Archive for the ‘Solidão’ tag
“Aprenda a ficar sozinho. Aprecie a solitude”
O que você gostaria de dizer aos jovens?
Tarkovsky – Eu não sei … Acho que eu gostaria apenas de dizer que eles [os jovens] deveriam aprender a ficar sozinhos e tentar passar o maior tempo possível sozinhos. Acho que uma das falhas dos jovens hoje é que eles tentam se reunir em torno de eventos que são barulhentos, quase agressivos às vezes. Esse desejo de estar junto para não me sentir sozinho é um sintoma infeliz, na minha opinião. Toda pessoa precisa aprender desde a infância como passar tempo consigo mesma. Isso não significa que ela deva ficar [sempre] sozinha, mas que ela não deveria ficar entediada consigo mesma, porque as pessoas que se aborrecem em sua própria companhia parecem estar em perigo, do ponto de vista da autoestima.
Essa reflexão compartilhada em um cenário bucólico e quiçá onírico, assim como é recorrente em seus filmes, talvez seja a mais icônica de Andrei Tarkovsky, que como poucos explorou temas como solitude, solidão, incomunicabilidade – sempre com um singular viés filosófico. Filho de poeta, desenvolveu o lirismo muito cedo.
Tarskovsky foi evidentemente um dos maiores cineastas russos da história, mas ouso dizer que ele foi um dos maiores do mundo. Ingmar Bergman o admirava e o respeitava profundamente. Vindo de Bergman não é difícil entender a dimensão disso, já que ele tinha admiração por poucos cineastas.
Um garoto com raiva
Conheci um garoto na Vila Alta que vivia com raiva, com uma notável expressão carrancuda. Ele disse que não tinha controle sobre o que sentia.
— Você está com raiva?
— Sim.
— Com que frequência?
— Todo dia, toda hora.
— Há quanto tempo?
— Não sei dizer não, senhor.
— O que te deixa alegre?
— Não sei dizer – respondeu com um sorriso tímido.
— Cadê seus pais?
— Tenho não. Moro com minha vó.
— Você tem raiva de alguém em específico?
— Tenho raiva da vida.
— Por que a vida te deixa com raiva?
— Porque eu não existo.
— O que é existir pra você?
— As pessoas me enxergarem de verdade.
— Quem te enxerga de verdade?
— Acho que quase ninguém.
— Como você sabe disso?
— Porque ninguém me elogia, nunca.
— Então ser elogiado é uma forma de existir?
— Sim…
— Por quê?
— Sei lá. Porque significa que alguém acha que faço alguma coisa certa, que tenho alguma coisa boa, qualidade.
— E quantas vezes já te elogiaram?
— Poucas.
— E como você se sentiu?
— Feliz…
— Se você recebesse um elogio sincero por dia acha que não sentiria mais raiva?
— Acho que sim, né?
— Que tal começar a anotar os elogios que recebe das pessoas para não esquecê-los?
— É…pode ser.
— Talvez você não se recorde dos elogios que já recebeu porque recebe mais críticas, mas isso não significa que tenha recebido poucos elogios ao longo da sua vida. A verdade é que quando somos criticados com muita frequência, temos uma tendência a esquecer as coisas boas que já nos disseram. Nossa mente nos força de algum modo a relegá-las à insignificância quando nos mantemos em estado de negatividade. Coisas boas acontecem, mesmo que não tanto quanto gostaríamos. Elas existem, e surgem, em algum lugar, até quando fechamos os nossos olhos. Os elogios podem saltar da nossa própria mente, como um presente para nós mesmos.
— Acho que sim…
— Sempre que alguém te falar algo de bom, memorize e anote.
— Você vê alguma qualidade em si mesmo?
— Às vezes…
— Me dê um exemplo…
— Nunca prejudiquei ninguém…
— Isso é muito bom.
— E por que você nunca prejudicou ninguém?
— Porque é errado. Não gosto de fazer mal para ninguém, nem gente nem bicho.
— Isso é um exemplo de que você tem um bom caráter.
— Será?
— Sim.
— Não tenha dúvida disso, porque nesse caso a dúvida serve apenas para dificultar a sua própria aceitação. Quero dizer, se você não reconhece uma qualidade que atribuem a você, isso pode ser um problema, porque significa que você se recusa a se ver como os outros o veem. Se fosse mentira, tudo bem, mas não é o caso. Se falam de uma qualidade genuína, que tem a ver com a forma como você vive e age, não tem porque não concordar.
— É…acho que sim.
— Em muitos casos, as pessoas dizem coisas ruins não porque elas são más. É uma forma de defesa. Por exemplo, estou incomodado com algo, logo me sinto vulnerável, e acabo por direcionar isso para alguém. Então se eu não tiver controle, acabo por ofender e magoar as pessoas. Você já fez isso?
— Sim…
— Foi bom?
— Não…
— Pois então…
— Você ainda está com raiva?
— Não.
— Por quê?
— Porque você disse que tenho bom caráter, e eu tenho mesmo.
É importante enxergar a intenção para além das palavras. Muitas vezes o que parece ácido ou agressivo pode ser a couraça da sensibilidade.
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A ansiedade social de Kafka
Samsa é a gradação surrealista do escritor em estado patológico, como uma figuração quimérica
O primeiro e mais pungente indício de que o escritor tcheco Franz Kafka sofria de ansiedade social está na sua obra mais famosa – “A Metamorfose”, de 1915. A transformação de Gregor Samsa revela não apenas o medo, aceitação seguida de ostracismo e o rompante de cólera do protagonista diante de um mundo que pouco representa além da compressão da sua própria existência, mas também as inúmeras facetas das afecções e doenças então inominadas que atingiam Kafka.
Samsa é a gradação surrealista do escritor em estado patológico, como a sua própria figuração quimérica e exemplarmente estruturada a partir de seus problemas registrados em cartas e diários. “Sou incapaz de viver com as pessoas, de falar. Vivo imerso em mim. Me sinto apático, sem juízo e com medo. Não tenho nada a dizer a ninguém. Nunca!”, escreveu em uma das cartas enviadas à tradutora tcheca Milena Jesenská, com quem se correspondeu entre os anos de 1920 e 1923, estabelecendo um grande laço de confiança.
Estar sozinho era tão essencial para Kafka que ele via nisso uma genuína forma de poder, algo que dissolvia o seu interior e o preparava para trazer à tona o que ele resguardava de mais profundo em seu âmago. “Quando estou voluntariamente só, há uma ligeira ordenação em meu interior e isso faz com que eu não sinta falta de nada”, declarou.
Introvertido, as interações sociais faziam com que o autor se sentisse drenado. Somente a completa solitude garantia a recuperação de sua energia e serenidade. “Escrevo diferente de como falo e falo diferente de como penso”, revelou. Kafka experimentou beber para lidar com a ansiedade social, um método comum incentivado por seus colegas, mas que não o ajudou em nada. “Não posso usar drogas para enganar a minha solidão, pois ela é tudo que tenho. E quando os efeitos das drogas e do álcool se dissiparem, será tudo que meus colegas terão também”, refletiu.
Ele reconhecia o condão da sua eloquência com a escrita, porém sempre se deparou com uma barreira que o impedia de se expressar da mesma maneira quando conversava com alguém. “Sou muito tímido para dizer o que realmente penso e acabo me sentindo mal por isso”, confidenciou. Franz Kafka lamentava o desconforto por não conseguir se comunicar com outras pessoas da mesma forma que ele fazia com os parentes mais próximos.
“Não fico ansioso com minha irmã mais nova e eu gostaria de ser assim com todos. Destemido e poderoso, é como me sinto quando escrevo. É como se minha ansiedade não existisse. A ideia de alguém ler o que escrevo também nunca me incomodou, a não ser que peçam que eu fale sobre o que escrevi”, registrou em outra carta.
Em uma de suas queixas, o escritor admitiu que nunca teve um relacionamento sério e que a ideia de ter filhos lhe parecia muito distante. “Quando alguém fala comigo, não consigo evitar de pensar que posso ser atacado, então meu instinto é fugir”, desabafou, lembrando-se de um episódio em que um dia à meia-noite um conhecido se aproximou dele em frente a uma cafeteria quase deserta e o convidou para uma conversa. Assustado, Kafka declinou o pedido e foi embora às pressas.
Outros convites se repetiram e ele sempre suspeitava que se aproximavam dele por piedade. Foram poucas as ocasiões em que o escritor concordou em sentar-se à mesa com pessoas que não faziam parte de sua família. “Tudo que não é literatura me aborrece e eu odeio isso. Me falta toda a aptidão para a vida familiar, exceto, na melhor das hipóteses, como observador. Quando recebemos visitas em casa me vejo prestes a me tornar alvo de algum tipo de malícia”, relatou.
Kafka se julgava como alguém sem vida social, que passava as noites na pequena varanda de casa, observando o rio. Não se considerava uma boa pessoa. “Eu pouco me preocupo com os outros. Sou uma pessoa ridícula. Se você estiver um pouco apaixonada por mim, só posso crer que seja comiseração. E de minha parte, só posso sentir medo”, segredou em carta à jovem Hedwig W., escrita em Praga em 29 de agosto de 1907. Para ela o escritor produziu o poema “Anos Atrás”.
Também afirmou que sua vida se pautava na permanente tentativa de comunicar o incomunicável, explicar o inexplicável. “Estou sempre escrevendo sobre algo que habita meus ossos e que só pode ser experimentado através deles. Basicamente sinto o medo se espalhando por mim, um temor paralisante de pronunciar uma palavra. E não somente pavor, mas também um anseio por algo maior do que tudo o que representa o medo”, confessou em carta a Milena Jesenská.
Como Milena definiu Franz Kafka
“Ele era tímido, gentil e amável, mas escreveu livros muito dolorosos. Viu um mundo cheio de demônios invisíveis que rasgam e destroem pessoas indefesas. Ele era lúcido e sábio demais para a vida. Chegou a um ponto que dominado pela fraqueza não conseguiu mais lutar. Era uma fraqueza dos nobres, de quem teme o mal entendido, a indelicadeza e as mentiras intelectuais. Era de uma casta de pessoas com sensibilidade que poucos são capazes de entender. Um solitário com um olhar profético que através de uma olhadela é capaz de perceber coisas que outros jamais notariam. Ele próprio representava um mundo profundo e extraordinário.”
Nascida em 10 de agosto de 1896, em Praga, então território do Império Austro-Húngaro, Milena foi a principal tradutora de Kafka – da língua alemã para a tcheca.
Saiba Mais
Nascido em Praga em 3 de julho de 1883, Franz Kafka faleceu aos 40 anos em decorrência de uma tuberculose laríngea que o impedia de se alimentar. Curiosamente, quando faleceu, Gregor Samsa, seu personagem mais famoso, estava bem magro porque há muito tempo não se alimentava. O escritor que pouco se importava com a fama só ficou conhecido após sua morte.
Referências
Kafka, Franz. Letters to Milena, Schocken Books, 1952.
Kafka, Franz. Letters to Family, Friends and Editors, Schocken Books, 1959.
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O amor de Zoltán
Preferia cultivar um amor platônico, talvez às avessas na sua peculiaridade heteróclita
Foi num dia das mães que perdi o meu melhor amigo, Zoltán, um poeta vegetariano que nunca se considerou poeta. Embora morássemos na mesma cidade, o conheci por meio da internet em 1999. Tínhamos a mesma idade e inúmeras afinidades. Era um jovem de aspecto tranquilo, mas existencialmente buliçoso. Vivia mais dentro da própria mente do que fora dela. Amava as pessoas, só não fazia muita questão de se aproximar delas. Preferia cultivar um amor platônico, talvez às avessas na sua peculiaridade heteróclita. Começou a escrever sobre os animais e os seres humanos na adolescência, e mesmo com o passar dos anos e centenas de obras arquivadas nunca considerou nada do que produziu como “bom o bastante”. Na realidade, não se via como escritor, mesmo escrevendo melhor do que muitos autores profissionais. Apesar da minha insistência, Zoltán nunca quis participar de concursos, festivais ou procurar editoras que pudessem se interessar pelo seu trabalho. Nutria justa mágoa pelo mercado editorial.
“Eles sempre vão privilegiar os escritores das metrópoles, sujeitos que possam trazer-lhes benefícios em curto prazo. Eles defendem que lá é o berço da universalização. Se debruçam sobre o próprio reflexo, ignorando tudo que é produzido fora dos grandes centros, independente de qualidade. E esse tipo de pensamento é partilhado por muitos escritores, logrados pelo próprio pedantismo. Eu particularmente pouco consigo distinguir entre os chamados grandes autores da atualidade. O que vejo com frequência é o enfadonho excesso de academicismo ou escritores que saíram das ‘páginas literárias’ dos grandes veículos de comunicação. Ou seja, gente do meio que nenhuma dificuldade teve em incluir-se mais ainda nele. E muitas vezes soam elitistas e distantes da população em geral com seu hiperbólico requinte. Não é de se admirar que os brasileiros leiam pouco, se quem produz literatura já cria esse distanciamento. Também temos aqueles que se colocam como baluartes da contracultura e publicam tudo que escrevem, sem o menor critério – coisas que não somos capazes de avaliar porque basicamente não possuem estrutura definida. Há quem qualifique isso como arte revolucionária. A história se repete à exaustão. Não existe espaço para quem segue na contramão disso, então não vejo motivo para que eu me meta em algo assim”, desabafou em uma conversa que tivemos em 2003 em uma rede de Internet Relay Chat (IRC).
Nas poucas vezes que saímos juntos pelas ruas de Paranavaí, alguns conhecidos perguntavam se éramos irmãos, tão insólita era a semelhança, já que além dos traços mediterrâneos e da mesma estatura, tínhamos também postura e comportamento bem parecidos. O cenho sisudo, o olhar insondável, entranhado, e um andar lesto e hermético, de quem percorre mais o próprio interior do que o mundo. Zoltán era tão ponderado que até seu sorriso era versado. Nada nele era exagerado, a não ser o amor que descobriu pela primeira vez em 2007 quando conheceu uma moça de São Paulo da mesma idade. Seu nome era Linda e ela se aproximou dele porque gostou de uma prosa poética que ele publicou em seu blog. No texto, Zoltán abordou o amor genuíno como uma livre forma de existir, isenta de posses, e a partir daí desenvolveu uma parábola sobre um peixe que vivia em um aquário e num dia de enchente saltou da janela, partindo com a correnteza.
“O amor para ser verdadeiro não pode ser afugentado. Ele tem vida própria e está acima dos nossos anseios, da nossa existência. Quer maior prova do que a sobrevivência do amor de um Montecchio e um Capuleto após centenas de anos? O amor é uma das poucas coisas da nossa natureza que resiste à morte porque ele não é palpável, é intangível, pode ser imortal, ao contrário de nós. O ódio nunca vai superar o amor porque ele não frutifica na mesma proporção. Além disso, o que o amor enaltece a cólera corrói; e tudo que é deletério mortifica o homem em vida enquanto o amor na sua pureza o sublima”, dizia meu amigo no paradoxal arrebatamento da serenidade.
Zoltán e Linda conversavam todos os dias pela internet e pelo telefone celular. Sua confiança em mim era tão grande que fazia questão de me relatar em detalhes o que sentia por aquela jovem que despertou nele sentimento inédito. Conforme eu o ouvia, seus olhos rutilavam como bolinhas de serendibite. Ele sorria e ruborizava como um bebê reconhecendo o poder da vida nos olhos da mãe. Em todos os sentidos, Linda fazia jus ao nome, e o que mais extasiava Zoltán era o fato de ter encontrado uma moça que mergulhava em sua essência como ninguém. Sobre ela, começou a escrever todos os dias. Criou obras dos mais diferentes formatos e gêneros. Mas nem tudo ele mostrava ou publicava. “Só envio à Linda o que me afaga o coração”, justificou um dia. A conexão entre os dois era tão profunda que um dia estávamos na rua e Zoltán teve um mau pressentimento, uma sensação ruim que o fez transpirar subitamente numa manhã fria.
Quando ligou para Linda, ele soube que ela estava internada em um hospital por causa de um problema gástrico. Algumas semanas depois, Linda sentiu um mal-estar na casa da tia e teve de se deitar. Mais tarde, ela soube que naquele horário Zoltán se envolveu em um acidente perto do Porto São José, quando seu carro quase foi engolido por uma cratera velada por um amontoado de terra. Apesar da distância, se respeitavam e se amavam, entregues a um relacionamento sem contato físico, alimentado por palavras rapidamente transformadas em emoções, sentimentos e sensações.
Eles faziam planos, mas temiam o que poderia acontecer. Talvez a iminente felicidade os amedrontasse. Linda trazia no coração cicatrizes de um velho relacionamento em que flagrou o ex-namorado a traindo com a melhor amiga. Zoltán, que nunca se interessava por ninguém, tinha uma trajetória de vida em que sempre se viu como o lobo da estepe. Com o passar dos anos, e sem jamais terem se encontrado, continuavam se resguardando. Em 2012, Linda adoeceu e nenhum médico descobriu qual era o seu problema de saúde. Temendo ser um fardo para Zoltán, ela o evitava, chegando a passar meses sem usar o celular. Preocupado, ele enviava mensagens e e-mails demonstrando interesse no bem-estar dela.
Continuou escrevendo sobre Linda, não com a mesma intensidade, porém o suficiente para provar que seu sentimento perseverava imaculado. Um dia testemunhei Zoltán com o rosto umedecido quando Linda publicou um novo comentário em seu blog. Alanceados e sensíveis demais, os dois se completavam como ouro e platina no subsolo dos Montes Urais. “Mesmo com as incertezas do futuro, prefiro ter no coração a plenitude de um sentimento lídimo, que faz de mim um ser humano melhor do que um oco pertinaz motivado a buscar nas noites sinuosas o prazer efêmero que nada toca além da carne”, escreveu.
Zoltán era um Werther maduro, com motivações muito mais genuínas do que o protagonista de Goethe, vencido por uma disforme e equivocada concepção do amor. A maior prova disso foi o que aconteceu no dia das mães de 2014. Vivendo em Curitiba, Zoltán foi encontrado morto em seu apartamento, vitimado por um ataque cardíaco. Só consegui localizar Linda um mês depois e entreguei a ela um e-mail que ele me enviou duas semanas antes de sua morte.
Zoltán tinha um problema cardíaco congênito. E ele sabia que não viveria muito. Porém, optou por não dizer nada a ninguém. Passou seus últimos dias de vida fazendo o que mais gostava – escrevendo. Linda caiu em prantos quando soube da tragédia. Sem saber o que dizer, contei a ela que o céu também desabou quando ele morreu. Naquele dia, saí de casa e ouvi através do som ruidoso e sorumbático dos trovões a voz de Zoltán. A chuva parecia especialmente salgada, como lágrima concentrada. “Meu melhor amigo, como protagonista de uma epopeia, não teve a chance de formar sua própria alcateia. Ainda assim, amando morreu como um tipo superior de Romeu”, concluí.
Hoje me surpreendi com o dia das mães porque com muita chuva e uma sequência de trovões não deixei de ver no céu o rosto de Zoltán carinhosamente descortinado por um véu. “O amor de verdade é uma concessão, sobrevive sem vida e até fora do coração. Ele é nosso enquanto vivemos e torna-se imortal quando morremos. Amar você foi o meu maior presente porque através dele mergulhei no mais sublime sonho fremente”, registrou em um pequeno trecho de um e-mail enviado à Linda.
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Um dia reconhecendo a fragilidade da vida
Esgotado, mantinha os olhos semimortos em direção ao líquido âmbar profundo dentro do copo
Acordei cedo numa manhã de outubro de 1993. Após o café da manhã, abri o jornal para ler o obituário. Garotinha de 11 anos, homem de 31 anos e senhora de 51 anos estavam na página, vítimas de meningite, acidente de carro e câncer de mama. Os três tinham nomes completos com a mesma quantidade de letras. A expressão no olhar de cada um nas fotos em preto e branco era bastante similar. A mim, transmitia um misto de melancolia e fragilidade. Além disso, fiquei sabendo depois que faleceram no mesmo horário, nem um minuto a mais ou a menos.
Enquanto lia, me distraí e levei um baita susto quando ouvi a voz da minha mãe. Fechei o jornal e, atendendo a um pedido dela, fui até a Casa Moreira, na Rua Manoel Ribas, comprar alguns produtos de limpeza. No caminho, só conseguia pensar no que a morte teria levado de cada falecido. “Ninguém nunca mais vai ver aquelas pessoas andando por Paranavaí. Acho que deve ter gente chorando, gente com raiva… O que será que estão pensando sobre a morte? Nossa! Aqui morre gente todo dia… Se existe paraíso, deve ser um lugar gigante pra caber esse povo todo”, refleti.
Na Moreira, assim que coloquei a mão em um frasco de alvejante, ouvi uma mulher de pouco mais de 30 anos chorando. Me aproximei e a vi segurando um maço de velas e retirando uma grande caixa de fósforos da gôndola. Entre soluços, comentou com sua mãe que a sua filha disse na semana anterior qual era o seu sonho. “Mãe, quero cuidar do Tininho. Acho que ele tá doente. Você viu como a barriga dele tá inchada? Se eu melhorar, quero ser médica de animais, assim nunca vou deixar nenhum bichinho sofrer”, narrou a mulher, reproduzindo com sofreguidão o discurso da filha. Seus olhos negros como a noite denunciavam através de um aureolado carmim que o choro se estendeu por tanto tempo que havia sinais de queimaduras na ourela dos olhos.
Quando eu estava me afastando, escutei a moça relatando num rompante emocional: “Perdi a Betina, mãe! A perdi pra sempre! Sabe o que ela me falou antes de morrer? ‘Vou dormir um pouquinho, mãe. Você me acorda daqui a pouco?’” Em seguida, as duas se abraçaram dentro do mercado. E assim continuaram, numa troca de confidências não verbalizadas. Em respeito àquele momento, e com receio de ser visto, me distanciei vagarosamente e passei pelo caixa. Então as duas sumiram do meu campo de visão.
No mesmo dia, antes do almoço, fui com meu pai ao Restaurante Magia, na Avenida Distrito Federal, buscar quatro marmitas. Quase todas as mesas e cadeiras estavam ocupadas por famílias, grupos de amigos e de colegas de trabalho. Notei pessoas em silêncio, sorrindo, contando anedotas, falando alto e repreendendo os filhos pequenos que circulavam por baixo das mesas. Com os braços curtos abraçando o topo da cabeça, fingiam que fugiam de bombardeios.
Em um canto, sentado em um banco, o único homem solitário no restaurante deslizava o dedo indicador da mão direita pelas bordas de um copo de whisky. O seu aspecto sorumbático e adventício contrastava com o cenário, assim como as olheiras formando arcos de ciprestes tão densos que davam a impressão de pesar sobre os seus olhos, o forçando a inclinar a cabeça em frente ao balcão. Esgotado, mantinha os olhos semimortos em direção ao líquido âmbar profundo dentro do copo. As bebericadas eram insuficientes para umedecer os lábios esquálidos e ressecados. Parecia não se importar em suavizar aquelas pequenas fendas que aos poucos se transfiguravam em cicatrizes.
Naquele local a única coisa que o incomodava era a dormência das pernas. Por isso, vez ou outra movia os pés do apoio do banco e os sacolejava. Numa dessas meneadas, um chaveiro de prata escorregou e ficou pendurado no bolso esquerdo da calça de linho cinza, por onde despontava a imagem de uma jovem mulher nos anos 1970. Ocasionalmente o sujeito deslizava os dedos pela foto enquanto conduzia os olhos mortiços até um rádio pequeno a poucos metros de distância que executava “Please, Forgive Me”, de Bryan Adams, em volume baixo.
Ao final da música, o senhor de meia-idade pagou a conta, acenou com a cabeça sem dizer palavra e atravessou o restaurante lotado. Não notou qualquer presença – ou preferiu ignorar. Nem olhou para os lados. Somente parou na entrada do estabelecimento, observou rapidamente o céu, abriu um relógio de bolso dourado para ver as horas e seguiu pela Avenida Distrito Federal com o rosto mirando o bico abaçanado dos sapatos.
No início da tarde, por volta das 13h, minha mãe me chamou para ir ao Cemitério Municipal de Alto Paraná ajudar a limpar os túmulos da minha bisavó e de dois tios-avôs falecidos na juventude. Me empolguei com a ideia de rever o lugar, já que no meu ideário de criança uma necrópole nunca significou simplesmente um ambiente de consternação, mas também um universo de possibilidades de aprender um pouco mais sobre a vida e as pessoas.
Depois de percorrer 19 quilômetros de asfalto e mais alguns de senda – sentindo imponderável friozinho na barriga ao passar por tantas lombadas de terra, fomos surpreendidos por um cãozinho mestiço, bigodudo, de pelagem rala e acobreada que correu em frente ao carro enquanto assistíamos as cortinas de poeira sabulosa ocultando o horizonte com a intensidade de um siroco. Por sorte, meu pai conseguiu frear a tempo.
Escanifrado e de barba sarapintada, um rapaz recostado na carroceria de um caminhão velho carregado de melancias orgânicas tirou o cigarro de palha do canto da boca. Veio em nossa direção segurando com a mão esquerda um facão respingando suco de melancia. Com a direita acompanhada de um olhar dúbio, acenou para o meu pai abaixar o vidro.
“Óia, não leve a mal não. Além de pestiada, a bichinha tá baruiano. Então ela fica tchuca tchuca. Ô alemoa, traz uma metade dessa melancia aí que vou taiá pro homem aqui”, gritou o rapaz para a sua companheira. Meu pai sorriu, agradeceu e disse que não era necessário. Ainda assim, o homem insistiu até levarmos um pedaço da fruta de miolo vermelho tão aveludado que parecia uma iniquidade comê-lo.
Perto da entrada, durante a limpeza do túmulo da minha bisavó, minha mãe perguntou se eu sabia o porquê do cemitério ficar tão longe da cidade. “Quando foi construído, pensaram que o progresso, a área urbana de Alto Paraná, viria até aqui. Uma pena! As erosões não permitiram construções nesta área”, explicou. No terceiro jazigo, do meu tio-avô João, falecido em 1962, havia flores de uma ex-namorada dos tempos da juventude.
A poucos metros de distância, o som de uma brisa, que fazia árvores das mais diversas espécies se inclinarem sobre os visitantes ,desapareceu em meio a soada de passos fragorosos e vozes dissonantes. O pandemônio chamava a atenção para uma jovem de beleza delicada, pele oliva, cabelos castanhos e não mais que 25 anos caída sobre uma lápide. Ela não se movia. Estava mole e frágil como a rosa vermelha e antes cálida que murchou com a soalheira, se dobrando ao seu lado dentro de um vaso de cerâmica rosácea. Em meio ao barulho ensurdecedor dos curiosos, seu rosto tinha feição serena e alheia. Quem sabe, como sua própria existência.
Fora do cemitério, talvez por educação, algumas beatas praguejavam a moça pelo suicídio à base de estricnina. “Quis morrer? Tá bom! Conseguiu. Mas acha que vai ingrupi Deus? Não vai não! Lugar de quem faz isso é no inferno. Aaah! Se fosse minha filha tinha levado uma camaçada de pau pra não ter esse tipo de pensamento de gente varrida!”, esbravejava uma senhora de pelo menos 60 anos, representante de uma entidade filantrópica. Lá fora, um pedreiro que sempre fazia bicos de reforma e limpeza de túmulos no mês de outubro contou a alguns abelhudos o possível motivo da morte da moça.
Em casa, à noite, recostei a cabeça no travesseiro e demorei a dormir, refletindo sobre tudo que vivenciei naquele dia 30 de outubro de 1993. Da janela do meu quarto, observei de soslaio as parreiras de uvas que se enrolavam nas treliças de arame rente ao muro branco. Mais adiante, um céu quebrantado e abissal me fez imaginá-lo furibundo, prestes a engolir o mundo. “Cadê as estrelas? Cadê a lua? Talvez esteja de luto pelas tantas estrelas que viu nascer e morrer. Será que se cansa como nós? Ah! Não dá pra saber! Deve tá reunindo forças pra ressurgir com a manhã!”, pensei.
Voltei meus olhos para as parreiras e notei que algumas tinham se soltado das treliças. Pareciam quebradiças, sem liames, moribundas. Então lembrei das três pessoas do obituário. Ao longo de uma manhã e uma tarde o acaso me conduziu a elas através da dor daqueles que padeciam diante do vácuo da ausência e da contumácia da solidão.
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As tatuagens de Tiziu
As formas irregulares revelam o sofrimento que passou para registrar no corpo os nomes dos pais
Tiziu tem 12 anos e passa a maior parte do tempo nas ruas da Vila Alta, na periferia de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Quem não o conhece, pensa que ele está sempre com raiva. Circunspecto e bicudo, engana apenas os estranhos. Os mais próximos sabem que a feição carrancuda é apenas uma forma de velar a natureza sensível. Mas não é preciso mais do que alguns minutos de conversa para perceber o quanto Tiziu é carente. Suas confidências sobre a vida e o cotidiano revelam mágoa, solidão e ao mesmo tempo um desejo incólume de ser incentivado de alguma forma. “Saí da escola porque tiravam sarro de mim, não me encaixava. Me ofendiam, me chamavam de burro. É o pior lugar do mundo. Prefiro a rua”, sentencia ao pressionar as próprias mãos.
Tiziu costuma conversar evitando contato visual. Quando se sente intimidado, observa tudo a meio metro de altura. Foi condicionado a encarar a vida e o mundo como se fosse um ser rastejante, dotado de um visão limitante que poucas vezes o permite contemplar a totalidade de alguma coisa. “Fico andando pela vila quando não tenho nada pra fazer”, comenta. O garoto normalmente fica pouco à vontade fora do bairro. Deslocado, parece que sente a visão se comprimindo diante de tantos olhares inquisidores. Distante da Vila Alta, já percebeu muitas pessoas o observando, tentando fundamentar suspeitas injustificáveis. “Acho que na mente deles eu não poderia sair daqui nunca”, afirma.
Apesar disso, Tiziu gosta de ir ao shopping, ambiente que segundo ele tem “cheiro de beleza”, onde se sente imerso num universo de “coisas boas”. “Quando estou lá, só vivo o momento. Fui lá poucas vezes. Uma vez comi tão bem que até esqueci quem me olhava torto”, comenta com um sorriso enviesado. Em um antebraço, Tiziu tem tatuado o nome da mãe e no outro o do pai. Há entre eles o desenho de um diamante concebido com esmero. A ideia é mostrar que são duas partes de um todo simbolizando aquilo que o garoto considera o bem mais precioso e raro em sua vida – o amor familiar. A grafia em caixa alta é simples, mas profunda. As formas irregulares das letras revelam o sofrimento que passou para registrar no corpo os nomes dos pais. “Tem a ver com amor, né? Família é pra sempre”, destaca num tom de voz embargado.
As três tatuagens foram feitas por Tiziu com uma maquininha que ele mesmo criou à base de garfo velho, tinta de caneta, fita isolante, agulha de costura, motorzinho, pilhas, isqueiro e estilete. “A gente inventa o que precisa”, diz. O garoto surpreende, não apenas pelas invencionices, mas também porque homenageou duas pessoas com quem não tem convivência diária. A mãe o levou para morar com os avós, alegando que não se davam bem. Tiziu então cresceu sem a presença materna. O pai, morador de outro bairro, não costuma visitá-lo mais de uma vez por mês. “Acho que me criei por aí. Minha avó já é bem idosa e meu avô vive pelos bares”, enfatiza enquanto desliza cuidadosamente os dedos pelas tatuagens, a alternativa encontrada para se sentir mais próximo dos pais.
Saiba Mais
Tiziu é um apelido fictício para preservar a identidade do entrevistado.
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Gondry, Kaufman e as dores da alma
Eternal Sunshine of the Spotless Mind aborda a instabilidade humana frente às adversidades das relações amorosas
Lançado em 2004, Eternal Sunshine of the Spotless Mind, que chegou ao Brasil com o fidedigno título Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, é um filme do gênero drama do cineasta francês Michel Gondry em parceria com o estadunidense Charlie Kaufman, roteirista muito conhecido por obras conceituais como Being John Malkovich, de 1999, e Adaptation, de 2002.
Protagonizado por Joel (Jim Carrey) e Clementine (Kate Winslet), que se somam a outros personagens interpretados por famosos como Elijah Wood, Kirsten Dunst e Mark Ruffalo, Eternal Sunshine of the Spotless Mind é um filme interessante sobre a ficcional possibilidade de desconstrução das emoções e sentimentos. Após um conflito amoroso, Clementine decide se submeter a um procedimento neurocirúrgico para apagar Joel de sua memória. A iniciativa parte de uma premissa e anseio de idealização instintivamente humana após grande, mas natural experiência de sofrimento.
Ao saber do ato de Clementine, Joel opta por fazer o mesmo. Durante o processo se arrepende e começa uma batalha psicológica e emocional para preservar fragmentos de sua vida com a namorada. A dor se intensifica ainda mais conforme a mulher se desvanece da memória de Joel. Momentos vividos a dois tornam-se vazios quando o homem é relegado a ser o único personagem de uma realidade que só poderia ser intensa se vivida de forma compartilhada. Tudo parece desértico, difuso e disperso em um contexto mental fugidio e atroz, onde a dor desequilibra a essência humana e submete o homem ao desespero das incertezas da própria existência.
A introspecção leva Joel ao cume da solidão, assim o filme se eleva a um caráter metafórico excepcional. Juntos, Joel e Clementine, inertes em mundos paralelos, mas dissonantes, chegam a representar a desmaterialização do amor. É algo tão dolorosamente humano que lança turbilhões de luz sobre as falhas da natureza social, principalmente a individualização motivada pela insegurança e franca possibilidade de incompreensão. No fundo, tudo é sustentado como consequência de uma comunicação canhestra.
Em suma, Eternal Sunshine of the Spotless Mind é uma obra bela e triste que mistura humanismo, existencialismo e surrealismo. Muito bonita ao traduzir a interiorização e as dores da alma com requinte poético, mas sensivelmente tétrica em premeditar e denunciar o princípio do fim das boas e tradicionais relações humanas. Afinal, o filme parece se embasar na ideia de que em situações de conflito amoroso e existencial cresce o número de pessoas que preferem reclamar de não ter acesso a uma tecnologia capaz de eliminar os desconfortos que as afligem. Não se dão conta que melhor seria ponderar e tentar lidar de frente com as situações mais complicadas.
O incompreendido e seminal Truffaut
Les quatre cents coups, uma autobiografia à François
Les quatre cents coups, que no Brasil ganhou o título de Os Incompreendidos, é um filme de 1959, do surpreendente François Truffaut. Ícone da Nouvelle Vague, a obra mostra os conflitos vivenciados por uma criança dividida entre uma existência pueril, alimentada por sonhos, e uma contumaz e gélida realidade doméstica.
A obra de François Truffaut, subjetivamente autobiográfica, mostra as belezas e as dificuldades que volatilizam o universo de um garoto em constante conflito familiar. O protagonista, Antoine Doinel, interpretado por Jean-Pierre Léaud, é uma criança que se refugia em livros para se sentir mais humana e mais viva, como se fizesse parte da casta dos literatos que tanto admira, entre eles o prolífico realista Honoré de Balzac.
Na história, o cineasta apresenta uma figura paterna impotente, fragilizada e subserviente. Em suma, às raias da insignificância. Já a materna, é alheia ao contexto familiar, rendida à superficialidade, egoísmo, egocentrismo e individualismo. No filme, François Truffaut rompe o paradigma de um mundo em que os pais vivem em função dos filhos, o que acidentalmente justifica o título brasileiro.
Para saturar a inexistência de qualquer distinção entre crianças e adultos, Truffaut mostra pais e professores conversando com seus filhos e alunos de forma igualitária, como se não houvesse distinção de faixa etária – o que também remete ao clássico Zéro de conduite (Zero de Conduta), de Jean Vigo, assim como a cena antológica dos estudantes correndo pelas ruas de Paris. A natureza bucólica e espontânea das crianças ganha espaço apenas nos momentos em que estão sozinhas, oclusas em um universo de complacência e liberdade.
Les quatre cents coups é um grande marco do cinema francês e dignifica de modo seminal a estética cinematográfica de Truffaut, autor que jamais precisou apelar para o sentimentalismo ou recursos sofisticados para encantar os espectadores.
Latinha, infância fragmentada pelo crack?
O texto abaixo é o primeiro de uma série de publicações com o tema Personagens do Submundo de Paranavaí em que relato com ênfase na subjetividade humana as experiências de pessoas que mesmo solitárias e marginalizadas conseguiram reencontrar a sua humanidade.
Um garoto que superou abandono, violência, miséria, escravidão, vício e solidão
Latinha, 13, é um garoto de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, que se tornou dependente químico aos seis, época em que foi coagido pela primeira vez a fumar crack em uma lata de refrigerante. Ao longo de cinco anos, viveu sem qualquer perspectiva de futuro, vagando pelas ruas, onde um universo aterrador criado a partir de um caos alucinógeno o afastou da realidade, espoliando sua humanidade.
“Chega uma hora que você vira bicho, rasteja pela sujeira e acha que está no paraíso”
A violência
“Lembro que cheguei em casa e vi meu padrasto batendo outra vez na minha mãe com um porrete que guardava embaixo da cama. Ela sangrava e eu comecei a chorar e pedi pra ele parar”, narra Latinha. Encolerizado, o homem o perseguiu. Não o alcançou, então arremessou o bastão e atingiu a criança pelas costas.
O golpe violento jogou Latinha contra a parede. Sentiu tanta dor que se limitou a chorar, sem conseguir se mexer. “Minha mãe me mandou correr. Nem sei de onde tirei força pra levantar, mas fiz o que mandou. Voltei pra casa no dia seguinte. Não encontrei nada nem ninguém, só umas manchas de sangue no chão e perto da janela”, relata o garoto que era filho único e continuou morando na casa, sem saber o paradeiro da mãe.
A inocência
Latinha tinha cinco anos e estava sozinho no mundo, sem ter o que comer, sem outra roupa para vestir e sentindo muito medo de existir. Então começou a se alimentar dos restos de comida que encontrava em sacos de lixo. Em uma das andanças, conheceu o órfão Naldinho Caneta, 8. Os dois tornaram-se amigos e decidiram morar juntos na residência da mãe de Latinha, um casebre de três cômodos e sem mobília, com as paredes cheias de fissuras.
A dupla dormia sobre um chão forrado de papelão e jornal velho e não se importava em dividir o espaço com invasores como ratos e baratas. Também pegavam animais de rua e levavam para casa. Com a ajuda de Naldinho, latinha abrigou até 27 cães e 15 gatos durante algumas semanas em 2003. Ameaçados pelos vizinhos, os garotos tiveram de encontrar novos tutores para os animais.
O trabalho
Mesmo sem uma fonte de renda fixa, e vivendo às raias da miséria, não tinham o hábito de pedir esmolas. Para sobreviver, investiam na coleta de materiais recicláveis. O lucro era pouco, mas a dupla até que se divertia. “Só era ruim mesmo quando alguém roubava as nossas coisas. Não podia dar bobeira e deixar o carrinho sozinho”, lembra Latinha que em parceria com Caneta trafegava pela Avenida Heitor Alencar Furtado todos os dias.
Até escaparam da morte numa manhã de domingo, quando um motorista embriagado invadiu uma ciclovia próxima a entrada da Vila Operária e jogou o carro sobre a dupla. “Só puxo mesmo pela memória os raspões nas pernas e nos braços. O Naldinho foi jogado sobre uma calçada, mas conseguiu levantar, sem nenhum machucado, apesar de assustado e um pouco tonto. O motorista deu ré e se mandou”, afirma.
O castigo
Após o acidente, Latinha e Naldinho tiveram de mostrar ao proprietário o estado do carrinho usado no transporte de recicláveis. O homem conhecido como Lanterna alugava o veículo por uma diária de R$ 5. Os chamou para conversar no fundo do quintal. Lá, passou a mão em um reio, antes mergulhado num latão que tinha um líquido estranho, ardido e fedido. Ficaram com medo e tentaram correr. Não deu tempo.
Cada um recebeu cerca de 25 chicotadas e nos últimos golpes os garotos desmaiaram sobre o solo arenoso. Latinha acordou com as unhas cheias de sangue porque segurou com muita força no chão. “Sentimos tanta dor que fizemos até xixi e cocô”, revela e em seguida ergue a camiseta para exibir algumas marcas deixadas por Lanterna nas costas e no abdome.
Além da punição, Latinha e Naldinho tiveram de trabalhar de graça por três meses em uma carvoaria clandestina nas imediações de Porto Rico. O serviço era de segunda a segunda, durava umas 18 horas por dia e dormiam lá mesmo, do lado de umas pilhas de lenha e em cima de umas estopas sujas e rasgadas. Só tinham direito a duas refeições, quase sempre virado de feijão, e tudo era controlado.
A cegueira
No último mês de trabalho na carvoaria, empreenderam fuga por uma erma estrada de chão. Só correram algumas centenas de metros até serem alcançados pelo filho de Lanterna. O rapaz os levou de volta até a carvoaria e não revelou o acontecido ao pai. No dia seguinte, se recusaram a trabalhar, então Lanterna decidiu puni-los. Os amarrou e esfregou em seus olhos um punhado de brasa enrolada num pano. Latinha ficou dois dias sem enxergar e chorou dia e noite. Quem sofreu mais foi Naldinho que por ser mais velho recebeu castigo dobrado. Só recuperou a visão depois de cinco dias. Nesse período, Latinha cogitou a possibilidade de serem mortos.
Quando perderam a visão, foram isolados em um chiqueiro. Eram alimentados às escondidas pelo filho de Lanterna que não concordava com a conduta do pai e os visitava com certa frequência. De vez em quando, escutavam o algoz reclamando e esbravejando algo como: “Seus lixos, não servem pra nada, nem o diabo vai querer duas pestes como vocês.”
“O presente”
Antes de completarem três meses de trabalho na carvoaria, Lanterna prometeu um presente, algo que chamava de “Disneylândia” e “Terra da Fantasia”. Entregou aos dois um saquinho com pedrinhas que pareciam pedacinhos de rapadura. Falou para fumarem, salientando que dava uma sensação muito boa e espantava tudo de ruim.
Latinha e Naldinho se recusaram a experimentar. Com facão em punho, Lanterna gritou que ninguém sairia da carvoaria sem fumar pelo menos uma pedra. O homem improvisou um cachimbo com uma lata de refrigerante e os forçou a tragar. Na primeira baforada, até acharam que poderia ser bom. “A gente não tinha certeza da aparência do crack, nunca tinha visto de perto”, diz Latinha, argumentando que evitavam qualquer contato com dependentes químicos pelas ruas de Paranavaí.
As primeiras sensações após o uso da droga foram de prazer, bem-estar e ligeira excitação. Logo que fumaram ficaram “ligados” e, com o coração célere, transpiraram e sentiram uma energia diferente. De repente, o mundo infantil se transformou. Naldinho ganhou pupilas dilatadas, mãos trêmulas e uma boca entreaberta. Na mesma noite, foram abandonados ao lado do chiqueiro, num chão ocupado por restolhos, cavacos queimados e fezes de animais. As costas estavam amortecidas por pneus velhos e sujos de graxa com as bordas embebidas em urina humana.
A degradação
Dias depois, retornaram à cidade. Não eram mais os mesmos. Estavam afundados em um universo de degradação. Na primeira semana alimentando o vício, Lanterna forneceu de graça as pedras de crack. Tudo mudou. Era preciso pagar R$ 5 por uma pedrinha minúscula. Então corriam atrás de bicos para continuarem comprando. Se passassem muito tempo sem a droga ficavam nervosos, em um estado que chamam de “noia”.
A princípio, a dupla aceitava qualquer tipo de serviço para ter acesso ao crack, menos participar de atividades criminosas. Mesmo assim, não demorou para trocarem a dignidade pelo vício. Latinha se recorda do episódio em que comeram um par de meias sujas e embebidas em urina e fezes em troca de R$ 10. Deixaram marcar as mãos com ferro em brasa por causa de um “bagulho”. Aceitaram que um rapaz passasse com a moto sobre seus pés em troca de R$ 5 para cada. Quanto mais tempo ficavam longe da droga, mais se tornavam capazes de atos inimagináveis.
Meses depois, a dupla de sete e nove anos foi introduzida como “laranja” no narcotráfico local, transportando pequenas quantidades de drogas entre os bairros. Rodavam toda a cidade, atendiam as bocas de fumo do Jardim São Jorge, Campo Belo, Canadá, Morumbi, Simone, Vila Operária e outras áreas. À época, perceberam que em Paranavaí havia pessoas de grande poder aquisitivo investindo no tráfico de drogas. “Vi gente importante que bota banca de certinho e roda de carrão importado pela cidade envolvida nisso”, comenta.
As alucinações
Latinha teve muitas alucinações quando fumava crack. Algumas remetiam ao passado enquanto outras eram indecifráveis e surreais. Assegura que teve visões com quem perdeu contato há muito tempo, até pessoas falecidas. O garoto gostava de ver um mundo mais colorido e mais vivo. O problema era quando o efeito passava. Ficava tudo preto, embaçado e sem vida, o que os motivava a fazer de tudo para continuarem usufruindo de um estado alucinógeno que chamavam de arco-íris. Divagavam com a ideia de um buraco se abrindo no chão e os puxando para dentro. “Tinha vez que o barato passava e eu me dava conta de que estava agarrado a um poste ou abraçado a uma placa, com o corpo tremendo”, confidencia.
Quando se drogavam, o mundo se fragmentava. Não sabiam se era dia ou noite, se estava frio ou calor. Acordavam em lugares desconhecidos ou dos quais não se recordavam mais. Por vezes, não reconheciam as pessoas e esqueciam até mesmo quem eram. “Chega uma hora que você nem parece gente, rasteja pela sujeira e acha que está no paraíso. Depois começa a viver com medo e sempre que percebe alguém te olhando acha que estão te perseguindo, até mesmo os animais. O cheiro e o sabor das coisas perdem o sentido, deixam de existir. Não sobra nada, só um vazio”, desabafa Latinha enquanto mira o horizonte e ajeita o boné sobre a cabeça.
Ato heroico I
Para Latinha, se não fosse por Naldinho Caneta dificilmente teria sobrevivido a tantas desventuras. A primeira foi em 2004, quando estava dormindo e deixou uma vela cair sobre o chão forrado com papelão. As chamas se alastraram pela casa. O pior foi evitado porque Naldinho tinha saído para procurar comida e retornou antes do esperado. Ao se deparar com o fogo, não pensou duas vezes antes de invadir o casebre. Com apenas oito anos, conseguiu abrir a porta, passou pelas chamas, pegou Latinha no colo e o levou para fora. Quando abandonaram a casa, os bombeiros ainda não tinham chegado. O mais surpreendente é que a dupla teve apenas queimaduras superficiais.
Ato Heroico II
Não foram poucas as vezes que Naldinho se envolveu em brigas para defender Latinha de outros menores de rua que o tentavam roubar e explorar. Aos 11 anos, Caneta colecionava cicatrizes pelo corpo. Eram marcas de pedradas, pauladas, garrafadas, chicotadas, até mesmo facadas. Apesar das dificuldades cotidianas, ainda despontava como um herói do submundo. O aposentado João Bosque da Silva, 78, se recorda de quando foi salvo por Naldinho.
“Recebi a aposentadoria e estava descendo pela Avenida Salvador, perto do Terminal Rodoviário Urbano, daí uma turma de moleques veio pra cima de mim mandando entregar todo o dinheiro. Me recusei e então o maior me mostrou uma faca”, relembra o aposentado. Naldinho Caneta que estava em um terreno baldio ao lado escorou sobre o muro e arremessou pedaços de tijolos contra os garotos.
Enraivecidos, os infratores saltaram para o interior da propriedade. Nem imaginavam que estava lá dentro com um cão rottweiler. João Bosque ouviu o garoto falando para o animal atacar os invasores. Sem demora, Naldinho saltou o muro e correu, sem dar tempo do aposentado agradecê-lo.
A superação
Um dia, a dupla estava vagando pelo Centro de Paranavaí quando Naldinho viu o próprio reflexo em frente a uma vitrine de uma loja de roupas. Tirou de dentro do bolso uma foto um pouco amassada, suja e falou: “Tá vendo, Latinha. A gente é isso aqui e não aquilo ali. Não me vejo naquele vidro. Você se vê? Por que me sinto como se tivesse vivo na foto e morto aqui fora, sendo que todo mundo sabe que não existe vida num pedaço de papel? Que loucura, né? A gente tem que mudar, Latinha, viver aqui fora e não na foto.”
Na imagem tirada antes da dependência química, Latinha, 6, e Naldinho, 8, aparecem descalços, mal vestidos e sujos. A maior diferença é que estão sorridentes e brincando em um lixão na Vila Alta, onde ao fundo se destaca um urubu sobre um sofá velho. Durante toda a entrevista, esse é o único momento em que Latinha treme e chora. Por instantes, se cala, segurando e observando a foto.
Após a autorreflexão em frente à loja, a dupla decidiu se afastar do crack. Nos quatro meses que se seguiram foi muito difícil, um teve de dar apoio ao outro, evitar recaídas. Latinha e Naldinho superaram o vício. Abandonaram tudo que faziam para reconstruir a casa queimada. Saíram pelas ruas da cidade procurando crianças e adolescentes sem-teto.
Reuniram nove menores, entre andarilhos e jovens que sobreviviam se prostituindo. Durante o dia, percorriam as construções, pedindo restos de materiais. Recolhiam as doações com uma carriola velha, descascada e barulhenta, que tinha o pneu careca, já exibindo o arame. Cinco meses depois, terminaram a reconstrução e a ampliação da casa que ganhou três novos cômodos.
Os conflitos
No quintal, fizeram uma horta grande que mais tarde se tornou um negócio rentável. Uma parte da produção era vendida em mercearias e a outra destinada ao comércio ambulante. Logo surgiram conflitos internos, pois nem todos contribuíam. Enquanto alguns se empenhavam em trabalhar e transformar a casa em um ambiente melhor, outros passavam o dia sob a sombra de uma enorme mangueira.
Latinha e Naldinho tentaram resolver a situação. Não houve acordo e pediram que os moradores insatisfeitos deixassem a casa. Neemias, 17, Pardal, 16, e Bota, 16, nem discutiram, apenas observaram Naldinho e Latinha por segundos antes de partirem sem rumo, rindo do acontecido. Na manhã seguinte, quando a dupla estava prestes a sair para fazer as compras da semana, perceberam que todo o dinheiro economizado e guardado nos furos de duas lajotas recostadas ao muro da casa foi levado.
Latinha e os demais quiseram recuperar o dinheiro, mas foram impedidos. Naldinho chamou-lhes a atenção e justificou. “Eles precisam mais do dinheiro. Vamos entender isso como um pagamento pelo que fizeram aqui. Aquela quantia não significa nada perto do que a gente conseguiu.” Todos refletiram a respeito, só que não o suficiente para amenizar a raiva. Só desistiram de ir atrás do trio por causa da interferência de Naldinho.
A covardia
Meses depois, em agosto de 2010, num final de tarde, Caneta empurrava pela Avenida Salvador, em direção ao Terminal Rodoviário Urbano, uma carriola onde levava um pouco de alface, almeirão e couve. Abordado por Neemias, Pardal e Bota, Naldinho encostou o carrinho de mão rente ao meio-fio. De acordo com o comerciante aposentado Geraldino Gonçalo, os três ordenaram que o garoto entregasse todo o dinheiro. Sem discutir, Caneta os observou atentamente e esvaziou os bolsos.
Insatisfeitos, Pardal e Bota tomaram-lhe a carriola, despejaram as hortaliças perto da guia e empurraram o garoto contra um muro branco, bem desgastado. Naldinho ergueu as mãos, sinalizando que não queria brigar, ainda assim Neemias sacou um revólver de calibre 32 que estava preso ao cinto. Disparou três tiros à queima-roupa contra o peito de Caneta que deslizou as costas pelo muro, caindo sentado, deixando um rastro vermelho.
O sangue de Naldinho, que contrastou com a pele bronzeada e a camiseta branca, cobriu de vermelho até o par de chinelinhos de dedo e se esvaiu pela calçada, se misturando à água e aos restos de alface, almeirão e couve que escorriam pela sarjeta. Gonçalo gritou por socorro e se aproximou logo que os garotos fugiram. “Ainda vi um fio de vida nos olhos daquele menino quando me aproximei. Cerrava os dentes cheios de sangue e olhava pro céu como se suplicasse pra não morrer. Lutou muito. Só que a ajuda demorou e ele não suportou. O pior é que eu e outras pessoas apenas assistimos ao acontecido, sem fazer nada. Tive vergonha de mim mesmo”, testemunha Geraldino Gonçalo.
O desespero
Quando soube do acontecido, Latinha entrou em desespero e correu até o local do crime, onde mandou todos se afastarem. Em meio aos curiosos, pediu que alguém o ajudasse a colocar Naldinho sobre a carriola abandonada na esquina. Na versão de Latinha, ninguém o ajudou, então tirou a camiseta, forrou o interior do veículo e sozinho deitou o corpo de Caneta, já sem vida. Empurrou o carrinho de mão até em casa, onde colocou Naldinho sobre a cama e passou a noite acordado, escorado sobre a janela, pensando, sem ter a mínima ideia do que fazer.
Antes do amanhecer, vestiu o amigo com a melhor roupa, enrolou o corpo em lençóis brancos e cuidadosamente o deitou em um buraco no quintal, ao lado de uma jabuticabeira, onde Naldinho e Latinha talharam os próprios nomes meses antes do assassinato. Enquanto suas lágrimas embaçavam a visão e umedeciam o solo, Latinha abriu uma caixa de madeira. Do interior, despejou centenas de canetas das mais variadas cores, tipos e tamanhos sobre o corpo do amigo.
O ritual
Eram itens de uma coleção iniciada anos antes. Naldinho as encontrou em buracos, lixões, tampas de galerias, calçadas, ruas, guias ou apenas descartadas por transeuntes nas lixeiras públicas. A preferida de Naldinho era uma caneta tinteiro Parker verde-nassau, de fabricação estadunidense, que já não funcionava mais, tirada da sarjeta em frente a um escritório de contabilidade. “Muitas vezes, antes de dormir, ele pegava essa caneta e ficava deitado de barriga pra cima dizendo que parecia uma joia de tão bonita. Sonhava em um dia conhecer a fábrica da Parker nos Estados Unidos. Toda caneta que encontrava, Naldinho trazia pra casa”, enfatiza Latinha que antes de enterrar o amigo colocou em sua mão a Parker verde-nassau.
A cada pá de terra jogada sobre Naldinho, Latinha se sentia mais distante. Ao redor do amigo, os outros seis menores que viviam na casa se mantiveram cabisbaixos e calados. Não se pronunciaram nem quando Latinha esfregou contra o rosto e o peito uma ponta solta do lençol branco que cobria Naldinho. Antes de fechar o buraco, cavou com a mão um punhado de terra próximo da cabeça do amigo e o jogou contra o próprio corpo. Após o enterro, sem unção ou qualquer tipo de oração, Latinha se ajoelhou, manteve o rosto contra o solo, fez uma promessa e se levantou.
A decisão
Depois de refletir, previu que não tardaria até a Polícia Militar e o Conselho Tutelar aparecerem na residência. Sugeriu que os outros procurassem uma morada provisória. Sozinho, Latinha foi até a casa de um conhecido que vivia no Jardim São Jorge e lhe devia favores. Pegou emprestado um revólver de calibre 380 e outro de calibre 38. Guardou as armas dentro de uma mochila recheada de munição e saiu noite afora, a pé e solitário, guiado pela escuridão que o inebriava a ponto de não sentir as pedras que se fixavam na sola fina de um velho tênis All Star, presente de Naldinho.
Passou três dias sem dormir, como um errante, carregando nas costas o que chamou de senso de justiça. O “saco de chumbo” o impedia de ter sono. Era o peso da consciência por não ter previsto o que aconteceria com Naldinho. Latinha sentia a mochila leve somente quando imaginava a morte de Neemias, Pardal e Bota.
Se preparando para um banho de sangue, passava o dia todo pensando apenas em ver as vidas dos inimigos se esvaindo diante de seus olhos. “Tudo precisava ser feito bem devagar, na mesma intensidade da dor que causaram. Pra mim, não restava mais nada. Eu tinha todo o tempo do mundo pra dar cabo daqueles vermes”, rememora, reproduzindo o sentimento da época.
Os encontros
Quatro dias depois da morte de Naldinho Caneta, Latinha finalmente encontrou Neemias, Pardal e Bota. Os três estavam deitados em volta do tronco de uma mangueira no fundo de uma casa abandonada no Jardim Ipê. O garoto invadiu o local com cautela. Se aproximou um pouco, abriu a mochila, sacou o revólver de calibre 32 que já estava carregado e o engatilhou. “Meu dedo coçava de vontade de atirar. Ao mesmo tempo, eu tremia e meus olhos pareciam em chamas”, admite.
Prestes a dar o primeiro disparo, Latinha conta que em meio ao clima abafado surgiu uma brisa que o fez sentir calafrios por todas as extremidades do corpo. Repentinamente, abaixou a arma e caminhou em direção a Neemias. Nenhum dos três estava acordado e Latinha percebeu que naquele ambiente apenas os poucos movimentos dos galhos e das folhas da mangueira inspiravam vida. Parte do cal virgem fixado ao tronco da árvore se desprendeu e deslizou com sutileza em direção ao chão, onde repousavam os três garotos.
Quando o cal tocou os primeiros fios de cabelo de Neemias, Pardal e Bota, que pareciam alinhados na mesma posição, Latinha os arrastou um a um até a sombra de uma jabuticabeira livre da caiação, onde ramagens de alfazema perfaziam uma pequena trilha. Àquela altura, o cal já tinha coberto os cachimbos de crack improvisados com tubinhos de caneta que adornavam a mangueira. “Tinha uma poça d’água do lado da árvore com as mesmas cores que formam um arco-íris”, sublinha.
Minutos depois, colocou o revólver de volta na mochila e partiu sem acionar o gatilho nenhuma vez. Devolveu a munição e as armas emprestadas e fez o trajeto de volta para casa. No caminho, quando descia pela Rua Antônio Felipe, reconheceu a fisionomia de um idoso que empurrava um carrinho de frutas. Era o avô com quem perdeu contato aos quatro anos. Latinha ficou um pouco receoso, mas arriscou uma aproximação e se apresentou.
De olhos marejados, o idoso soltou o carrinho e, com mãos trêmulas, abraçou o neto, de quem não tinha notícias desde 2001, ano em que o padrasto de Latinha o ameaçou e exigiu que não os procurasse. “Ele usava a mesma boina cinza de quando o tinha visto pela última vez”, acrescenta o garoto que contou ao avô João Bosque da Silva tudo que passou desde o último contato. Naquele dia, unidos pelo acaso ou destino, os dois partiram juntos na alvorada, sob um auspício de esperança.
Curiosidades
O apelido Latinha surgiu por causa da habilidade como coletor de latinhas.
O sonho de Naldinho era um dia tornar-se escritor, o que justificava o seu carinho e esmero por canetas.
Por algum tempo, a casa de Latinha ainda serviu de abrigo para andarilhos e sem-tetos, até que novos conflitos fizeram com que tomassem a decisão de alugar o imóvel.
Latinha, que é apontado como um dos melhores alunos do colégio onde estuda, nunca mais soube da mãe e até hoje mora com o avô, o seu responsável legal.
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