David Arioch – Jornalismo Cultural

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A barba e o menino Yusuf

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“Nunca imaginei que um dia o veria falando português. Surpreendente, filho!”

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Porto Said quando Francisco chegou ao Egito com o Batalhão de Suez (Foto: Reprodução)

Quando eu era bem mais jovem, jamais tinha cogitado deixar a barba crescer. A verdade é que nem mesmo sabia se havia uma barba a se desenvolver. No entanto, desde muito cedo fiquei intrigado com a quantidade de pensadores e escritores barbudos até o início do século 20.

Dentre os brasileiros, minhas primeiras lembranças da época do colégio envolvem autores como Machado de Assis, José de Alencar e Gregório de Matos. Não sei se o fato de cultivarem barba era uma preferência com motivação estética ou se tinha relação com o zeitgeist. Ademais, reconheço também que antigamente era costume manter os pelos faciais para velar imperfeições e cicatrizes provocadas por doenças como a varíola.

Pensando internacionalmente, Platão, Chaucer, Melville, Victor Hugo, Ibsen, Tolstói, Dostoiévski, Whitman, Bram Stoker, Hemingway, D.H. Lawrence, Bernard Shaw e Ginsberg são alguns barbudos que me veem a mente no momento. E analisando períodos, é justo dizer que desde os primórdios da filosofia e da literatura, a barba se fez presente, e aqui não falo como forma de distinção social, e sim como um recurso de construção pessoal. Porém, hoje, diferente de outros tempos, barbas volumosas e longas são quase sempre associadas a hipsters, terroristas e fanáticos religiosos. E claro, partidos políticos.

Pensando nisso, me lembrei de uma singular experiência após me tornar barbudo. Um dia, saí de manhã, por volta das 8h, e fui até a casa de um senhor chamado Francisco que chegou a Paranavaí em 1944. Ele concordou em me conceder uma entrevista sobre os tempos de colonização do Noroeste do Paraná. Em frente à sua casa, toquei a campainha e observei um cãozinho rolando dentro de uma casinha de madeira.

Não demorou e alguém gritou da distante varanda: “Entre, meu filho. Venha até mim.” Abri o portão, subi alguns degraus e atravessei o jardim. Lá estava ele, alto e magro, sentado numa confortável cadeira acastanhada de madeira com estofado bege. Sob seus pés, havia uma porção de areia lavada dentro de uma caixinha. “Legal esse senhor!”, pensei depois que nos cumprimentamos com um firme aperto de mão. De repente, ele olhou nos meus olhos com atenção e comentou: “Aposto que você entende mais disso do que eu.” Não captei a mensagem e notei seus pés afundando lentamente na areia.

“Areia é vida, não é mesmo? Quantos tons de areia você consegue reconhecer?”, questionou. Fiquei confuso e ri, suspeitando que o homem estivesse alcoolizado ou sob efeito de forte medicação. Ainda assim, respondi: “Depende da incidência do sol, dos fatores de ação e reação. Hum…pensando bem, acho que consigo identificar 25 a 30.”

— Esplêndido! Eu já imaginava algo assim. Desconfiei logo que vi – declarou.

E a conversa tomou um rumo completamente diferente, me deixando por vezes hesitante. Pouco falamos sobre a sua vida porque a maior parte das perguntas era feita por ele. “Nunca imaginei que um dia o veria falando português. Surpreendente, filho!”, assinalou nos primeiros dez minutos com um sorriso dúbio.

Ele divagava bastante, e ocasionalmente pedia para ver a palma da minha mão. “Você pode não ver, só que os traços da sua mão dizem muito sobre a sua barba. E tolo daquele que resume a barba a pelos sobre a face. Ela diz muito a respeito dos caminhos da vida do homem. Ela, na sua sinuosidade, é como uma extensão física da própria mente. Sei disso porque cultivo barba há quase 60 anos”, defendeu, tocando a barba branca e já rala que cobria o queixo. Então lamentou que aos 86 anos não tivesse mais a barba de 20 anos antes.

Também notei seus olhos úmidos quando ele se curvou e deslizou o dedo indicador dentro da caixinha de areia. Algumas lágrimas pingaram dolorosas, como se saídas de um conta-gotas. Vendo aquilo, me desculpei e sugeri que talvez fosse melhor marcarmos a entrevista para outro dia. Trêmulo, Francisco se levantou e pediu para me dar um abraço.

— Claro, Seu Francisco – respondi.

Quando suas mãos enrugadas e translúcidas me envolveram, ouvi seus refreados soluços e seu coração palpitando. “Agora eu até poderia fazer a barba”, sussurrou, fragilizado. Logo ele esmaeceu. Gritei e sua esposa apareceu. Pediu que eu o colocasse na cama. Desmaiado, preservava expressão serena e sorriso delgado. Em respeito, não pedi explicações, me despedi e caminhei até a varanda, onde encontrei ao lado da cadeira uma foto de uma criança de sete ou oito anos sentada sobre os ombros de Francisco ainda jovem.

Na semana seguinte, fiquei sabendo que o garotinho sorridente da foto era um órfão egípcio que seria adotado por Francisco, um ex-soldado do Batalhão de Suez. Em 1957, o menino chamado Yusuf morreu em seus braços, depois de ser alvejado na cabeça por um soldado israelita em missão em Porto Said. “Nunca mais vou fazer a barba na minha vida, nunca mais! Juro por tudo neste mundo, a não ser que Yusuf retorne à vida”, teria gritado Francisco aos prantos naquele dia.

Renato Esteves, um soldado pacifista no Oriente Médio

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Conhecido como Sete Metros, jovem de Paranavaí se destacou no Batalhão de Suez e recebeu condecoração da ONU em 1962

Renato Esteves ingressou no Batalhão de Suez com 23 anos (Foto: Acervo Familiar)

Renato Esteves ingressou no Batalhão de Suez com 23 anos (Foto: Acervo Familiar)

Em 1961, Renato Esteves Oliveira tinha 23 anos quando foi selecionado para ser um dos boinas azuis da Organização das Nações Unidas (ONU) no Canal de Suez, no Oriente Médio. O soldado deixou Paranavaí, no Noroeste do Paraná, porque queria ajudar a acabar com a guerra entre judeus e árabes, intensificada em 1956, quando Israel invadiu o Egito.

“A gente morava na fazenda e um dia o meu marido Joaquim [Mariano Silva] foi entregar leite e parou na venda de um português conhecido como ‘Seu Augustinho’, perto da Sanepar [Companhia de Saneamento do Paraná]. O comerciante disse que o meu irmão avisou que iria para o Canal de Suez [que liga o Mar Mediterrâneo ao Mar Vermelho]”, conta a aposentada Maria Aparecida Oliveira Silva.

Com a 7ª Companhia do 3º Pelotão do Batalhão de Suez, Renato Esteves, que era conhecido pela família como Lula e pelos amigos como Sete Metros porque tinha 1,92m de altura, precisou suportar uma viagem de navio com duração de 25 dias até chegar ao Oriente Médio, onde começou a patrulhar na Linha de Demarcação do Armistício (LDA). “Lembrei muito de vocês. Foram muitos dias e noites vendo apenas água, mas deu pra passar na África e na França. Se Deus quiser, vou a Jerusalém na Semana Santa. Também quero levar pra vocês um pouquinho de água do Rio Jordão”, prometeu Renato Esteves à família em carta de 19 de novembro de 1961.

Na LDA, o trabalho do soldado era ajudar a garantir a paz. Ou seja, não permitir que a zona neutra fosse ocupada por israelenses e árabes, caso surgissem provocações ou tentativas de transposição. Se houvesse alguma suspeita, deveria avisar os superiores. Como era voluntário, Sete Metros viajou para o Egito sem se preocupar com salário, mas quando chegou lá ficou feliz com a remuneração paga pela ONU. “Sinto saudade de Paranavaí, mas gosto muito daqui porque o ordenado que ganho em um mês equivale ao salário de um ano no Brasil. Já estou com quinhentos dólares na caixa”, escreveu em carta de novembro de 1961.

Sete Metros com um pé no Egito e outro em Israel (Foto: Acervo Familiar)

Sete Metros com um pé no Egito e outro em Israel (Foto: Acervo Familiar)

De natureza pacífica, o soldado, também chamado de Pracinha 4307 por causa do seu número de identificação, se orgulhava de não ter matado ninguém em 1961 e 1962, período em que fez parte do Batalhão de Suez. Na fronteira do Egito com Israel, teve de aprender a lidar com o perigo. Era preciso resistir ao calor escaldante, às frequentes e violentas tempestades de areia e às minas terrestres instaladas nas áreas de patrulhamento. À noite, dormiu muitas vezes em uma barraquinha de tecido branco ao lado da guarita B17. Independente das dificuldades, Sete Metros tentava resolver qualquer situação da forma mais amistosa possível. Só ficava feliz em empunhar uma arma quando era para ser fotografado. Gostava de impressionar a família, amigos e as moças com quem se correspondia.

Na fronteira, teve de aprender a lidar com o perigo (Foto: Acerco Familiar)

Na fronteira, teve de aprender a lidar com o perigo (Foto: Acerco Familiar)

Em 23 de novembro de 1961, o soldado afirmou que quando estava de folga passava o dia escrevendo cartas. “Cida [irmã], compre a revista Sétimo Céu que você vai ver o meu nome na última página. Já recebi mais de 300 cartas. Tem muitas moças aí do Brasil querendo me conhecer. Pergunte ao Sandro [um amigo] se ele ainda está levando um papo com aquela mineira. Estou levando um papo firme com uma de Itajubá [Minas Gerais]. Tem mais algumas de outros estados que vão me esperar na Praça Mauá quando o navio [Soares Dutra] atracar no Rio de Janeiro”, relata. Naquele tempo, como Paranavaí não tinha agência dos Correios, as correspondências eram retiradas na Casa Lusitana na Rua Manoel Ribas ou na Casa Moreira na Avenida Distrito Federal.

Trabalhando no Canal de Suez, Renato Esteves fez muitas amizades com egípcios e israelenses. À época, os boinas azuis tinham à sua disposição um avião para viagens de lazer. “Estou gostando bastante da minha vida aqui. Já conheci Beirute, no Líbano, e também o Cairo, a capital do Egito, além da Grécia. Da última vez, encontramos o presidente Juscelino Kubitschek assim que chegamos. Ele veio visitar o nosso batalhão e nos parabenizar”, narra em carta enviada à irmã no dia 13 de janeiro de 1962, acrescentando que a viagem do Cairo até Jerusalém levava 40 minutos de avião.

Enquanto viveu no Oriente Médio, nada abalou mais o pracinha do que a notícia de que o irmão João Ramos Oliveira morreu envenenado. “O meu irmão era meu amigo. A gente estudava junto e ele morreu. Falei pra ele não ficar triste com a minha partida porque eu voltaria logo”, confidenciou dias depois. Em tributo ao irmão, agendou uma missa em uma igreja católica ortodoxa de Jerusalém e tirou uma foto ajoelhado e orando. O que ajudou Sete Metros a lidar com a perda foi a amizade com uma criança egípcia de menos de dez anos. Todos os dias o soldado recebia a visita do menino que percorria quilômetros a pé para vê-lo. Quando o garotinho não podia visitá-lo, Renato Esteves ia até ele. Os dois se tornaram inseparáveis.

No canto à esquerda, o soldado acompanha a chegada de Juscelino Kubitschek (Foto: Acerco Familiar)

No canto à esquerda, o soldado acompanha a chegada de Juscelino Kubitschek ao Oriente Médio (Foto: Acerco Familiar)

Embora tivesse pai, o menino viu no brasileiro uma nova figura paterna. “O Lula ficava muito tempo em uma guarita e quase sempre aquela criança o acompanhava. Levava o menino para o acampamento, comia com ele, dava presentes. O pai do garotinho também ia de vez em quando e gostava do relacionamento dos dois. Ele via uma rara bondade no meu irmão”, assinala Maria Aparecida.

Uma das brincadeiras preferidas da dupla era deitar no chão quando surgia alguma rápida tempestade. Em poucos segundos, seus corpos sumiam na imensidão desértica, cobertos pela areia. A criança ficou tão apegada ao pracinha que um dia pediu que o trouxesse ao Brasil. Como o garotinho tinha família, Esteves admitiu que não poderia fazer isso. “Você me põe dentro de uma caixa e fecha. Quando for passar na vistoria, eu vou com você”, sugeriu.

Renato em missa em memória do irmão em Jerusalém com os amigos do Batalhão de Suez (Foto: Acervo Familiar)

Rodeado de amigos do Batalhão de Suez na missa em memória do irmão (Foto: Acervo Familiar)

Sete Metros se sentiu tentado a trazer o menino, mas sabia que seria errado. Durante algum tempo ainda trocaram correspondências, até que as mudanças da vida fizeram com que perdessem contato. Quando retornou ao Brasil, o soldado passou um período no Rio de Janeiro, atuando no Exército. De volta a Paranavaí, quis seguir carreira militar. Então foi para Maringá, onde se tornou policial. “Como morávamos em uma fazenda e meu irmão gostava muito de viajar, ele sempre tinha um quarto reservado em um hotel perto do Terminal Rodoviário de Paranavaí. Era tudo muito bonito e bem arrumado”, explica Aparecida.

Após alguns anos, começou a namorar uma moça em Paranavaí, sem saber que a jovem também estava envolvida com outro homem. Um dia, os dois rapazes se encontraram e se estranharam. A discussão terminou em luta e Sete Metros sacou a arma primeiro e atirou no seu agressor que faleceu no local. Familiares de Esteves testemunham que a moça manipulou a situação, colocando um contra o outro. Depois da tragédia, o rapaz que fazia parte do Destacamento Policial de Nossa Senhora das Graças, na microrregião de Astorga, se entregou na delegacia de Paranavaí, alegando que estava preparado para ser punido pelo que aconteceu. Renato Esteves admitiu a culpa e aceitou a sentença.

Se ajoelhou e orou pelo irmão em uma igreja em Jerusalém (Foto: Acervo Familiar)

Orou por João Ramos em uma igreja ortodoxa em Jerusalém (Foto: Acervo Familiar)

Maria Aparecida acredita que o destino poderia ser diferente se o irmão não tivesse retornado a Paranavaí. Pelos serviços prestados no Canal de Suez, Sete Metros recebeu uma condecoração de soldado de destaque da ONU no Rio de Janeiro. O prêmio proporcionou grande visibilidade. “Sempre tinha gente tentando arrumar confusão com ele. Havia muita inveja. O Lula me contava que até os colegas de trabalho implicavam muito com ele”, frisa a irmã que até hoje não entende como o irmão, alguém tão calmo, educado e pacífico se colocou em uma situação tão antagônica à própria natureza.

Quando estava preso em Paranavaí, antes de receber a sentença, foi ameaçado muitas vezes. “Cansado e preocupado, ele pediu que eu falasse com o [deputado federal] doutor José de Alencar Furtado para acelerar a transferência dele”, revela a irmã. Após a mudança para a Penitenciária Central do Estado (PCE), em Piraquara, na região metropolitana de Curitiba, a família começou a visitá-lo aos sábados. “Eu ia sempre à noite, daí amanhecia lá e o encontrava pela manhã”, enfatiza Aparecida Oliveira que não ficava muito tempo sem ver o irmão.

Com o garoto egípcio que se tornou seu melhor amigo (Foto: Acervo Familiar)

Com o garoto egípcio que se tornou seu grande amigo (Foto: Acervo Familiar)

Só que tudo mudou no dia 6 de janeiro de 1970, quando Sete Metros estava na fila do refeitório segurando uma bandeja e aguardando o momento de pegar a comida. Um detento conhecido como Mergulhão que estava logo atrás o golpeou três vezes nas costas com um “estoque” de ferro. Quando o rapaz caiu no chão, um amigo correu para socorrê-lo. Desprevenido, também foi golpeado várias vezes. Os dois morreram no refeitório da penitenciária sem a intervenção de ninguém, nem mesmo de funcionários do complexo prisional.

Mais tarde, a família de Renato Esteves descobriu que o crime foi encomendado por um tenente de Paranavaí. “Meu irmão virou notícia em praticamente todas as emissoras de rádio do Paraná. Fiquei muito revoltada porque os soldados e policiais que eram amigos dele ficaram sabendo da morte no dia do acontecido e não avisaram a gente. Quando eu soube, fui até a barbearia frequentada por eles e discuti com todo mundo. O único que se preocupou em nos procurar foi o compadre Jobi, um ex-soldado já falecido”, garante Aparecida.

Em Curitiba, o deputado federal José de Alencar Furtado designou o próprio motorista para acompanhar a irmã de Renato Esteves até Piraquara. “Foi muito gentil e disse que o motorista poderia me levar onde eu precisasse”, comenta. Na penitenciária, Maria Aparecida entregou uma carta escrita por Alencar Furtado. Se emocionou quando viu que do irmão restou apenas uma mochila pequena com poucos pertences. Muitos itens pessoais foram furtados, não se sabe se por outros detentos ou por funcionários da prisão.

Maria Aparecida: "O Lula ficava muito tempo em uma guarita" (Foto: Acervo Familiar)

Maria Aparecida: “O Lula ficava muito tempo em uma guarita” (Foto: Acervo Familiar)

O corpo de Sete Metros foi transferido do Instituto Médico Legal (IML) para um caixão grande e azul. Antes taparam com algodão os três ferimentos causados pelos golpes. Também o vestiram com uma de suas roupas preferidas, limpinha e perfumada, embora já não pudesse mais senti-la. Na viagem a Paranavaí, a ambulância que trouxe o corpo do rapaz parou em Alto Paraná, onde a família de Renato Esteves era bem conhecida. “Quando chegamos lá, muitos que estavam próximos da prefeitura se aproximaram e falaram: ‘Nossa! Esse é o filho do Aureliano!’”, lembra Maria Aparecida visivelmente emocionada.

Depois de avisar os amigos, a família o velou por uma noite e o sepultou no dia seguinte. A mãe de Sete Metros, a portuguesa Maria Esteves, que já tinha perdido o filho João Ramos Oliveira em 1962, não resistiu a mais uma perda e adoeceu gravemente. Em 1970, faleceu alguns meses após a morte do filho Renato Esteves Oliveira que partiu sem imaginar que em 1988 o Batalhão de Suez receberia o Prêmio Nobel da Paz.

Soldado escrevia todos os dias para a família em Paranavaí

Se tornou amigo de árabes e israelenses (Foto: Acervo Familiar)

Fez amizade com árabes e israelenses (Foto: Acervo Familiar)

Enquanto prestava serviços para a Força de Emergência das Nações Unidas (Unef) no Oriente Médio, o soldado Renato Esteves Oliveira, conhecido como Sete Metros, escrevia todos os dias para a família em Paranavaí. Também gostava de enviar presentes. Curiosamente, as encomendas que saíam do Brasil para o Egito sempre chegavam, mas as que partiam do Canal de Suez para cá muitas vezes eram extraviadas. “O avião que leva as encomendas só vem aqui uma vez por mês. Elas chegam através do Ministério da Guerra, no Rio de Janeiro”, explicou o pracinha em carta de 1º de janeiro de 1962, seis meses antes de retornar ao Brasil.

Entre os produtos enviados por Sete Metros estavam tapetes, chinelos, navalhas, roupas e brinquedos. “Ele enviou ‘chinelo de dedo’ pra gente numa época em que aqui ainda não existia. Mandou também uma réplica de um camelinho bem bonitinho para o Pedrinho [sobrinho já falecido]. Depois de mais de 50 anos, ainda guardo com carinho”, assegura a irmã Maria Aparecida Oliveira Silva.

Sete Metros comemorando o aniversário em 10 de abril de 1962 (Foto: Acervo Familiar)

No Egito, comemorou o aniversário em 10 de abril de 1962 (Foto: Acervo Familiar)

Em 1961, o pracinha experimentou pela primeira vez uma cerveja em lata no Egito, versão que os brasileiros conheceriam só em 1971. Gostou tanto da bebida que em 10 de abril de 1962 comemorou o aniversário rodeado de amigos e uma mesa repleta de latinhas. “Como aqui não existia, ele trouxe de lá. Junto veio um baú com tapetes e roupas para toda a família. Tinha muitas novidades, coisas que não se via no Brasil”, conta Aparecida, lembrando que o irmão geralmente pedia para enviarem jornais, cigarros e revistas, principalmente O Cruzeiro, uma de suas preferidas. No entanto, as remessas não podiam ultrapassar 20 quilos.

Teve de resistir ao calor escaldante, violentas tempestades de areia e minas terrestres (Foto: Acervo Familiar)

Resistiu ao calor escaldante, violentas tempestades de areia e minas terrestres (Foto: Acervo Familiar)

Em carta de 25 de novembro de 1961, Renato Esteves pediu que o pai fosse a uma barbearia para perguntar o preço da navalha alemã Solingen. “Aqui é muito barato. Eu mando pra ele vender. Vou enviar também um embrulho com tapete que não existe aí. Diga para o pai repassar por dois mil cruzeiros. Quem não quiser comprar, é só mandar vir buscar aqui no Egito”, ironizou. No Canal de Suez, o traje tradicional de Sete Metros incluía farda, boina, anel de formatura, cachecol e um cinto de couro com uma pistola 45 e uma submetralhadora INA. “Nunca deixei de mandar uma resposta pra ele. Tenho um pacote enorme de cartas que me enviou. Estão todas velhinhas e amarelas”, revela a irmã.

Sete Metros abominava injustiças

Foi justamente por abominar injustiças que Renato Esteves Oliveira, o Sete Metros, optou por deixar o trabalho no campo para se tornar soldado e depois policial. Nos anos 1960, a Polícia Militar do Paraná não tinha uma divisão específica para lidar com situações de alta gravidade, então no Norte do Paraná convocavam Sete Metros que logo ficou famoso por prender alguns dos criminosos mais perigosos que atuavam na região.

Apesar da curta carreira como policial militar, Renato Esteves desmantelou inúmeras quadrilhas de assaltantes e sequestradores. “Era temido pelos bandidos porque sabia como reagir em qualquer situação. Foi o responsável por acabar com ondas de tiroteios e outras ações criminosas em cidades como Nossa Senhora das Graças, Jaguapitã e Colorado”, garante a sobrinha Maria Neuza Silva. Mesmo quando estava de folga, o policial costumava intervir em casos de injustiça.

Maria Neuza se recorda das vezes em que na infância ela e o irmão Luiz Ademir saíam com o tio para comer pão com sardinha. “Era a comida preferida dele. Ele também adorava o seu jipe e gostava muito de mecânica. Foi criado na roça, mas não se identificava com o campo”, comenta a sobrinha.

Trecho de uma carta escrita por Renato Esteves em 19 de novembro de 1961

Renato Esteves na rampa do navio Soares Dutra quando chegou ao Brasil (Foto: Acervo Familiar)

Renato Esteves na rampa do navio Soares Dutra quando chegou ao Brasil (Foto: Acervo Familiar)

Saudações,

prezada irmã Cida. É com muito prazer que pego na pena para responder a sua cartinha recebida há poucos dias. Que bom saber que todos estão com saúde. Também vou bem graças a Deus. Fiquei muito contente de saber que recebeu carta minha e que continua me escrevendo. Quando for na Casa Lusitana, procure carta no nome do pai porque escrevi muitas. Cida, quero que tu me mande umas cinco revistas, daí quando eu receber vou te mandar um corte de vestido que aí no Brasil não tem desse pano. Tu fala para a mãe que eu mando um pra ela também. O Tim [irmão] mandou eu levar um revólver pra ele. Manda ele preparar a grana que na volta eu passo na Itália e compro a arma direto da fábrica.

Você disse na carta que o Zé [irmão] ainda não voltou e que o Francisco [cunhado] já está bom. Eu desejo felicidades pra eles. Cida, você falou que o pai conseguiu o endereço do Feliciano. Ele foi meu colega quando servimos o Exército no Rio de Janeiro. Ele queria vir pra Suez. Aqui o ordenado de um soldado é de 32 contos por mês e se Deus quiser vai vir aumento pra nós agora com a saída do Jânio Quadros. Você falou na carta que está chovendo aí. Aqui passa até um ano sem chuva. Começou o frio agora em novembro e vai até março. Quando vocês estão jantando, aqui é meia-noite e eu já estou dormindo. Deixo a minha benção ao pai, mãe e meus sobrinhos. Lembranças para todos daí.

Saiba Mais

45 anos após sua morte, o túmulo de Renato Esteves Oliveira, tio-avô do autor da reportagem – David Arioch, ainda recebe muitas visitas no Cemitério Municipal de Alto Paraná.

Sete Metros era tão respeitado que uma semana após a sua morte alguns detentos se uniram e mataram o criminoso conhecido como Mergulhão.

Frases de Renato Esteves Oliveira

“Cida [irmã], quando me escrever, mande perguntar na Fazenda Ouro Verde se tem família nova. Se alguma colega da Clarisse perguntar de mim, dê o meu endereço que é pra eu treinar a caligrafia porque a minha letra está um pouco ruim.”

Nos anos 1950 e 1960, era muito comum os casos de envenenamento em Paranavaí e região. Então um dia Renato disse: “Ô Pai, nunca tome nada que te derem para beber sem antes ver a pessoa abrir a garrafa na sua frente.”

Por que os soldados brasileiros foram enviados para o Canal de Suez?

De acordo com o Manual do Expedicionário Brasileiro em Suez, a Força Internacional das Nações Unidas enviou soldados brasileiros para fazer uma interposição entre árabes, israelenses, franceses e ingleses. O objetivo era evitar que guerreassem. Em 1956, o desentendimento entre os quatro povos teve como estopim a nacionalização do Canal de Suez pelo presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, apoiado pela União Soviética. Com isso, franceses, ingleses e israelenses não poderiam mais usar o canal como rota estratégica de navegação para Ásia, África e Europa.

Com o apoio dos Estados Unidos, França, Inglaterra e Israel se uniram para atacar o Egito. Preocupada com a possibilidade do conflito se transformar em uma Terceira Guerra Mundial, a ONU agiu rapidamente e enviou tropas de paz para o Canal de Suez. Lá, brasileiros trabalharam em parceria com soldados da Noruega, Suécia, Dinamarca, Finlândia, Iugoslávia, Índia, Colômbia e Indochina.

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O Velho Barbanço

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Português se passou por francês para acompanhar amigo na Primeira Guerra Mundial

Na guerra, Manuel da Silva Barbanço era Jean Marceau Bonnet, um soldado do 5º Exército Francês (Foto: Reprodução)

É raro encontrar alguém que já tenha ouvido falar no Velho Barbanço, um misterioso imigrante português que viveu muitos anos em uma recôndita fazenda entre Paranavaí e Alto Paraná, no Noroeste do Paraná. Barbanço se passou por francês para acompanhar um amigo na Primeira Guerra Mundial e anos depois partilhou a maior parte da herança com os mais humildes.

A infância

Manuel da Silva Barbanço nasceu na Freguesia de Barcelos, em Portugal, no ano de 1896. Aos 12 anos, fugiu de casa por causa dos maus tratos do pai que tinha a conivência da mãe subserviente. Em Lisboa, o então jovem Manuel, inebriado pelos cartazes que exaltavam as belezas de Paris, decidiu partir para a França. Na Estação de Trem de Santa Apolónia tentou convencer dezenas de passageiros a levá-lo junto, porém só um concordou. Era um caixeiro-viajante de menos de 30 anos que percorria a Europa comercializando cigarreiras e perfumes. “O sujeito estava com duas malas grandes. Uma cheia e a outra vazia. Com um forte sotaque francês, falou que o levaria, mas o garoto teria que se esconder dentro da mala vazia”, contou o aposentado Amácio da Costa que durante anos trabalhou como “faz-tudo” para Barbanço.

Franzino, Manuel entrou na mala e permitiu que o homem a fechasse. A viagem levou horas e mesmo assim o garoto se manteve calado, respirando por um pequeno vão. “O Velho Barbanço me contou que estava tão frio que conforme respirava pela boca o ar que saía da mala criava forma”, disse Costa. Quando chegou a Paris, Manuel agradeceu e os dois se despediram. Na Avenida Champs-Élysées, não muito distante do Arco do Triunfo, Barbanço conheceu um português que vivia num cubículo no Montmartre e explorava o trabalho infantil de dezenas de crianças, colocando-as para engraxar os sapatos dos turistas que visitavam a Torre Eiffel.  “Eles trabalhavam em troca de comida e moradia”, relatou o aposentado.

Ex-soldado nasceu na Freguesia de Barcelos, em Portugal (Foto: Reprodução)

A amizade com Bulle

Ingênuo, Manuel foi coagido e trabalhou para o homem por vários meses, até que um dia fugiu de madrugada. Por questão de sobrevivência, Barbanço aprendeu a falar francês. Naquele tempo, não fluentemente, mas o suficiente para se virar. Fez bicos para turistas até os 16 anos, quando conheceu Bulle, um órfão francês que trabalhava de auxiliar de limpeza num restaurante de culinária mediterrânea na região do Jardim de Luxemburgo. “Era um rapaz mais velho, de 21 anos, que se tornou o irmão que Barbanço nunca teve”, comentou Amácio da Costa.

Em 1914, Bulle e Manuel estavam trabalhando juntos como carregadores de malas de um hotel situado no Montparnasse quando souberam da convocação para a Primeira Guerra Mundial. Bulle, que se chamava Pierre Livereaux, foi obrigado a se apresentar ao serviço militar. Com receio de ficar sozinho novamente, Barbanço implorou para que Bulle o ajudasse a conseguir documentos falsos para acompanhá-lo. Livereaux resistiu, mas acabou cedendo e ajudou o amigo que à época tinha 17 anos. “Sei disso porque o Velho Barbanço tinha um diário em que anotava tudo. Era muito preciso e detalhista sempre que relatava algo”, afirmou o aposentado que viu os falsos documentos franceses do português.

Na guerra, Manuel da Silva Barbanço era Jean Marceau Bonnet, um  soldado do 5º Exército Francês que participou da Batalha de Charleroi em 21 de agosto de 1914, quando os alemães invadiram a Bélgica. Questionado sobre a experiência na guerra, Barbanço disse o seguinte a Amácio da Costa no início dos anos 1960: “Nunca tinha segurado uma arma na vida e tudo que eu sentia era medo, tremia mais que vara verde. Quem passava por mim nem percebia, pois estávamos todos na mesma situação. Éramos crianças e o temor era tão absurdo que ao longe os alemães sentiram o cheiro do nosso pavor”, confidenciou Manuel da Silva Barbanço, referindo-se à derrota francesa na Batalha de Sambre.

O horror da Primeira Guerra Mundial

Algumas lembranças do episódio vivido pelo português foram reproduzidas em grandes folhas de papel já amarelecidas e deterioradas pelo tempo que Costa ganhou do ex-soldado em 1962. “Anos depois, pedi pra minha neta copiar o conteúdo, mas deu pra recuperar pouca coisa”, garantiu Costa, mostrando as informações registradas. No relato, Barbanço revelou que quando a ofensiva alemã, que estava em maior número, os atacou, só ouviu um companheiro gritar algo como: “soins, soins, sont mis à nous tirer dessus” que significa “cuidado, cuidado, começaram a atirar em nós”. O jovem soldado deitou rapidamente no chão. Quando se levantou, olhou para trás e viu o amigo Bulle caído no chão, morto, com o corpo cravejado de balas de aproximadamente oito milímetros.

Rua belga percorrida pelo português durante a guerra (Foto: Reprodução)

Barbanço conteve o desespero enquanto observou a multidão de cadáveres que se amontoaram diante de seus olhos, além de dezenas de jovens ainda vivos, mas caídos, implorando por ajuda. “A situação era horrível. Aqueles que estavam em estado muito grave foram deixados para trás. Quando me contou, também mostrou fotos da guerra e seus lábios tremeram até que levou a mão à boca para conter o choro. Disse que jamais na vida dormiu sequer uma noite sem pensar na guerra”, enfatizou o aposentado, lembrando que mais tarde Barbanço se retirou da zona de conflito, sem ter usado qualquer arma. Horas depois, se afastou da infantaria francesa e voltou para o local onde foi deixado o corpo do amigo.

Mesmo sabendo que a área estava dominada pelos germânicos, seguiu em frente. Quando viu um soldado alemão morto o despiu e trocou a farda francesa pela alemã. Logo que os alemães se dispersaram, o português carregou Bulle até as margens do Rio Sambre. Lá, Barbanço lavou o corpo do amigo, o abraçou e em seguida o enterrou. Da Bélgica, Manuel Barbanço retornou à França, onde morou até os 32 anos.

O reencontro com o avô

Mais tarde, imigrou para a Espanha e para a Itália, até que retornou a Portugal, onde soube que o avô, um aristocrata lusitano com quem perdeu contato no princípio da infância, o procurava há anos. Com a saúde debilitada, o homem convidou Manuel para morar numa propriedade em Funchal, na Ilha da Madeira. Barbanço viveu com o avô até 1945, quando o aristocrata faleceu, vítima de pneumonia. Com a morte do único familiar com quem teve uma profunda relação de afeto, Manuel da Silva Barbanço decidiu partir novamente. Antes, aguardou a execução do testamento do avô que lhe destinou uma herança que hoje equivaleria a pelo menos R$ 3 milhões.

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, em outubro de 1945, Barbanço se juntou a centenas de imigrantes portugueses em um navio para o Brasil. Escolheu uma embarcação que reuniu somente pessoas de origem humilde que buscavam melhores condições de vida em terras tupiniquins. “Ele levou uma pequena mala com roupas e, como não sabia qual era a moeda brasileira, carregou uma enorme com mais da metade da herança em dólares”, salientou Costa. Numa madrugada, enquanto muitos estavam dormindo, Barbanço distribuiu boa parte do dinheiro entre as malas, bolsas, sacos e sacolas dos passageiros. No dia seguinte, ninguém entendeu o que tinha acontecido, mas as expressões nos rostos dos imigrantes eram tão cheias de esperança e alegria que o anônimo Manuel da Silva se sentiu parte de algo maior que a vida, segundo palavras de Amácio da Costa.

Paranavaí lembrava Funchal, a terra do avô de Manuel Barbanço (Foto: Reprodução)

A partilha da herança com os mais humildes

Quando a embarcação atracou em Santos, Barbanço desceu pelas ruas do porto, onde foi abordado por um garoto de aproximadamente 12 anos que ofereceu-lhe ajuda em troca de algumas moedas. O português aceitou e pediu auxílio para pegar um trem com destino a São Paulo. Antes de embarcar, Manuel sugeriu que o garoto fechasse os olhos. “Barbanço colocou um saco de dinheiro na mão daquela criança e desapareceu dentro do trem”, assegurou. Da capital paulista, o português contratou os serviços de um motorista que o levou até Presidente Prudente, onde Barbanço quase comprou uma fazenda. Mudou de ideia quando conheceu um engenheiro agrônomo que falou-lhe sobre as terras virgens do Noroeste do Paraná.

Manuel adquiriu um jipe e se aventurou pelo Paraná. Depois de dias de viagem, chegou a Paranavaí, onde comprou uma fazenda a treze quilômetros do perímetro urbano. “Ele tinha um estilo de vida eremita, não ia pra cidade. Gostou muito daqui porque lembrava a calmaria e o sossego da terra do avô, na Ilha da Madeira”, ressaltou o homem que conheceu o português em 1955, quando deixou Londrina e se mudou para Paranavaí. O caminhão que trouxe os pertences do aposentado quebrou em frente à propriedade de Barbanço. Costa foi pedir ajuda e recebeu uma proposta de emprego.

Amácio da Costa trabalhou como “faz-tudo” para o português a quem considerava um pai até 1972, ano em que Manuel Barbanço transferiu-lhe a escritura de uma propriedade vizinha. “Num domingo chegou um homem na minha casa, me trouxe um título de terras acompanhado de uma carta de agradecimento pelos serviços que prestei ao longo de 16 anos. Não entendi direito e fui até a fazenda do português. Quando cheguei lá, o homem tinha sumido, ninguém nunca soube o que aconteceu. É possível que tenha partido para algum lugar onde outras pessoas precisavam de ajuda”, cogitou o aposentado com um sorriso e um olhar disperso no tempo.

Curiosidades

O apelido Velho Barbanço foi dado pelo próprio Amácio da Costa, pois o português tinha a barba, os cabelos e pelos das sobrancelhas brancos.

Para ser aceito pelo Exército Francês e justificar o sotaque, Manuel da Silva Barbanço falou que era francês, mas que foi criado pelo avô em Portugal.

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O impasse de terras durante a colonização

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Uma propriedade era vendida diversas vezes a várias pessoas em Paranavaí

Ulrico Goevert: “Antes da região ser aberta, ninguém queria vir pra cá” (Acervo: Casa da Cultura)

Em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, entre as décadas de 1930 a 1950, os conflitos por posses de terras não envolviam apenas grilagem, mas também negociações em que uma mesma propriedade era vendida ou doada diversas vezes a várias pessoas e em tempos distantes.

De acordo com o pioneiro cearense João Mariano, o conflito normalmente surgia quando o proprietário encontrava a propriedade já habitada, o que significava que o imóvel foi vendido a outra pessoa. “O mais curioso é que os dois donos apresentavam documentos que comprovavam direitos sobre a mesma terra”, afirmou o padre alemão Ulrico Goevert em carta à revista alemã Karmelstimmen na década de 1950. Em alguns casos, o problema era resolvido amigavelmente. Em outros, só com o derramamento de sangue.

Não foram poucos os familiares de soldados reformados, combatentes da Guerra do Paraguai, ocorrida entre dezembro de 1864 e março de 1870, que apareceram em Paranavaí nas décadas de 1930 e 1950 para reclamar direitos sobre terras. Algumas escrituras eram tão antigas que foram assinadas pelo imperador Dom Pedro II entre os anos de 1871 e 1889. “Como o caixa imperial estava vazio, as tropas vencedoras foram pagas com terras legalmente documentadas”, frisou Goevert em publicação da Karmelstimmen em 1958.

Alguns proprietários não tinham recursos para investir na colonização (Acervo: Casa da Cultura)

Mas por que depois de décadas é que os primeiros proprietários apareceram para reclamar direitos de posse? A verdade é que muitos daqueles que foram beneficiados com propriedades em Paranavaí, inclusive soldados do Exército Brasileiro, não possuíam recursos financeiros para investir na colonização da área, além de outros que não tinham interesse em desmatar uma localidade que até então não era povoada.

“Antes da região ser aberta ninguém queria vir pra cá, mas depois apareceram proprietários com documentações do Século XIX. A situação se complicou porque o governo paranaense repassou as terras à colonizadoras que lotearam tudo e venderam pequenas parcelas aos colonos. Disso nasceu muita injustiça e revolta”, disse Goevert.

Em Paranavaí, também houve casos de pessoas que pagaram caro pelos imóveis e receberam documentos falsos. De acordo com o padre alemão, os problemas só começaram a ser resolvidos quando o Governo do Paraná enviou funcionários para lidarem com todas as situações envolvendo posse de terras. “Se alguém chegasse com documento antigo exigindo os seus direitos era estabelecido um acordo. Se a pessoa realmente quisesse aquela terra teria de pagar ao novo proprietário por todas as despesas com benfeitorias. Muitas vezes, a soma era tão alta que a pessoa desistia”, garantiu Ulrico Goevert.

Colonizadoras enganaram muita gente

Em publicação no periódico alemão em 1958, o padre também falou sobre as colonizadoras fraudulentas que ludibriaram muita gente. Algumas adquiriam glebas de pelo menos 20 mil alqueires e vendiam chácaras com 5 e 10 alqueires a preços abaixo do mercado. As negociações eram feitas em escritórios sediados em cidades bem distantes de Paranavaí, como São Paulo. “Muitos se interessavam apostando na especulação da terra. Então quando a propriedade já estava valorizada, o proprietário vinha conhecer o local e se deparava com pessoas já vivendo no seu imóvel”, destacou Goevert.

Colonizadoras enganaram muita gente em Paranavaí (Acervo: Casa da Cultura)

Quando o reclamante ia até a Inspetoria de Terras se informar sobre o problema, nada era feito. Sempre ouviam as seguintes palavras: “O senhor é só mais uma das vítimas desta colonizadora fraudulenta. Realmente teve azar.”

Entre os anos 1930 e 1950, nem todas as colonizadoras compraram terras, algumas as conseguiram após prestarem serviços ao Governo do Estado. Prática muito comum naquele tempo era a de aventureiros se embrenharem na mata virgem e percorrerem rios, realizando pesquisas topográficas sobre a região ao longo de meses. Encerrado o trabalho, o resultado era apresentado ao governador que em retribuição doava áreas de milhares de alqueires para o aventureiro colonizar.

Criminosos eram trazidos a Paranavaí

Os pioneiros perderam as contas de quantos refugiados e criminosos de outros Estados e países vieram a Paranavaí entre as décadas de 1920 e 1950. Não foram poucos os que mudaram de nome ao chegar à colônia, interessados em construir uma nova vida. “Também houve muitos que me confidenciaram terem praticado crimes hediondos. Mas eu não podia fazer nada, a não ser ajudá-los”, revelou o padre alemão Ulrico Goevert em publicação à revista alemã Karmelstimmen em 1958.

O cearense João Mariano lembrou que até a década de 1940, a mata primitiva de Paranavaí era muito usada pelo Governo Paranaense para despejar criminosos de alta periculosidade. “Até os anos 1950, jogaram muitos bandidos lá na região que hoje pertence a Nova Aliança do Ivaí, assim como em Querência do Norte. O Estado não queria mais gastar dinheiro com essa gente. Como a pessoa não tinha pra onde ir, no caso de sobreviver, o jeito era virar peão e se adequar à nova vida. Alguns ainda conseguiam trabalho como jagunços, pois eram bons no gatilho”, enfatizou Mariano.

Aqueles que preferiam manter o estilo de vida criminoso viviam somente o presente, sem se preocupar com o futuro. Por isso, muitos gastavam tudo que ganhavam com bebidas e orgias. “Quem vivia nesse mundo, mais cedo ou mais tarde, seguia essa sequência: roubo, morte e homicídio”, assinalou Goevert.

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