David Arioch – Jornalismo Cultural

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“Aprenda a ficar sozinho. Aprecie a solitude”

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Tarkovsky: “As pessoas que se aborrecem em sua própria companhia parecem estar em perigo, do ponto de vista da autoestima”

O que você gostaria de dizer aos jovens?

Tarkovsky – Eu não sei … Acho que eu gostaria apenas de dizer que eles [os jovens] deveriam aprender a ficar sozinhos e tentar passar o maior tempo possível sozinhos. Acho que uma das falhas dos jovens hoje é que eles tentam se reunir em torno de eventos que são barulhentos, quase agressivos às vezes. Esse desejo de estar junto para não me sentir sozinho é um sintoma infeliz, na minha opinião. Toda pessoa precisa aprender desde a infância como passar tempo consigo mesma. Isso não significa que ela deva ficar [sempre] sozinha, mas que ela não deveria ficar entediada consigo mesma, porque as pessoas que se aborrecem em sua própria companhia parecem estar em perigo, do ponto de vista da autoestima.

Essa reflexão compartilhada em um cenário bucólico e quiçá onírico, assim como é recorrente em seus filmes, talvez seja a mais icônica de Andrei Tarkovsky, que como poucos explorou temas como solitude, solidão, incomunicabilidade – sempre com um singular viés filosófico. Filho de poeta, desenvolveu o lirismo muito cedo.

Tarskovsky foi evidentemente um dos maiores cineastas russos da história, mas ouso dizer que ele foi um dos maiores do mundo. Ingmar Bergman o admirava e o respeitava profundamente. Vindo de Bergman não é difícil entender a dimensão disso, já que ele tinha admiração por poucos cineastas.





Written by David Arioch

July 1st, 2018 at 5:53 pm

O silêncio e a escrita

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Pintura do escritor Evgeny Chirikov feita por Ivan Kulikov

Às vezes, passo horas em um ambiente silencioso, sem qualquer interferência, simplesmente escrevendo. Sem pessoas, sem aparelhos por perto, apenas eu, minha mão e um caderno. Então não sou mais alguém segurando a caneta, mas sim a própria caneta. Sinto os olhos quase colados no papel. Olhos que ninguém mais vê. Em menos de hora, não resta nada, nem mesmo um espaço que me situe. Acabo diluído em mim mesmo e transformo-me no que eu quiser.

Written by David Arioch

September 16th, 2017 at 9:42 pm

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A ansiedade social de Kafka

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Samsa é a gradação surrealista do escritor em estado patológico, como uma figuração quimérica

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1906 – Kafka sofria de ansiedade social (Foto: Reprodução)

O primeiro e mais pungente indício de que o escritor tcheco Franz Kafka sofria de ansiedade social está na sua obra mais famosa – “A Metamorfose”, de 1915. A transformação de Gregor Samsa revela não apenas o medo, aceitação seguida de ostracismo e o rompante de cólera do protagonista diante de um mundo que pouco representa além da compressão da sua própria existência, mas também as inúmeras facetas das afecções e doenças então inominadas que atingiam Kafka.

Samsa é a gradação surrealista do escritor em estado patológico, como a sua própria figuração quimérica e exemplarmente estruturada a partir de seus problemas registrados em cartas e diários. “Sou incapaz de viver com as pessoas, de falar. Vivo imerso em mim. Me sinto apático, sem juízo e com medo. Não tenho nada a dizer a ninguém. Nunca!”, escreveu em uma das cartas enviadas à tradutora tcheca Milena Jesenská, com quem se correspondeu entre os anos de 1920 e 1923, estabelecendo um grande laço de confiança.

Estar sozinho era tão essencial para Kafka que ele via nisso uma genuína forma de poder, algo que dissolvia o seu interior e o preparava para trazer à tona o que ele resguardava de mais profundo em seu âmago. “Quando estou voluntariamente só, há uma ligeira ordenação em meu interior e isso faz com que eu não sinta falta de nada”, declarou.

Introvertido, as interações sociais faziam com que o autor se sentisse drenado. Somente a completa solitude garantia a recuperação de sua energia e serenidade. “Escrevo diferente de como falo e falo diferente de como penso”, revelou. Kafka experimentou beber para lidar com a ansiedade social, um método comum incentivado por seus colegas, mas que não o ajudou em nada. “Não posso usar drogas para enganar a minha solidão, pois ela é tudo que tenho. E quando os efeitos das drogas e do álcool se dissiparem, será tudo que meus colegas terão também”, refletiu.

Ele reconhecia o condão da sua eloquência com a escrita, porém sempre se deparou com uma barreira que o impedia de se expressar da mesma maneira quando conversava com alguém. “Sou muito tímido para dizer o que realmente penso e acabo me sentindo mal por isso”, confidenciou. Franz Kafka lamentava o desconforto por não conseguir se comunicar com outras pessoas da mesma forma que ele fazia com os parentes mais próximos.

“Não fico ansioso com minha irmã mais nova e eu gostaria de ser assim com todos. Destemido e poderoso, é como me sinto quando escrevo. É como se minha ansiedade não existisse. A ideia de alguém ler o que escrevo também nunca me incomodou, a não ser que peçam que eu fale sobre o que escrevi”, registrou em outra carta.

“Sou incapaz de viver com as pessoas, de falar. Vivo completamente imerso em mim"

“Sou incapaz de viver com as pessoas, de falar. Vivo completamente imerso em mim” (Foto: Reprodução)

Em uma de suas queixas, o escritor admitiu que nunca teve um relacionamento sério e que a ideia de ter filhos lhe parecia muito distante. “Quando alguém fala comigo, não consigo evitar de pensar que posso ser atacado, então meu instinto é fugir”, desabafou, lembrando-se de um episódio em que um dia à meia-noite um conhecido se aproximou dele em frente a uma cafeteria quase deserta e o convidou para uma conversa. Assustado, Kafka declinou o pedido e foi embora às pressas.

Outros convites se repetiram e ele sempre suspeitava que se aproximavam dele por piedade. Foram poucas as ocasiões em que o escritor concordou em sentar-se à mesa com pessoas que não faziam parte de sua família. “Tudo que não é literatura me aborrece e eu odeio isso. Me falta toda a aptidão para a vida familiar, exceto, na melhor das hipóteses, como observador. Quando recebemos visitas em casa me vejo prestes a me tornar alvo de algum tipo de malícia”, relatou.

Milena Jesenská: "Ele era tímido, gentil e amável, mas escreveu livros muito dolorosos" (Foto: Reprodução)

Milena Jesenská: “Ele era tímido, gentil e amável, mas escreveu livros muito dolorosos” (Foto: Reprodução)

Kafka se julgava como alguém sem vida social, que passava as noites na pequena varanda de casa, observando o rio. Não se considerava uma boa pessoa. “Eu pouco me preocupo com os outros. Sou uma pessoa ridícula. Se você estiver um pouco apaixonada por mim, só posso crer que seja comiseração. E de minha parte, só posso sentir medo”, segredou em carta à jovem Hedwig W., escrita em Praga em 29 de agosto de 1907. Para ela o escritor produziu o poema “Anos Atrás”.

Também afirmou que sua vida se pautava na permanente tentativa de comunicar o incomunicável, explicar o inexplicável. “Estou sempre escrevendo sobre algo que habita meus ossos e que só pode ser experimentado através deles. Basicamente sinto o medo se espalhando por mim, um temor paralisante de pronunciar uma palavra. E não somente pavor, mas também um anseio por algo maior do que tudo o que representa o medo”, confessou em carta a Milena Jesenská.

Como Milena definiu Franz Kafka

“Ele era tímido, gentil e amável, mas escreveu livros muito dolorosos. Viu um mundo cheio de demônios invisíveis que rasgam e destroem pessoas indefesas. Ele era lúcido e sábio demais para a vida. Chegou a um ponto que dominado pela fraqueza não conseguiu mais lutar. Era uma fraqueza dos nobres, de quem teme o mal entendido, a indelicadeza e as mentiras intelectuais. Era de uma casta de pessoas com sensibilidade que poucos são capazes de entender. Um solitário com um olhar profético que através de uma olhadela é capaz de perceber coisas que outros jamais notariam. Ele próprio representava um mundo profundo e extraordinário.”

Nascida em 10 de agosto de 1896, em Praga, então território do Império Austro-Húngaro, Milena foi a principal tradutora de Kafka – da língua alemã para a tcheca.

Saiba Mais

Nascido em Praga em 3 de julho de 1883, Franz Kafka faleceu aos 40 anos em decorrência de uma tuberculose laríngea que o impedia de se alimentar. Curiosamente, quando faleceu, Gregor Samsa, seu personagem mais famoso, estava bem magro porque há muito tempo não se alimentava. O escritor que pouco se importava com a fama só ficou conhecido após sua morte.

Referências

Kafka, Franz. Letters to Milena, Schocken Books, 1952.

Kafka, Franz. Letters to Family, Friends and Editors, Schocken Books, 1959.

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O amor de Zoltán

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Preferia cultivar um amor platônico, talvez às avessas na sua peculiaridade heteróclita

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Naquele dia, saí de casa e ouvi através do som ruidoso e sorumbático dos trovões a voz de Zoltán (Arte: Imagine B3liebers)

Foi num dia das mães que perdi o meu melhor amigo, Zoltán, um poeta vegetariano que nunca se considerou poeta. Embora morássemos na mesma cidade, o conheci por meio da internet em 1999. Tínhamos a mesma idade e inúmeras afinidades. Era um jovem de aspecto tranquilo, mas existencialmente buliçoso. Vivia mais dentro da própria mente do que fora dela. Amava as pessoas, só não fazia muita questão de se aproximar delas. Preferia cultivar um amor platônico, talvez às avessas na sua peculiaridade heteróclita. Começou a escrever sobre os animais e os seres humanos na adolescência, e mesmo com o passar dos anos e centenas de obras arquivadas nunca considerou nada do que produziu como “bom o bastante”. Na realidade, não se via como escritor, mesmo escrevendo melhor do que muitos autores profissionais. Apesar da minha insistência, Zoltán nunca quis participar de concursos, festivais ou procurar editoras que pudessem se interessar pelo seu trabalho. Nutria justa mágoa pelo mercado editorial.

“Eles sempre vão privilegiar os escritores das metrópoles, sujeitos que possam trazer-lhes benefícios em curto prazo. Eles defendem que lá é o berço da universalização. Se debruçam sobre o próprio reflexo, ignorando tudo que é produzido fora dos grandes centros, independente de qualidade. E esse tipo de pensamento é partilhado por muitos escritores, logrados pelo próprio pedantismo. Eu particularmente pouco consigo distinguir entre os chamados grandes autores da atualidade. O que vejo com frequência é o enfadonho excesso de academicismo ou escritores que saíram das ‘páginas literárias’ dos grandes veículos de comunicação. Ou seja, gente do meio que nenhuma dificuldade teve em incluir-se mais ainda nele. E muitas vezes soam elitistas e distantes da população em geral com seu hiperbólico requinte. Não é de se admirar que os brasileiros leiam pouco, se quem produz literatura já cria esse distanciamento. Também temos aqueles que se colocam como baluartes da contracultura e publicam tudo que escrevem, sem o menor critério – coisas que não somos capazes de avaliar porque basicamente não possuem estrutura definida. Há quem qualifique isso como arte revolucionária. A história se repete à exaustão. Não existe espaço para quem segue na contramão disso, então não vejo motivo para que eu me meta em algo assim”, desabafou em uma conversa que tivemos em 2003 em uma rede de Internet Relay Chat (IRC).

Nas poucas vezes que saímos juntos pelas ruas de Paranavaí, alguns conhecidos perguntavam se éramos irmãos, tão insólita era a semelhança, já que além dos traços mediterrâneos e da mesma estatura, tínhamos também postura e comportamento bem parecidos. O cenho sisudo, o olhar insondável, entranhado, e um andar lesto e hermético, de quem percorre mais o próprio interior do que o mundo. Zoltán era tão ponderado que até seu sorriso era versado. Nada nele era exagerado, a não ser o amor que descobriu pela primeira vez em 2007 quando conheceu uma moça de São Paulo da mesma idade. Seu nome era Linda e ela se aproximou dele porque gostou de uma prosa poética que ele publicou em seu blog. No texto, Zoltán abordou o amor genuíno como uma livre forma de existir, isenta de posses, e a partir daí desenvolveu uma parábola sobre um peixe que vivia em um aquário e num dia de enchente saltou da janela, partindo com a correnteza.

“O amor para ser verdadeiro não pode ser afugentado. Ele tem vida própria e está acima dos nossos anseios, da nossa existência. Quer maior prova do que a sobrevivência do amor de um Montecchio e um Capuleto após centenas de anos? O amor é uma das poucas coisas da nossa natureza que resiste à morte porque ele não é palpável, é intangível, pode ser imortal, ao contrário de nós. O ódio nunca vai superar o amor porque ele não frutifica na mesma proporção. Além disso, o que o amor enaltece a cólera corrói; e tudo que é deletério mortifica o homem em vida enquanto o amor na sua pureza o sublima”, dizia meu amigo no paradoxal arrebatamento da serenidade.

Zoltán e Linda conversavam todos os dias pela internet e pelo telefone celular. Sua confiança em mim era tão grande que fazia questão de me relatar em detalhes o que sentia por aquela jovem que despertou nele sentimento inédito. Conforme eu o ouvia, seus olhos rutilavam como bolinhas de serendibite. Ele sorria e ruborizava como um bebê reconhecendo o poder da vida nos olhos da mãe. Em todos os sentidos, Linda fazia jus ao nome, e o que mais extasiava Zoltán era o fato de ter encontrado uma moça que mergulhava em sua essência como ninguém. Sobre ela, começou a escrever todos os dias. Criou obras dos mais diferentes formatos e gêneros. Mas nem tudo ele mostrava ou publicava. “Só envio à Linda o que me afaga o coração”, justificou um dia. A conexão entre os dois era tão profunda que um dia estávamos na rua e Zoltán teve um mau pressentimento, uma sensação ruim que o fez transpirar subitamente numa manhã fria.

Quando ligou para Linda, ele soube que ela estava internada em um hospital por causa de um problema gástrico. Algumas semanas depois, Linda sentiu um mal-estar na casa da tia e teve de se deitar. Mais tarde, ela soube que naquele horário Zoltán se envolveu em um acidente perto do Porto São José, quando seu carro quase foi engolido por uma cratera velada por um amontoado de terra. Apesar da distância, se respeitavam e se amavam, entregues a um relacionamento sem contato físico, alimentado por palavras rapidamente transformadas em emoções, sentimentos e sensações.

Eles faziam planos, mas temiam o que poderia acontecer. Talvez a iminente felicidade os amedrontasse. Linda trazia no coração cicatrizes de um velho relacionamento em que flagrou o ex-namorado a traindo com a melhor amiga. Zoltán, que nunca se interessava por ninguém, tinha uma trajetória de vida em que sempre se viu como o lobo da estepe. Com o passar dos anos, e sem jamais terem se encontrado, continuavam se resguardando. Em 2012, Linda adoeceu e nenhum médico descobriu qual era o seu problema de saúde. Temendo ser um fardo para Zoltán, ela o evitava, chegando a passar meses sem usar o celular. Preocupado, ele enviava mensagens e e-mails demonstrando interesse no bem-estar dela.

Continuou escrevendo sobre Linda, não com a mesma intensidade, porém o suficiente para provar que seu sentimento perseverava imaculado. Um dia testemunhei Zoltán com o rosto umedecido quando Linda publicou um novo comentário em seu blog. Alanceados e sensíveis demais, os dois se completavam como ouro e platina no subsolo dos Montes Urais. “Mesmo com as incertezas do futuro, prefiro ter no coração a plenitude de um sentimento lídimo, que faz de mim um ser humano melhor do que um oco pertinaz motivado a buscar nas noites sinuosas o prazer efêmero que nada toca além da carne”, escreveu.

Zoltán era um Werther maduro, com motivações muito mais genuínas do que o protagonista de Goethe, vencido por uma disforme e equivocada concepção do amor. A maior prova disso foi o que aconteceu no dia das mães de 2014. Vivendo em Curitiba, Zoltán foi encontrado morto em seu apartamento, vitimado por um ataque cardíaco. Só consegui localizar Linda um mês depois e entreguei a ela um e-mail que ele me enviou duas semanas antes de sua morte.

Zoltán tinha um problema cardíaco congênito. E ele sabia que não viveria muito. Porém, optou por não dizer nada a ninguém. Passou seus últimos dias de vida fazendo o que mais gostava – escrevendo. Linda caiu em prantos quando soube da tragédia. Sem saber o que dizer, contei a ela que o céu também desabou quando ele morreu. Naquele dia, saí de casa e ouvi através do som ruidoso e sorumbático dos trovões a voz de Zoltán. A chuva parecia especialmente salgada, como lágrima concentrada. “Meu melhor amigo, como protagonista de uma epopeia, não teve a chance de formar sua própria alcateia. Ainda assim, amando morreu como um tipo superior de Romeu”, concluí.

Hoje me surpreendi com o dia das mães porque com muita chuva e uma sequência de trovões não deixei de ver no céu o rosto de Zoltán carinhosamente descortinado por um véu. “O amor de verdade é uma concessão, sobrevive sem vida e até fora do coração. Ele é nosso enquanto vivemos e torna-se imortal quando morremos. Amar você foi o meu maior presente porque através dele mergulhei no mais sublime sonho fremente”, registrou em um pequeno trecho de um e-mail enviado à Linda.

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