David Arioch – Jornalismo Cultural

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Elsie Shrigley, uma mulher de destaque na história do veganismo na Inglaterra

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Sally ajudou a fundar a Vegan Society e assumiu a presidência da entidade a partir de 1960

Elsie Shrigley ajudou Donald Watson a fundar a Vegan Society (Acervo: Vegan Society)

Elsie Beatrice Shrigley é um nome pouco conhecido entre veganos do mundo todo, embora tenha sido uma das cofundadoras da Vegan Society, na Inglaterra, e desempenhado importante papel na história do movimento vegano, que passou a existir formalmente em 1944, após a idealização dos termos “vegan” e “veganism”.

Normalmente quando se fala na história do veganismo na Inglaterra, o nome que desponta com mais frequência é o do carpinteiro Donald Watson, que passou a ter a sua imagem associada à Vegan Society desde o início. No entanto, Elsie Shrigley, mais conhecida como Sally, uma possível referência ao seu sobrenome de solteira – Salling, não teve um papel de pouca relevância na articulação do movimento vegano inglês que se espalharia pelo mundo.

A pesquisadora Samantha Calvert, coordenadora de comunicação e relações públicas da Vegan Society, que tem contribuído no resgate de aspectos históricos pouco claros da entidade, aponta Elsie Shrigley como uma mulher que em parceria com Donald Watson articulou uma coalizão com os vegetarianos da época que não concordavam com o consumo de laticínios, mel e outros alimentos e produtos de origem animal – ou seja, indo muito além da abstenção do consumo de carne, que fazia parte da típica realidade dos vegetarianos britânicos.

Antes, Donald Watson e Sally tentaram criar um grupo com essa proposta como uma ramificação dentro da tradicional Vegetarian Society, de Londres, fundada em 30 de setembro de 1847, e da qual já faziam parte. Porém o pedido foi declinado pelo conselho consultivo da entidade. Talvez especialmente porque Watson, Sally e outros vegetarianos estritos solicitaram também um espaço no principal veículo de divulgação das ideias da inglesa Sociedade Vegetariana, ou seja, o periódico Vegetarian Messenger, onde imaginavam ter a oportunidade ou abertura de discutir o paradoxo do consumo de outros alimentos de origem animal – e não apenas sobre as implicações do consumo de carne.

A proposta também foi rejeitada, e assim surgiu um grupo dissidente em agosto de 1944, mas que começou a se consolidar após a fundação da Vegan Society no The Attic Club, no distrito londrino de Holborn, em novembro de 1944. Na ocasião, apenas meia dúzia de pessoas participaram da reunião organizada por Donald Watson e Elsie Shrigley, embora a sociedade já somasse 25 membros registrados após a sua fundação.

Segundo Samantha, talvez a Vegan Society não teria sobrevivido se não fosse pelo trabalho duro de Donald Watson nos primeiros anos – inclusive a idealização da revista The Vegan foi uma iniciativa dele. Contudo, Sally já despontava também como uma liderança, inclusive mais tarde assumindo a presidência da Vegan Society.

Uma informação praticamente desconhecida sobre Elsie Beatrice Shrigley é que possivelmente ela foi a primeira pessoa a criar uma lista de produtos livres da exploração animal – isto em 1947. Entre os produtos que ela pesquisou e listou como liberados para veganos estavam biscoitos e chocolates. A lista foi publicada no periódico The Vegan, e contribuiu consideravelmente para facilitar a vida dos veganos da época.

Tendo participado ativamente da Vegan Society desde o princípio, Sally foi eleita para assumir a presidência da Vegan Society a partir de 1960. De acordo com Samantha Calvert, Elsie Shrigley era tão engajada nos ideais do movimento vegano que ocupou todas as posições oficiais da Vegan Society, entidade a qual serviu até 13 de maio de 1978, quando faleceu em Tonbridge, no condado de Kent. “Foram incríveis 33 anos de serviço. Ela também foi delegada da Vegan Society para muitos congressos internacionais da União Vegetariana Internacional”, garante a pesquisadora e coordenadora de comunicação da Vegan Society.

Ainda assim, não há tantas informações disponíveis sobre a vida de Sally. Um artigo publicado no periódico The Vegan, no verão de 1967, revela que ela viveu com os pais em Hampstead, a noroeste de Charing Cross, até casar-se com o dentista Walter Shrigley em 1939, de quem adotou o sobrenome. Embora tenha nascido em Londres, Elsie era de origem escandinava e falava dinamarquês fluentemente. Depois de passar pela Chelsea College of Physical Training, onde estudou educação física com enfoque em ginástica, ela decidiu enveredar pelo caminho da música e passou a dar aulas de piano de 1932 a 1939.

No início da Segunda Guerra Mundial, Sally Shrigley morava em Purley, ao Sul de Londres, onde atuou como bombeira voluntária para a Fire Guard Services. Também trabalhou na unidade móvel de Swiss Cottage, em Hampstead, onde dava suporte às enfermeiras. De 1940 a 1958, ela foi Secretária honorária da Sociedade Vegetariana de Croydon, e mais tarde ocupou o mesmo cargo na Sociedade Vegetariana de Surrey.

“Seus serviços foram solicitados pela Sociedade Vegetariana de Londres [que era uma organização nacional separada na época, comparável à Sociedade Vegetariana do Noroeste] que a convidou para ser a sua secretária-adjunta por três meses antes da nomeação de um novo secretário. Sally foi uma figura importante no início do movimento vegano e acabou relegada à sombra de Donald Watson. Indiscutivelmente, as contribuições de muitas mulheres para os movimentos reformistas sociais são ofuscadas dessa maneira”, avalia Samantha Calvert.

Saiba Mais

Elsie Beatrice Shrigley (Elsie Beatrice Salling) nasceu 30 de outubro de 1899 e faleceu em 13 de maio de 1978.

Referências

Calvert, Samantha. In Search of Sally – The lesser known founder of the Vegan Society with Donald Watson (2016)

Know Your Roots. The Vegan Society (2 de setembro de 2016)

The Vegan. Páginas 2 a 5 (Verão de 1967).

Fox, Sarah W. Elsie Shrigley: The woman behind the word veganism (30 de abril de 2017).





Ângelo Jorge, o escritor português que sonhava com um mundo vegetariano

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Ângelo Jorge, um dos criadores do primeiro movimento vegetariano português

Nascido em 4 de setembro de 1883, o escritor português Ângelo Jorge, da Freguezia de Santo Ildefonso, na cidade do Porto, foi um dos criadores do primeiro movimento vegetariano português, que surgiu no início do século 20. Mas, antes disso, viveu parte da sua juventude no Brasil, para onde se mudou com seus pais aos nove anos. Na adolescência, rejeitou a ideia de atuar na área comercial quando descobriu a vocação para as letras.

“Toda a sua inclinação era para os livros e para os jornaes. Aos 10 annos deu início aos seus trabalhos literários (…)”, escreveu João Paulo Freire no Segundo Volume de “Poetas Portuenses – Antologia e Notas”, lançado em 1924 pela Editora Companhia Portuguesa. Depois de atuar como jornalista no Brasil, retornou a Portugal aos 18 anos, onde defenderia a alimentação vegetariana e, mais especificamente, o frugivorismo. “Se os homens voltarem a ser frugívoros, a questão social será resolvida”, escreveu na obra “A Questão Social e a Nova Ciência de Curar”, publicada em 1912.

Entre os anos de 1909 e 1911, Ângelo Jorge foi secretário de redação da revista “O Vegetariano”, fundada pelo médico português Amílcar de Sousa. O jornalista tinha total liberdade na produção de conteúdo. Em seu artigo “O meu vegetarismo”, de cunho filosófico, Jorge declarou que os homens não se devoram mutuamente, mas devoram outros animais. “Acha-se bárbaro e repugnante dar a morte a um homem com o fito de se lhe comer a carne, mas julga-se naturalíssimo e agradável matar uma ave, um boi, um carneiro ou um coelho, com o mesmíssimo fim de os devorarmos sem piedade”, criticou.

Catarina Rola, da Universidade de Lisboa, escreveu na página 18 da dissertação de mestrado “Vegetarianismo e Comportamento Alimentar”, publicada em 2015, que Ângelo Jorge foi o grande responsável pela fundação da Sociedade Vegetariana de Portugal em 1911. O jornalista era considerado não apenas um idealista, mas um utopista. Sonhava com um mundo vegetariano, e esse sonho que ele via como um objetivo a ser alcançado deu origem à novela naturista e utopista “Irmânia”, publicada em 1912 e reeditada em 2014.

No livro de pouco mais de 100 páginas, ele retrata uma sociedade vegetariana distante da atual civilização moderna; uma sociedade que reconhece que a maneira como nos alimentamos endossa ou rejeita a violência que impomos aos outros animais. Em um diálogo de “Irmânia’, um choque de realidade surge durante um diálogo entre o vegetariano Apolínio e um náufrago que veio de uma terra onde os animais são objetificados e reduzidos a alimentos:

Três vaquinhas pretas de malhas brancas estavam deitadas sobre a relva, as tetas muito cheias, oferecendo-se aos bezerrinhos que as rodeavam.
— Pormenor interessante! exclamou Manfredo. Até nisso se revela a encantadora brandura dos vossos hábitos. A confiança com que estes animais vêm até nós, prova bem que não estão acostumados a que os maltratem.
— Não é como na vossa terra? Perguntou Apolínio.
— Lá, respondeu o náufrago, sob o pretexto de que é o rei da criação, o homem transformou-se no carrasco dos outros seres. A uns, mata-os e devora-os; a outros, fá-los bestas de trabalho; a estes, porque são lindos e estima a sua companhia, rouba-lhes a liberdade e conserva-os presos em casa; àqueles, prejudica-os de várias formas. Por exemplo: vós, em Irmânia, por certo nunca comeste os ovos destas galinhas nem provaste o leite daquelas vacas…
— Não, com certeza. Depois de grandes não costumamos mamar, respondeu com ingenuidade o moço filho de Herculino. E quanto aos ovos de galinha, são destinados ao nascimento dos pintainhos, só.
— Pois nós outros, porque somos muito civilizados, bebemos o leite que as vacas têm para amamentação dos seus bezerros, e comemos os ovos que as galinhas põem para reprodução da sua espécie.
– Seríeis capazes, pelo que vejo, de comer a própria lua, se algum dia ela caísse na tolice de vir cá baixo! concluiu, com graça, Apolínio.

 Ângelo Jorge, assim como o escritor brasileiro Carlos Dias Fernandes, seu contemporâneo, e que também colaborou com a revista “O Vegetariano”, era defensor da alimentação frugal, ou seja, o mais simples possível. Acreditava que assim o ser humano, além de ajudar a extinguir doenças comuns à época, também gerava menos impacto à natureza, o que beneficiava diretamente os animais.

Jorge faleceu em 17 de novembro de 1922, mas deixou uma filha chamada Armanda-Julia Jorge, educada, de acordo com o artigo “O Utopista portuense Ângelo Jorge: Subsídios para a sua biografia”, de Iza Luso Barbosa, seguindo os princípios da sua obra “A Questão Social e a Nova Ciência de Curar”, de 1912. Ou seja, o escritor português deixou uma filha vegetariana, que é a prova de que colocava em prática tudo que escrevia e em que acreditava. “ É forte, saudável, alegre. A Doença hade sempre para ella ser um mytho; e assim, será no futuro mais uma irrefutável prova da verdade naturista”, registrou Ângelo Jorge na legenda da foto da filha publicada em “A Questão Social e a Nova Ciência de Curar” em 1912.

Referências

Jorge, Ângelo. A Questão Social e a Nova Sciencia de Curar. Biblioteca Vegetariana, Vol. IV. Sociedade Vegetariana de Portugal (1912).

Jorge, Ângelo. Irmânia (1912). Edições Quasi (2004).

Barbosa, Iza Luso. O Utopista Portuense Ângelo Jorge: Subsídios para a sua biografia. E-topia: Revista Electrónica de Estudos sobre a Utopia, n.º 5 (2006). ISSN 1645-958X (Disponível em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/1648.pdf)

Rola, Catarina. Vegetarianismo e Comportamento Alimentar. Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (2015). Página 18. (Disponível em http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/27280/1/11253_Tese.pdf)

Vegetarianos há mais de um século. Sociedade Vegetariana Portuguesa (31 de março de 2013). (Disponível em http://www.avp.org.pt/notiacutecias/vegetarianos-h-mais-de-um-sculo)

Metello, Nuno. O vegetarianismo em Portugal já tem barbas brancas. Biosofia.  (Disponível em http://biosofia.net/2012/10/17/o-vegetarianismo-em-portugal-ja-tem-barbas-brancas)





Peter Cushing, do cinema de terror para a Sociedade Vegetariana

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“Amo os animais, e quando estou no país [Inglaterra], sou um dedicado observador de pássaros”

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Peter Cushing na franquia “Frankenstein” (Foto: Reprodução)

O ator britânico Peter Cushing foi um dos maiores nomes do cinema de terror, além de um dos artistas mais celebrados da Hammer Films, produtora que lançou clássicos como “Dracula”, “The Mummy” e a franquia Frankenstein, iniciada com “The Revenge of Frankenstein”.

Cushing sempre contracenava com outros nomes de peso da arte cinematográfica, como Christopher Lee e Vincent Price. Embora interpretasse muitos personagens incomuns, enigmáticos e assustadores, Cushing era um sujeito bastante agradável, educado e que gostava tanto de animais que abdicou do consumo de carne na juventude.

“As pessoas olham para mim como se eu fosse algum tipo de monstro, mas não consigo entender o porquê. Em meus filmes macabros, fui um criador de monstros ou um destruidor de monstros, mas nunca um monstro. Na realidade, sou um camarada gentil. Nunca prejudiquei uma mosca. Amo os animais e, quando estou no campo, sou um dedicado observador de pássaros”, disse em entrevista publicada na ABC Film Review em novembro de 1964.

De acordo com informações do livro “Living Without Cruelty”, de Lorraine Kay, entre as comidas preferidas do ator britânico estavam torradas de pão integral com Olde English Marmalade. Em 1965, ele interpretou o inesquecível Dr. Who em “The Dr. Who and the  Daleks”. Em 1977, viveu o personagem Grand Moff Tarkin, comandante da “Estrela da Morte” no filme “Star Wars Episode IV: A New Hope”.

Em 1966, o ator britânico revelou novamente o seu incômodo em ser confundido com seus personagens, o que na realidade era uma consequência dele ter participado de muitos filmes de terror: “Fico terrivelmente cansado com as crianças do bairro dizendo: ‘Minha mãe diz que ela não gostaria de encontrá-lo em um beco escuro.’”

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Cushing como o professor Van Helsing (Foto: Reprodução)

Em 1971, Peter Cushing perdeu sua esposa Violet Helene Beck, o que provavelmente foi a maior perda de sua vida, deixando-o inconsolável. Em 1982, foi diagnosticado com câncer de próstata, mas optou por não fazer nenhum tratamento agressivo. Em 1987, o ator recebeu um convite para assumir a função de patrono da Vegetarian Society (Sociedade Vegetariana), sediada em Manchester, na Inglaterra. Assumiu o cargo orgulhosamente até 11 de agosto de 1994, quando faleceu aos 81 anos.

“Um vegetariano apaixonado a maior parte de sua vida. Peter Cushing será lembrado como um homem de fala mansa e gentil. Ele amava os animais selvagens e era um dedicado ornitologista. Quando sua esposa faleceu em 1971, ele sentiu que sua vida também acabou. Sua autobiografia, publicada somente 15 anos depois, não faz menção à sua vida após a morte de Helena. Em 11 de agosto de 1994, depois de uma longa doença que ele carregou com característica dignidade, ele se juntou a ela. Seus amigos vão sentir falta de seu deslumbrante intelecto e sagacidade. Sua vida, pela qual damos graça, é um bom testemunho do vegetarianismo. Estamos orgulhosos de ter Peter Cushing como nosso patrono”, publicou a Vegetarian Society no jornal “The Vegetarian” em 1994.

Saiba Mais

Peter Cushing nasceu em 26 de maio de 1913 em Kenley, Surrey, na Inglaterra.

Em 2016, 22 anos após sua morte, Cushing apareceu em “Rogue One: A Star Wars Story”, novamente como Grand Moff Tarkin, por meio do uso de CGI.

Sua carreira como ator começou em 1939 e terminou em 1986.

A Vegetarian Society é a entidade vegetariana mais antiga ainda em atividade. Ela foi fundada em 30 de setembro de 1847.

Referências

Gullo, Christopher. In All Sincerity, Peter Cushing. XLIBRIS (2004).

Kay, Lorraine. Living Without Cruelty. Sidgwick & Jackson Ltd; 1st edition (1990).

http://web.archive.org/web/19981205075607/www.vegsoc.org/HQdata/cushing.html

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A história do veganismo

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“Enquanto o ser humano for implacável com as criaturas vivas, ele nunca conhecerá a saúde e a paz”

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Pitágoras: “Quem semeia assassinato e dor não pode colher alegria e amor” (Arte: Reprodução)

“Enquanto o ser humano for implacável com as criaturas vivas, ele nunca conhecerá a saúde e a paz. Enquanto os homens continuarem massacrando animais, eles também permanecerão matando uns aos outros. Na verdade, quem semeia assassinato e dor não pode colher alegria e amor”, disse o filósofo grego Pitágoras por volta de 500 anos antes de Cristo.

No mesmo período, Siddhārtha Gautama, o Buda, conversou com seus seguidores sobre a importância da alimentação isenta de ingredientes de origem animal. Assim, Pitágoras e Siddhārtha se tornaram as primeiras referências de uma consciência que mais tarde ajudaria a moldar o veganismo.

Muito tempo depois, no século I, o filósofo grego Plutarco escreveu “Do Consumo da Carne”. No Discurso Primeiro, ele define o apetite humano por carne como uma manifestação de luxúria, lascívia supérflua. “Aos inocentes, aos mansos, aos que não têm auxílio nem defesa – a esses perseguimos e matamos. Só para ter um pedaço da sua carne, os privamos da luz do sol, da vida para que nasceram. Tomamos por inarticulados e inexpressivos os gritos de queixume que eles soltam e voam em todas as direções”, registrou.

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Da Vinci: “Além de ajudá-los, se aproxima deles para que eles possam gerar filhos que saciem seu paladar, assim criando sepulturas para todos os animais” (Arte: Reprodução)

Mas foi só a partir do século XV que houve um crescimento exponencial de pensadores e artistas que viram no vegetarianismo uma filosofia de vida em condições de contribuir para a libertação animal e humana, já que ao se alimentar da carne o ser humano torna-se prisioneiro de si mesmo, das suas próprias incoerências.

“Além de ajudá-los, se aproxima deles para que eles possam gerar filhos que saciem seu paladar, assim criando sepulturas para todos os animais. E devo dizer mais, se me for permitido dizer toda a verdade: Não acha que a natureza já produz alimentos o suficiente para que se satisfaça?”, questionou Leonardo da Vinci em citação publicada na obra Quaderni D’Anatomia, I-VI, preservada na Inglaterra pela Biblioteca Real de Windsor.

Em 1580, o filósofo e humanista francês Michel de Montaigne publicou o livro “Ensaios”, dando origem ao gênero situado entre o poético e o didático. E foi nessa obra que dedicou espaço para comentar que as índoles sanguinárias do ser humano em relação aos animais atestam propensão natural à crueldade.

“Em Roma, depois que se acostumaram aos espetáculos de mortes dos animais, chegaram aos homens e aos gladiadores. A própria natureza, temo, fixou no homem um instinto de desumanidade. Perdera-se o prazer de ver os animais brincando entre si e acariciando-se; e ninguém deixa de senti-lo ao vê-los se dilacerarem e se desmembrarem. Os animais foram sacrificados pelos bárbaros para os benefícios que deles esperavam”, enfatizou.

Para Montaigne, a ideia da superioridade do ser humano diante dos animais corrobora a máxima presunção e um falso direito de violência sobre outras espécies. Ele defende que, como racional, o ser humano tem um dever moral em relação aos animais, seres que têm vida e sentimento.

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Rousseau: “Veja ele pelos seus olhos, sinta pelo seu coração; não o governe nenhuma autoridade, exceto a de sua própria razão” (Arte: Reprodução)

No século XIX, surgiram as primeiras obras dedicadas à filosofia de vida vegetariana. E o que impulsionou a concepção mais moderna de vegetarianismo foi o romantismo, movimento artístico, político e filosófico que fez oposição ao iluminismo e ao racionalismo. Pautando-se na natureza, os românticos exaltavam os animais e apontavam as falhas humanas embasadas na crença supremacista.

“Envolvido em um turbilhão social, basta que ele não se deixe arrastar nem pelas paixões, nem pelas opiniões dos homens; veja ele pelos seus olhos, sinta pelo seu coração; não o governe nenhuma autoridade, exceto a de sua própria razão”, declarou o suíço Jean-Jacques Rousseau, precursor do romantismo e defensor do vegetarianismo, em O Bom Selvagem”.

Em 1802, Joseph Ritson lançou o livro “An Essay on Abstinence from Animal Food: as a Moral Duty”, seguido por “The Return to Nature, or, a Defense for the Vegetable Regimen”, de 1811, escrito por John Frank Newton. Em 1813, Percy Bysshe Shelley publicou “A Vindication of Natural Diet”. Já em 1815, William Lambe endossou o discurso em favor do vegetarianismo com a obra “Water and Vegetable Diet”.

Esses quatro escritores britânicos, que também eram ativistas vegetarianos e lutavam pelos direitos dos animais, se tornaram precursores do que conhecemos hoje como veganismo. Suas inspirações vieram de pensadores como Pitágoras, Plutarco e John Milton.

Percy Shelley, um dos precursores do veganismo (Pintura: Joseph Severn)

Percy Shelley, um dos precursores do veganismo (Pintura: Joseph Severn)

Por causa da estreita relação entre romantismo e vegetarianismo que, influenciada pelo marido Percy Shelley, a escritora britânica Mary Shelley publicou em 1817 o famoso romance gótico “Frankenstein”. Em uma das passagens do livro, o monstro vegetariano criado por Victor Frankenstein, repudia o hábito humano de se alimentar de animais:

“Não tenho que matar o cordeiro e a cabra para saciar o meu apetite. Bolotas e bagas são o suficiente para a minha alimentação. Minha companheira vai ser da mesma natureza que a minha, e vai se contentar com o mesmo que eu. Faremos a nossa cama de folhas secas; o sol vai brilhar sobre nós da mesma forma que brilha sobre os homens, e ele vai amadurecer a nossa comida. A imagem que apresento a vocês é humana e pacífica.”

O filósofo utilitarista britânico Jeremy Bentham também advogou pelos animais até falecer em 1832. Afirmava que eles sofrem tanto quanto os seres humanos e qualificou a defesa da superioridade humana como uma forma de racismo. No entanto, foi somente na Inglaterra de 1847 que surgiu formalmente a primeira Sociedade Vegetariana, presidida por James Simpson e vinculada à Bible Christian Church.

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Carlos Dias Fernandes já tentava difundir o vegetarianismo no Brasil na década de 1920 (Foto: Reprodução)

Três anos depois, Sylvester Graham, inventor da popular indústria Graham Cracker, fundou nos Estados Unidos a Sociedade Vegetariana Americana. Ministro presbiteriano, Graham incentivava seus seguidores a levarem uma vida virtuosa pautada no vegetarianismo, na moderação e na abstinência, assim como já faziam no Oriente os seguidores do budismo, hinduísmo e jainismo. Em 1897, a pioneira Sociedade Vegetariana, sediada na Inglaterra, já contava com cinco mil membros.

No Brasil, um dos divulgadores do vegetarianismo era o jornalista e poeta paraibano Carlos Dias Fernandes, autor do livro “Proteção aos Animais”, de 1914. Na obra, Fernandes, que não era religioso, cita religiões e crenças que endossam o papel do ser humano como protetor dos animais e da natureza. Polêmico, chegou a discutir com profissionais de saúde da época que defendiam o consumo de carne. Talvez o maior exemplo tenha sido a sua rixa com o então conceituado médico José Maciel.

A seu favor, o poeta e jornalista tinha o médico higienista Flavio Maroja que publicou no jornal A União de 30 de agosto de 1916 um artigo intitulado “Hygiene Alimentar: Regimen Vegetariano e Regimen Carneo, confronto de opiniões, como penso a respeito”, que fala dos benefícios do vegetarianismo.

Em 26 de janeiro de 1917, Carlos Dias Fernandes comemorou a fundação da Sociedade Vegetariana Brasileira, sediada no Rio de Janeiro, e publicou matéria sobre o assunto. “Vai ganhando surto em todo mundo civilizado o regime vegetariano como solução prática do problema moral, economico e therapeutico dos povos. (…) Vegetarianismo quer dizer vida de accôrdo com a natureza”, registrou.

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Gandhi fazia parte do comitê executivo da Sociedade Vegetariana (Foto: Reprodução)

Em 1931, e de volta a Londres, o indiano Mahatma Gandhi ingressou no comitê executivo da Sociedade Vegetariana e deu um discurso argumentando que a alimentação livre de carne era uma questão de ética, não de saúde. Sem demora, surgiram discussões sobre o tratamento dado às galinhas e vacas leiteiras. Os debates foram transformados em artigos publicados no boletim informativo Vegetarian Messenger, dividindo opiniões.

Receosos com o que viria a ser o veganismo, muitos vegetarianos enviaram cartas queixosas à Sociedade Vegetariana. Eles entendiam a consistência moral e ética de se abdicar de todos os alimentos de origem animal, porém consideravam o estilo de vida como impraticável. Alegaram que por ser uma forma mais radical de vegetarianismo, seria impossível atrair novos adeptos, assim como seria difícil encontrar comida vegana em encontros sociais.

Donald Watson, criador do veganismo como o conhecemos hoje (Foto: Vegan Society)

Donald Watson, criador do veganismo como o conhecemos hoje (Foto: Vegan Society)

Em agosto de 1944, o marceneiro Donald Watson, secretário da Sociedade Vegetariana de Leicester, tentou garantir a criação de uma seção para publicação de artigos sobre veganismo. A proposta foi declinada pela entidade. Então, no início de novembro do mesmo ano, Watson reuniu cinco vegetarianos estritos no Attic Club, em High Holborn, Londres, para discutir sobre a elaboração de uma filosofia de vida que pudesse beneficiar muito mais os animais. Watson se incomodava com o fato de que muitos vegetarianos da época se alimentavam de ovos e laticínios.

Ele enfrentou forte oposição, mas perseverou. Também inventou um novo termo – vegan (vegano) – para se referir a quem não consome nenhum alimento de origem animal. Além de vegan, uma abreviação de “vegetarian”, entre os nomes sugeridos estavam “dairyban”, “vitan” e “benevore”. “Foi o início e o fim do vegetariano”, disse Donald Watson, fundador da Sociedade Vegana que tinha Elsie Shrigley como co-fundadora.

No início, em vez da pronúncia “vígan”, os adeptos começaram a pronunciar “víjan”. À época, o marceneiro criou o boletim informativo Vegan News, que poderia ser adquirido por uma moeda de dois pence. Na publicação, ele deixou claro qual era a pronúncia correta.

A primeira edição foi lida por mais de 100 pessoas, incluindo o renomado escritor irlandês e defensor do vegetarianismo George Bernard Shaw, que ao saber a verdade envolvendo a produção de leite e ovos, abdicou completamente do consumo. E o que ajudou Watson a popularizar o veganismo foi o fato de que 40% das vacas leiteiras da Grã-Bretanha contraíram tuberculose em 1943.

“Animais são meus amigos…e eu não como meus amigos. Enquanto formos os túmulos vivos dos animais assassinados, como poderemos esperar uma condição ideal de vida nesta terra? Quando um homem mata um tigre, ele chama isso de esporte, mas quando um tigre mata uma pessoa dizem que isso é ferocidade”, registrou Shaw em seu diário.

Bernard Shaw, um dos mais ilustres membros da Sociedade Vegana (Foto: Reprodução)

Bernard Shaw, um dos mais ilustres membros da Sociedade Vegana (Foto: Reprodução)

Em novembro de 1945, a Sociedade Vegana mudou o nome do boletim informativo de Vegan News para The Vegan. Com mais de 500 assinantes, eles publicavam receitas, notícias sobre saúde, classificados e uma lista de produtos livres de ingredientes de origem animal. Com a popularidade do veganismo, surgiram livros como “Vegan Recipes”, de Fay K. Henderson e “Aids to a Vegan Diet for Children”, de Kathleen V. Mayo.

Outra curiosidade é que somente em 1949 a Sociedade Vegana definiu com clareza os objetivos do veganismo, e por sugestão do teólogo e vice-presidente da entidade, Leslie J. Cross, vegano desde 1942. Ele sugeriu que a prioridade seria a luta pelo fim da exploração animal, no que diz respeito a alimentos, commodities, trabalho, caça e vivissecção.

Interessante também é o fato de que Cross, preocupado em oferecer opções aos veganos, fundou a Plantmilk Society em 1956, dando origem à produção de leite de soja, orchata, maionese vegana e barras de chocolate e de alfarroba sem ingredientes de origem animal. Mais tarde, sua indústria se tornaria uma das maiores distribuidoras de leite de soja do Ocidente.

No continente americano, a iniciativa pioneira foi da Sociedade Vegana dos Estados Unidos, fundada na Califórnia por Catherine Nimmo e Rubin Abramowitz em 1948. A princípio, eles se baseavam nas ações da inglesa Sociedade Vegana, inclusive distribuíam boletins informativos do The Vegan, antigo Vegan News. Em 1960, H. Jay Dinshah criou a Sociedade Vegana Americana (AVS), aliando veganismo e ahimsa, princípio ético-filosófico, muito comum no budismo e no hinduísmo, que consiste em não causar mal a outros seres vivos.

Watson faleceu aos 95 anos em

Watson faleceu aos 95 anos em 2005 (Foto: Vegan Society)

Em 1979, a Sociedade Vegana informou que, além da exclusão de todas as formas de exploração e crueldade, eles se dedicariam a promover o desenvolvimento e criação de alternativas sem uso de animais, beneficiando também o meio ambiente.

Com o crescimento do veganismo no mundo, a Sociedade Vegana instituiu em 1º de novembro de 1994 o Dia Mundial Vegano em comemoração aos 50 anos de fundação da entidade. No entanto o objetivo maior sempre foi promover a conscientização em torno da exploração animal. Atualmente a estimativa é de que há 250 mil adeptos do veganismo na Grã-Bretanha e dois milhões nos Estados Unidos. No Brasil não há dados sobre o número de veganos, mas, de acordo com informações da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB), 20 milhões de brasileiros se consideram vegetarianos.

Saiba Mais

Antes de falecer aos 95 anos, em 16 de novembro de 2005, Donald Watson concedeu uma entrevista ao seu amigo George Roger, argumentando que veganismo não se trata simplesmente de buscar alternativas para ovos mexidos ou um bolo de Natal. “É algo realmente grande, que desconhecíamos quando criamos o veganismo, uma filosofia criticada por muitos, mas sobre a qual ninguém tem nenhuma prova contra. Se você é vegetariano, saiba que falta apenas um salto para se tornar vegano”, enfatizou Watson.

A palavra vegan apareceu pela primeira vez em um dicionário em 1962. No Dicionário Ilustrado Oxford o termo era definido como um vegetariano que não consome manteiga, ovos, leite e queijo.

No século 19, Percy Shelley e Willam Lambe já defendiam que laticínios e ovos deveriam ser excluídos da alimentação vegetariana.

Referências

Wynne-Tyson, Jon. The Extended Circle. Paragon House; 1st American ed edition (1989).

Plutarch: Moralia, Volume IX, Table-Talk, Books 7-9. Dialogue on Love (Loeb Classical Library No. 425). Harvard University Press (1961).

Vangensten, Ove C.L. Fonahn A. H. Hopstock. Christiana: J. Dybwad. Leonardo da Vinci. Quaderni D’Anatomia, I-VI. Windsor Castle, Royal Library (1911-1916).

Montaigne, Michel de. Os Ensaios: Uma Seleção. Companhia das Letras (2010).

Fortes, Luis Roberto. Rousseau: o bom selvagem. 2º ed. – São Paulo: Humanistas: Discurso Editorial (2007).

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Shelley, Percy Bysshe. A Vindication of Natural Diet: Being One in a Series of Notes to Queen Mab (Disponível em ivu.org)

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