinha, vaca, avestruz…
— Acho que seria lindo…
— Lindo?
— Sim…
— Mas e a comida? Você teria que comê-lo!
— Por quê?
— Por que só vocês dois estariam lá.
— E quem determinou isso?
— Hã? É uma hipótese.
— Isso significa que tudo desapareceria, as árvores, os frutos, a natureza, todos os tipos de vida, restando enigmaticamente eu e um porco?
— Claro que não.
— Certo. Então em que tipo de ilha isso seria possível? Simplesmente eu e um porco.
— Ah, cara, não complica, né?
— Diga aí, você come o porco ou não.
— Não, hein?
— Mas como você sobreviveria?
— Tem certeza que isso é uma ilha? Não está faltando mais nada para ser uma ilha? Vegetais, por exemplo? Que poderiam servir de alimento tanto para mim quanto para o porco. Se a minha alimentação fora de uma ilha é mais rica em carboidratos do que em proteínas, por que eu iria me preocupar prioritariamente em matar um animal para me alimentar? Você já percebeu o quão clichê é essa ideia de um suposto retorno a um estado pretensamente primitivo em estado de privação? Não estamos na Era do Gelo. Por que o ser humano perdido na natureza deve em primeiro lugar matar animais para se alimentar? Se eu me perdesse em território inuíte inabitado ou em algum lugar perdido ao norte de Oymyakon, talvez eu fosse obrigado a repensar a minha situação, mas qual é a probabilidade disso acontecer? Eu morreria de frio antes.
— Como você é chato, cara! Deus me livre! Esqueça! Esqueça!
— Não, sou apenas vegano mesmo.
Quando vejo um ser humano se orgulhando de matar animais
Quando vejo um ser humano se orgulhando de matar aves, bovinos e suínos com as próprias mãos, como se isso fosse digno de mérito, reconheço como a racionalidade humana pode ser questionável.
Nem carnívoros somos, e aqueles que são e vivem na natureza selvagem, mesmo quando matam os menores ou mais fracos para se alimentarem, não demonstram qualquer tipo de soberba ou altivez, e simplesmente porque diferentes de nós agem instintivamente, pela própria sobrevivência.
A alegria e a tristeza de ser analfabeto
“Me considero um ignorante de sorte porque carrego dentro de mim centenas de histórias”

Pedro Silvano: “Agora não quero aprender a ler pra não sentir remorso pelo que perdi” (Foto: David Arioch)
Baixinho, franzino, e de cabelos brancos e fartos, o aposentado Pedro Silvano nunca aprendeu a ler e escrever. Hoje, com 86 anos, afirma que já não tem mais interesse no significado das letras e das palavras. “Queria saber ler quando era mais novo. Agora não quero aprender pra não sentir remorso pelo que perdi”, conta num tom de voz remansoso.
Entre um gole e outro de café amargo, o aposentado relata que chegou a Paranavaí, no Noroeste do Paraná, em 1954, fugindo da estiagem que assolava Iguatu, no Ceará. “Abandonei minha terra, onde já não crescia nada, e vaguei como um retirante no final da década de 1940”, narra. A situação era a mesma que a vivida pelo vaqueiro Fabiano do romance “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, lançado na década anterior. Inclusive Silvano também sabia lidar com gado.
Acompanhado do irmão também analfabeto, chegou a São Paulo contando com a sorte e a gentileza de pessoas que encontrou pelo caminho. Viajou levando apenas duas peças de roupa, um saco de farinha com rapadura e um puído par de sandálias feito à mão. “Vivia numa selva de analfabetos. Difícil era encontrar quem sabia ler e escrever”, garante em referência aos anos 1940 e 1950.
Na capital paulista, viu pela primeira vez um arranha-céu – Edifício Altino Arantes, conhecido como Banespão, que o fez sentir-se “menor do que uma muriçoca”. “Tinha medo que aquilo caísse em cima de mim. Até comentei com meu irmão: ‘Quim, chega pra lá que não acho que a gente tá seguro aqui não. Melhor tirar os calço logo’”, lembra rindo.
Quando observava placas, cartazes e jornais, tentava interpretar o conteúdo através das imagens. Cada observação cuidadosa tinha um significado peculiar para Pedro, na tentativa de compensar o vácuo da informação escrita. “Tenho certeza que uma imagem não é vista da mesma forma por uma pessoa analfabeta e outra que não é. Quem sabe ler às vezes nem presta atenção na imagem. Como analfabeto que sou, sobrevivi porque fui obrigado a ver informação sem ver palavra”, confidencia.
Apesar das dificuldades, o analfabetismo o livrou da morte em São Paulo. Com apenas 20 anos, Silvano conheceu ocasionalmente um homem que lhe prometeu um bom trabalho como meeiro em uma fazenda de café em Londrina, no Norte do Paraná. Ingênuo, ficou muito feliz. Então o sujeito pediu que o cearense fosse até as imediações da Estação da Luz ao final do entardecer de 21 de novembro de 1949 para receber as últimas informações sobre o novo serviço.
“Como eu não sabia ler, acabei me atrapalhando e fui parar a mais de três de quilômetros do local onde ficamos de nos encontrar. Só achei o lugar certo à noite. Quando cheguei lá, vi a polícia e um rapaz morto. O homem que disse ter um serviço pra mim assassinou aquele menino a facadas e levou todo o seu dinheiro”, revela.
Assim como Pedro Silvano, o jovem também foi ludibriado pela promessa de um bom trabalho em Londrina. Um dos investigadores explicou que o criminoso agia em grupo e possivelmente era responsável pela morte de nove migrantes nordestinos. O cearense se recordou que o assassino lhe perguntou pela manhã se ele tinha algumas economias para recomeçar a vida em outro lugar. “Respondi que sim. Ele só sorriu e falou que assim ficaria mais fácil me ajudar porque o patrão dele só queria gente de visão, não gente morta de fome e desesperada”, rememora.
Dias depois, Pedro ouviu falar novamente de Londrina quando estava em um bonde. Intrigado, conversou com o irmão sobre a cidade e juntos decidiram se arriscar no Norte do Paraná. Se despediu de São Paulo levando lembranças de uma criança pulando a cerca, uma mulher amamentando um bebê, dois homens bem vestidos apertando as mãos e o riso da cantora Carmen Miranda. Eram imagens publicitárias do achocolatado Toddy, leite condensado Moça, medicamento Melhoral e creme dental Eucalol.
“Uma musiquinha de rádio que ‘grudou na minha cabeça’ naquele tempo era a da Brilhantina Glostora. Cantava assim: ‘A elegância masculina, ô ô ô ô, Aurora, brilha mais com brilhantina, ô ô ô ô, Glostora’. Ainda tinha aquele chiadinho de fundo que fazia sonhar acordado”, cita com um sorriso largo. Depois de alguns anos em Londrina, Silvano ficou sabendo que havia melhores oportunidades no Noroeste do Paraná. Por isso se mudou mais uma vez.
Em Paranavaí, descobriu na prática que alguns fazendeiros tinham preferência por colonos analfabetos, justificando que poderiam dar menos problemas do que os “letrados”. Preocupado com a situação, Pedro Silvano, que sabia realizar as quatro operações básicas de matemática, decidiu se reunir escondido com outros colonos para ensiná-los o que sabia. “Muita gente era enganada, então mesmo sem saber ler e escrever eu fazia o possível pra contribuir”, afirma, referindo-se a uma época em que mais de 50% da população brasileira com idade acima de 15 anos era analfabeta, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O cearense, assim como muitos outros migrantes com quem trabalhou, ajudou vários patrões a enriquecerem antes e depois da monocultura cafeeira. “Não ganhei o suficiente para ficar numa situação confortável. Patrão nenhum permitiria isso. Eles queriam o colono como dependente deles. Talvez eu também não tenha enxergado as boas oportunidades. Só comprei minha primeira casa há menos de dez anos. Mas agora não quero perder tempo me queixando. Vou apenas continuar vivendo, aproveitando a vida como posso”, pondera enquanto limpa o quintal com as mãos calejadas, de pele tão fina que parecem diáfanas. Antes de se despedir, Pedro Silvano exibe com orgulho uma pequena horta onde cultiva alface, rúcula, cenoura, tomate, abobrinha, manjericão, ervilha, cebola e espinafre. “Agora você viu minha riqueza”, declara com um olhar pudico e singelo.
Pedro Silvano se reunia com a família em torno de uma fogueira
O migrante cearense Pedro Silvano começou a trabalhar com seis anos e, apesar de nunca ter ingressado em uma escola, chama a atenção pelo vasto conhecimento baseado na cultura oral. Quando criança, se reunia com a família em torno de uma fogueira ou de uma mesa próxima a um fogão à lenha para ouvir causos, charadas e histórias que misturam realidade e fantasia. Sem saber ler e escrever, exercitou com rigor a força de vontade para reter na memória, com requinte de detalhes, tudo que aprendeu vendo e ouvindo.
De acordo com Silvano, o ouvido de um analfabeto pode não ser tão aguçado quanto o de um cego, mas facilmente ultrapassa o de uma pessoa alfabetizada que não valoriza o que possui. “Me considero um ignorante, um ignorante de sorte porque carrego dentro de mim centenas de histórias”, argumenta. Além de muitos fatos e causos pouco conhecidos que remetem ao realismo fantástico, o cearense afeiçoado ao cordel sabe de cor muitas histórias de escritores populares como Cego Aderaldo, Leandro Gomes de Barros, Patativa do Assaré, João Martins de Athayde, João Melchiades Ferreira, Silvino Pirauá, José Camelo de Melo Resende, Zé da Luz, José Pacheco, Manoel Camilo dos Santos e Manuel d’Almeida Filho.
Saiba Mais
Tirar os calço significa ir embora.
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Meu primeiro encontro com a morte
Tentei tocar o chão abaixo dos meus pés, mas estava fundo demais
Meu primeiro encontro com a morte foi em janeiro de 1993. Aconteceu de forma casual, inocente, incauta e avassaladora, assim como muitas das nossas experiências na infância. Meus pais tinham planejado no final de 1992 uma viagem para o litoral norte de Santa Catarina.
Saímos de casa numa madrugada, por volta das 4h, um horário que sempre agradou meus pais pela grande possibilidade de não encontrarmos muitos veículos na estrada, ao menos nas primeiras horas de viagem. Admito que o sono ficou bem leve ao saber que sairíamos cedo rumo a novos destinos. Acordei com a respiração ofegante e expansiva do Happy e do Chemmy ao pé da orelha. Eram dois cãezinhos da raça poodle parecidos com dois grandes flocos de neve.
O Happy vivia com a língua de fora, como se quisesse falar e não latir. Ostentava um semblante jubiloso, dando a impressão de passar o dia inteiro sorrindo. Já o Chemmy possuía olhos tão expressivos que me transmitiam uma cândida melancolia. Em síntese, era menos agitado e mais carinhoso. Em comum, apesar das diferenças de personalidade e fisionomia, os dois eram dotados de uma postura altiva e indefectível. Só sentavam ou deitavam no chão com as patas sobrepostas, formando um X de formas itálicas. No dia da partida, pedimos à minha avó Clara para cuidar da casa e dos animais.
Em parte, o percurso foi relativamente tranquilo, até porque meus pais gostavam de parar em locais que não conhecíamos, tornando a viagem mais proveitosa e divertida. Quando chegamos a Matinhos era quase meia-noite e me surpreendi ao ver uma movimentação de centenas de pessoas pelas ruas. Eu, acostumado a uma realidade em que 22h já era tarde, não sabia que existiam cidades noturnas.
Havia muitas luzes, o suficiente para me fazer crer que a escuridão não tinha vez naquele lugar. A experiência me lembrou a reação de uma criança estrangeira ao ver o fulgor do sol da meia-noite em Luossavaara, no extremo norte da Suécia. Os letreiros enormes e brilhantes no centro de Matinhos iluminavam as ruas, as calçadas e os passantes. Também serviam como juncos para corujas urbanas que assistiam skatistas adolescentes saltando bancos, pequenas rampas e executando rock slides enquanto sorriam e seguravam latinhas de Coca-Cola, Taí e Fanta.
Os arroubos da urbanidade confundiam os vaga-lumes que se misturavam aos remanescentes piscas-piscas de Natal, talvez pensando que fossem parentes. Alguns jovens miravam a lua, balançavam os braços, bebiam cerveja em saquinhos, gargalhavam e cantavam Under The bridge, do Red Hot Chilli Peppers. Outros continuavam hipnotizados no interior de uma casa de fliperamas com mais de 40 máquinas.
De longe, eu ouvia sons retumbantes de tiros, saltos, acelerações, derrapagens, socos, chutes e musiquinhas eletrônicas monofônicas e polifônicas. O local estava cheio de adolescentes e crianças acompanhadas dos pais. A empolgação no interior me lembrou a cena em que Marty McFly, interpretado por Michael James Fox, observa crianças jogando fliperama em De Volta Para o Futuro 2. Chips, refrigerante, chiclete em rolo, Freshen Up, Minichiclets, Mentex e Lollo abasteciam os jogadores alheios ao que acontecia nas ruas. Rodeados de testemunhas, os desinibidos e impetuosos falavam alto e apertavam os botões com força. Logo entendi que queriam deixar suas marcas nas máquinas.
Lá fora, o céu não estava muito escuro. Suspeitei que estivesse absorvendo as cores e as luzes dos lugares, das pessoas e dos animais que ajudaram a compor um cenário notívago tão complacente. Percorri centenas de metros dentro e fora do carro. Não vi discussões, trocas de ofensas, nem violência. Quando um rapaz pisou em falso na calçada e caiu em frente a um automóvel no asfalto, um senhor imediatamente desceu do carro e o ajudou a se levantar.
Mais adiante, um motociclista se descuidou ao admirar uma bela moça em traje de verão que andava rente ao meio-fio. Como consequência, bateu na carroceria de uma caminhonete. Ao ver o jovem caído, o motorista de aproximadamente 50 anos desceu e ignorou os arranhões na lataria. “Você tá bem? Quer que peça ajuda?”, indagou. Apesar do susto, o motociclista não se machucou e a moto sofreu apenas riscos superficiais. O dono da caminhonete considerou o prejuízo mínimo e se recusou a cobrar. Agradecido, o rapaz se despediu com um sorriso portentoso e um aperto de mão consistente.
Após alguns dias em Santa Catarina, acordamos cedo numa manhã ensolarada e fomos a uma praia entre Itajaí e Balneário Camboriú. Havia pouca gente em frente ao mar calmo e convidativo. Sentei um pouco na areia para observar tudo à minha volta. Notei que o céu estava especialmente azul, límpido e com um recorte amarelo amendoado que parecia a entrada de um portal para lugar algum. Também avistei suas nuvens envolvendo e afagando nove gaivotas.
Minutos depois, me levantei e avisei meus pais que eu entraria no mar. Como manda a tradição, me disseram para ter cuidado e ficar próximo da margem. Comecei a brincar na água, numa área tão rasa que me permitia ficar agachado ou sentado afundando as mãos na areia. Quando enjoei, caminhei mar adentro, sentindo o peso cada vez maior da água sobre o meu corpo. Estava tudo bem. Percebi pessoas perto de mim e o mar ainda não tinha tocado os meus ombros. De repente, enquanto eu sorria e via meus pés penetrando a areia, as águas se rebelaram. O impacto de uma grande onda me arrastou alguns metros mar adentro.
Confuso e sem enxergar direito, engoli a água salgada que invadiu minha garganta com tanta aspereza que quase engasguei. Tentei tocar o chão abaixo dos meus pés, mas estava fundo demais. Não havia ninguém nas imediações. Observei ao longe apenas fisionomias desfocadas. Me debati contra a água, tentando nadar. Não adiantou. Outra onda me arrastou e desta vez para o fundo do mar.
Bebi muita água a contragosto e comecei a ter rápidas alucinações. Imaginei alguém me puxando pelos pés. Meus olhos e garganta queimavam de forma vertiginosa. Tanto que minha visão enturveceu gradualmente, abalando minha crença na sobrevivência. Fui tomado por lembranças fugazes dos poucos parentes e amigos falecidos. “Não! Eu não quero encontrar vocês ainda. Quero ver minha família. Eles estão logo ali, bem mais perto de mim do que qualquer um de vocês. Sou criança ainda. Por favor!”, pensei. Ao mesmo tempo, senti o palato abrasado e as lágrimas caindo do meu rosto como chuva de verão.
Para minha surpresa, antes que fosse vencido pelas câimbras, o mar se acalmou. Eu continuava muito longe da margem, só que ganhei o direito de nadar. Então coloquei em prática o que aprendi nas aulas de natação com meu pai em 1992. Mesmo combalido, cheguei à beira-mar. O medo de morrer era tão grande que só parei de nadar quando a areia tocou meus joelhos. Saí da água rindo e chorando ao mesmo tempo, com as pernas cambaleando, o rosto pálido e os lábios arroxeados. Não consegui dar outro passo e caí deitado.
Minha família chorou comigo. Naquele dia o salva-vidas sumiu e quando meus pais me localizaram eu já estava nadando. Eles viram apenas meus braços curtos e meus cabelos negros e lisos se movendo na água. Antes de me levantar da areia para ir embora, observei novamente o céu. O recorte amarelo amendoado tinha se dissipado, mas não as nove gaivotas que recebiam as carícias das nuvens que cobriam o mar da Praia Brava.
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Um banho de sangue sérvio
A incrível história de sobrevivência de Bogdan Bukumiric
Em 13 de agosto de 2003, Bogdan Bukumiric tinha 15 anos quando foi baleado oito vezes. O motivo? Ser sérvio. Apesar da crueldade com a qual foi surpreendido, o jovem sobreviveu e dias depois já estava fora do coma. Até hoje, Bukumiric não sabe quem foi o responsável pelo banho de sangue contra todas as crianças e adolescentes que descansavam no Rio Bistrica, perto de Goraždevac, uma aldeia do Kosovo, na península balcânica.
É impossível visitar Goraždevac sem se emocionar com o monumento em homenagem aos jovens vitimados pelos terroristas albaneses. Os rostos de Panto Dakic e Ivan Jovovic estampam a obra que denuncia a maldade vivida por sérvios em um gueto que até então era considerado um oásis. Panto e Ivan foram assassinados enquanto brincavam no Rio Bistrica com um grupo de amigos.
É chocante saber que essa carnificina jamais esquecida pelos sérvios teve a conivência da Organização do Tratado Atlântico Norte (Otan), segundo testemunhas que viviam em Goraždevac. Perto das fotos de Dakic e Jovovic há uma frase profunda em sérvio com os dizeres: “Mais assustador que a morte é ser enterrado vivo.”
Panto e Ivan foram surpreendidos por um grupo de desconhecidos que abriram fogo contra todos que estavam nas imediações do Rio Bistrica. “Quatro de nós ficaram gravemente feridos. O meu quadro era o pior. Os médicos disseram que eu tinha 96% de chance de morrer e 4% de chance de sobreviver”, conta Bogdan Bukumiric, alvejado com oito tiros na emboscada de 13 de agosto de 2003.
Superando todas as expectativas, Bukumiric sobreviveu e hoje vive em Belgrado, na Sérvia, onde lamenta o desrespeito dos albaneses ao monumento de seus amigos mortos. Há várias marcas de tiros na escultura erigida em memória de Panto Dakic e Ivan Jovovic. Nascido em Goraždevac, no Kosovo, Bogdan aprendeu a conviver com os abusos e agressões dos albaneses e da Otan, organização militar intergovernamental que em tese deveria garantir a segurança dos civis em regiões de guerra.
A situação na localidade só começou a melhorar depois de 1999, com o fim da Guerra do Kosovo. “Naquele tempo, a aldeia tinha uma população de apenas mil pessoas e era cercada por assentamentos albaneses. A cidade mais próxima era Peć. Tínhamos sempre que sair para comprar comida escoltados pela Kfor [Força do Kosovo]”, relata Bogdan Bukumiric.
Mas a emboscada no Rio Bistrica não foi o primeiro atentado sofrido pela família Bukumiric. Anos antes, Milica Bukumiric, tia de Bogdan, foi assassinada em frente a própria casa, quando terroristas albaneses arremessaram granadas no seu quintal. O garoto cresceu sendo obrigado a se isolar para sobreviver. Teve uma infância difícil, sem entretenimento ou possibilidade de viajar para outros lugares. “Só tínhamos a nossa comunidade e a escola. Viver era muito arriscado”, admite.
Em 13 de agosto de 2003, cansados da monotonia na aldeia, os amigos de Bukumiric passaram em sua casa e o convidaram para dar um mergulho no Rio Bistrica. Como se prevesse o pior, o pai de Bogdan disse que ele deveria ficar em casa, até porque a água estava muito fria, especialmente naquele dia. “Então eu perguntei de novo, ele acabou cedendo, mesmo sem querer. Havia bastante crianças no rio, além de jovens adultos e pais. Como fazia muito frio, fiquei perto do fogo. Em menos de dez minutos, ouvi tiros de metralhadora. Eu e meus amigos estávamos mais próximos dos terroristas”, lembra.
Em questão de segundos, três balas atingiram o lado esquerdo de Bogdan que conseguiu ver uma grande movimentação na floresta. Outros tiros o acertaram no peito, estômago e cabeça. Ele se recorda que a oitava bala se alojou em sua perna esquerda. O garoto só teve tempo de gritar bem rápido por ajuda, cair, tentar se levantar e em seguida sentir a vida se esvaindo.
Os sérvios não atingidos pegaram Bukumiric nos braços e o levaram para um hospital na base militar da Kfor. Infelizmente, não havia médicos e os primeiros socorros foram feitos em uma pequena clínica local. A primeira medida era estancar o sangramento. Ainda consciente, Bogdan pediu para afastarem seu irmão da sala de emergência, evitando ser visto em estado tão preocupante. Um senhor sérvio exigiu que a Kfor levasse Bukumiric para o hospital em Peć. O pedido foi negado e muitas desculpas foram dadas.
Por conta e risco, o irmão de Bogdan e um vizinho o transportaram de carro até Peć, uma cidade de predomínio albanês. Tentando mantê-lo acordado, os dois disseram: “Bogdan, espere, você é um herói e vai sobreviver!” O garoto retribuiu afirmando: “Não me renderei!” Perto de um mercadinho em Peć o motor do carro parou. Como a placa do veículo era sérvia, os albaneses os atacaram. O automóvel foi destruído e nenhuma das janelas ficou intacta. Para piorar, tentaram arrastar os três garotos para fora do carro. O vizinho e o irmão de Bogdan foram atingidos com pedras enquanto tentavam ligar o veículo e se defender, mantendo os punhos sobre a cabeça.
Mesmo com uma pessoa quase morta dentro do carro, os albaneses não demonstraram misericórdia. A sorte dos três foi que minutos depois apareceram dois carros de patrulha da Kfor. “Só os vi atirando para o ar, espantando os agressores. Não demorou e entrei em coma. O que soube depois me foi relatado por amigos”, enfatiza Bukumiric, levado para um hospital de Peć, onde também estava em estado grave o amigo Panto Dakic que não sobreviveu.
Naquele dia, uma médica albanesa tentou examinar Panto, mas o pai do garoto não permitiu, preocupado que garantissem sua morte. Um médico sérvio alertou sobre a importância de levar Bogdan de helicóptero até o Norte de Kosovska Mitrovica. Para isso, era preciso a permissão da Kfor. Três horas depois, Marco Bogicevic, outra criança ferida no atentado, chegou a Peć em um helicóptero. No mesmo veículo, enviaram Bukumiric para o hospital da Kfor em Mitrovica.
Depois de operarem o baço do garoto e extraírem uma bala a dois milímetros do rim esquerdo, os médicos franceses da Kfor perceberam que dificilmente o garoto sobreviveria, pois não havia nenhum neurocirugião para dar continuidade aos procedimentos. Ciente da gravidade da situação, o médico Milenka Cvetkovic desempenhou um papel crucial que evitou a morte de Bogdan. Cvetkovic insistiu para o levarem até Belgrado, na Sérvia. Aí surgiu um dilema porque a Kfor não permitia o desembarque de helicópteros sérvios sem autorização.
A solução apresentada pelo médico foi transportar Bukumiric de carro até a Academia Médica Militar de Belgrado. Mesmo com a pressão extremamente baixa, e perdendo os sinais vitais, tiveram de aguardar 11 horas para chegar a Belgrado com toda a documentação necessária. Bogdan já estava com pouco sangue, então foi preciso realizar uma transfusão emergencial na Academia Militar. A cirurgia só pôde ser feita no dia seguinte.
Em 19 de agosto, o prognóstico ainda era o mesmo. As chances de sobrevivência se resumiam a 4%. Logo que saiu do coma, o garoto teve muita febre em função das lascas de ossos que danificaram o córtex cerebral. Quatro cirurgias mais tarde e uma meningite, Bukumiric conseguiu recuperar os movimentos do lado direito do corpo. Passados alguns meses de muita luta, peserverança e exercícios intensos, Bogdan voltou a andar.
A história de sobrevivência do jovem sérvio chamou a atenção do alto escalão da Missão das Nações Unidas para a Administração Interina do Kosovo (Unmik), inclusive do líder Harri Holkeri, ex-primeiro-ministro da Finlândia que o visitou em Belgrado, onde desejou-lhe melhoras e um rápido retorno a Goraždevac. Bogdan supreendeu Holkeri ao perguntar se ele já havia prendido os criminosos.
“Ele não esperava esse tipo de pergunta de um jovem de 15 anos”, confidenciou um funcionário da Unmik. O finlandês explicou que estavam trabalhando nisso, mas não tinham conseguido recolher provas o suficiente. A verdade é que muito tempo se passou e até hoje nada de concreto foi feito. Ao longo dos anos, Bukumiric tentou buscar justiça, se correspondendo com várias organizações internacionais. Algumas assumiram o compromisso de ajudá-lo.
As boas intenções para resolver o caso se estenderam até 2007, quando as investigações cessaram. Apesar de tudo, Bogdan ainda busca justiça. “Fomos atacados por monstros enquanto nos divertíamos no rio. Eles não se importaram nem com as crianças de cinco anos. Foi um plano extremo, de atacar os mais jovens para atingir os mais velhos”, avalia Bukumiric. Embora tenha uma vida praticamente normal, o sobrevivente sérvio ainda não tem controle total sobre o braço esquerdo, mas se anima com a ideia de viajar para a Rússia, onde soube que há excelentes médicos dispostos a tratá-lo.
Desde 2003, Bukumiric, que perdeu a mãe quando tinha apenas cinco anos, mora com o pai e o irmão em um apartamento arrendado em Belgrado. Sensibilizado com a difícil situação financeira de Bogdan, o tabloide sérvio Večernje Novosti lançou uma campanha para arrecadar 59 mil euros para que a família compre um imóvel. “O governo nunca esteve interessado em meu caso, então sou obrigado a contar com a ajuda das pessoas. Tenho formação técnica de eletricista, mas como ainda sofro por causa de algumas limitações preciso me cuidar a maior parte do tempo”, frisa.
Bogdan até hoje não teve a chance de retornar a Goraždevac porque precisa estar em constante observação médica em Belgrado. Os demais sobreviventes do atentado ainda vivem na aldeia, assim como os pais de Panto e Ivan. “Sou orgulhoso de minha aldeia. Temos a igreja mais antiga dos Bálcãs. Ela foi construída há oito séculos sem um único prego. Acredito que ela protege minha terra natal porque superamos a Primeira e Segunda Guerra Mundial, o Conflito do Kosovo e muitas outras tragédias”, comenta Bukumiric emocionado.
Uma metamorfose social
Lord of the Flies mostra como a necessidade de sobrevivência transforma as pessoas
Lançado em 1990, Lord of the Flies, inspirado no livro homônimo de William Golding – vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, é um filme do cineasta inglês Harry Cook que chegou ao Brasil com o título O Senhor das Moscas e mostra como a necessidade de sobrevivência transforma os seres humanos. Na obra, um grupo de crianças resiste a uma queda de avião no oceano e encontra abrigo em uma ilha.
Logo nos primeiros dias, Ralph (Balthalzar Getty), o mais maduro dos garotos, demonstra aptidão para a liderança, deixando claro, apesar da pouca idade, que o melhor meio de sobreviver e manter o equilíbrio é seguindo um programa diário de direitos e deveres. Para Ralph, todos na ilha desempenham papel importante e insubstituível, o que remete à democracia.
Contudo, Jack (Chris Furrh) antagoniza o idealismo de Ralph. Assim como muitos líderes se aproveitaram de um momento de fraqueza de suas nações para instituir um sistema ditatorial, Jack faz o mesmo na ilha. Com a proposta de oferecer caçadas e brincadeiras aos comparsas, o garoto consegue persuadir quase todos os seguidores de Ralph, com exceção de Simon (James Badge Dale) e Piggy (Danuel Pipoly).
O primeiro é uma criança com uma essência mística que se destaca dos demais pela sensibilidade aguçada. O segundo representa a ciência, o juízo e a razão. Mas ninguém personifica melhor a metamorfose social do homem do que Jack. O garoto aparentemente amistoso se torna agressivo após formar um grande grupo de dissidentes. Embriagado pelo poder, se recusa a refletir sobre as propostas dos companheiros. O novo líder mergulha os passivos discípulos em uma realidade truculenta, chegando a perder a capacidade de ver a si e aos outros como crianças e adolescentes.
Jack cede espaço ao ódio indiscriminado e se isenta de culpa por todos os atos de injustiça, crente de que sacrifícios são válidos por um “bem maior”. O cineasta Harry Cook explora a transformação do personagem através de fortes expressões faciais, maquiagem pesada e vestimentas que se definham. Tudo se soma na construção simbólica da decadência do homem como ser social, marcado pelo retorno ao estado primitivo.
Curiosidade
O primeiro filme baseado na novela de William Golding, de 1954, foi lançado em 1963 pelo cineasta britânico Peter Brook.
O avião que caiu na mata noroestina em 1947
A queda do teco-teco nas imediações do Rio Ivaí quase custou a vida de dois jovens
Em 1947, a região Noroeste do Paraná foi cenário de um acidente aéreo que quase terminou em tragédia nas imediações do Rio Ivaí. À época, o fato chamou muita atenção e sensibilizou a população de Paranavaí que se uniu para orar e procurar as vítimas.
Naquele ano, dois jovens de Cafelândia, na mesorregião de Bauru, interior de São Paulo, filhos de um conhecido produtor rural, deixaram a cidade natal em um avião monomotor do tipo teco-teco e vieram em direção ao Paraná para fechar uma negociação de produção de café.
Durante a viagem, pouco tempo depois entrarem no Paraná, foram surpreendidos pelo mau tempo, fortes correntes de ar frio que faziam com que o veículo balançasse bastante. Como o avião era relativamente leve, os rapazes não conseguiram manter a estabilidade por muito tempo, nem encontrar um local para pousar, já que estavam em área de mata primitiva próxima ao Rio Ivaí.
Não demorou muito, o temporal se intensificou e o frágil teco-teco foi ao chão, levando junto os dois passageiros. Dias mais tarde, a população de Paranavaí foi informada que aconteceu um acidente aéreo e dois jovens estavam desaparecidos. “Eu rezei muito por eles”, disse a pioneira Inez Colombelli em entrevista à Prefeitura de Paranavaí décadas atrás.
Houve muita comoção na cidade. Enquanto alguns se voluntariavam para dar início a busca e salvamento, outros não acreditavam na possibilidade dos rapazes terem sobrevivido. “Naquele tempo, um acidente de avião era como uma coisa do outro mundo. Quando alguém falava disso, a maioria dava a morte como certa”, comentou o pioneiro cearense João Mariano.
Mesmo assim, Inez e muitas outras pioneiras de Paranavaí oravam todos os dias pela salvação dos dois jovens. De acordo com a senhora Colombelli, as preces foram atendidas, pois 17 dias após a queda do avião os rapazes chegaram a Paranavaí. Estavam exauridos e famintos, mas felizes por verem pessoas depois de tanto tempo. “Quando apareceram no povoado, estavam barbudos e com as roupas todas rasgadas”, relatou o pioneiro catarinense Carlos Faber.
Os sobreviventes foram bem recebidos pela comunidade. No mesmo dia, enquanto alguns se preocupavam em oferecer um local de descanso e alimentá-los, outros trataram de entrar em contato com a família das vítimas em Cafelândia. O mais surpreendente é que ninguém estava gravemente ferido. O que garantiu a sobrevivência dos dois jovens foi a rica vegetação da região, principalmente as árvores que amorteceram o impacto da queda do monomotor.
Segundo os sobreviventes, dificilmente estariam vivos se o teco-teco caísse diretamente no solo. O que também chamou a atenção é que a mata primitiva do Noroeste do Paraná era conhecida por ser habitada por muitos animais selvagens. Os rapazes relataram que quanto a isso não enfrentaram nenhum perigo. Por precaução, sempre paravam para descansar quando anoitecia, normalmente em locais altos e de boa visibilidade. A alimentação era improvisada com frutos, até mesmo desconhecidos. Foi o risco que correram para garantir a sobrevivência.
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