David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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Tive um sonho na noite passada

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Triste realidade da exploração animal (Arte: Reprodução)

Tive um sonho na noite passada.

Um boi falou que não é pra eu desejar sua carne senão ele vai ter que morrer. E ele quer viver.

Uma vaca disse pra eu parar de tomar seu leite senão ela nunca mais vai ver o seu bezerro.

O bezerro se queixou que é cedo demais para morrer, porque nem o sol teve tempo de ver.

A galinha poedeira revelou que não quer passar os seus últimos dias em uma granja, onde seu destino final é ser sacrificada após a queda na produção de ovos.

O frango reclamou que se como sua carne sou culpado por ele ter de viajar entre grades de plástico, agonizando entre seus semelhantes.

O porco berrou que se bacon fosse vida ele sairia andando depois de fatiado.

O peixe gritou que se fosse pra ele servir de alimento para as pessoas, ele deixaria a água e deitaria sobre pratos.

A abelha me mandou ficar longe de seu mel, porque ela não trabalha o dia todo para sustentar seres humanos.

 





Written by David Arioch

July 7th, 2017 at 2:08 pm

Você se lembra de mim?

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There Is Always Hope, Banksy

Perto do Banco do Brasil, um rapaz se aproximou de mim sorrindo e perguntou se eu me recordava dele.

— Lembro sim. Você ficou um tempo na rua, não?
— Sim. Então, parei com o crack, mano. Na verdade, parei com tudo.
— Que bom, cara. Muito bom mesmo saber disso.
— É…agora estou bem mesmo. Estou limpo desde o final do ano passado. Não tive nenhuma recaída e estou trabalhando também.
— Você é um exemplo. Pode ter certeza. Isso é uma grande notícia.
— Você acha que estou bonito?
— Está sim. Nem parece o mesmo cara.
— Recuperei todo o peso que perdi enquanto fumava pedra. Olha minha roupa limpinha e nova.
— Ficou muito bem em você.
— Comprei sexta quando recebi o pagamento.
— Que beleza.
— Fiquei mais de ano vagando pela rua, noiado mesmo. Você lembra que eu andava pedindo dinheiro, né?
— Lembro, claro que lembro.
— Isso já passou. Voltei a trabalhar como ajudante de marceneiro também. Tô feliz, cara, de verdade.
— Me desculpe se estou incomodando, falando demais.
— Que isso. Claro que não. É sempre bom receber uma notícia assim. Anima qualquer um com um pouquinho de sensibilidade.
— Valeu mesmo! Vou indo porque amanhã tenho que acordar bem cedo pra trabalhar.
— De nada, cara. Fique bem. Bom trabalho e siga o seu caminho.

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Written by David Arioch

June 19th, 2017 at 12:17 am

As exigências da formiga-faraó

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“Você é lerdo e cabuloso, hein? A gente quer açúcar cristal, cara!”

Ela gesticulava e falava comigo enquanto movia suas antenas

Acordei antes das seis horas ouvindo um som estranho no quarto. Como eu estava muito sonolento, não consegui identificar a origem. Eu só queria dormir mais um pouco. Mas o som persistiu, até que reconheci uma voz ecoando. Abri os olhos e não entendi de onde vinha aquela algazarra. Parecia tão próxima e ao mesmo tempo tão distante de mim. Pensei que estivesse imaginando coisa, até que alguém berrou:

— Acorda, lazarento! Acorda! Vamos! Acorde!

Virei o rosto para o outro lado e não vi nada.

— Aqui, trouxa! Pra onde você está olhando? Você é cego, otário?

Então vi uma formiga-faraó em cima da cômoda. Ela gesticulava e falava comigo enquanto movia suas antenas.

— Que isso? Que loucura! — falei esfregando as mãos contra os olhos e dando tapinhas na minha própria testa.

— Estou aqui sim, mané! Não adianta esfregar a mão na cara. Não vou desaparecer enquanto não conseguir o que quero, certo?

— Como assim? Você quer o quê? E como você está falando? Como isso é possível?

— Olhe, cara! Vamos parar com essa lorota porque não tenho tempo a perder. Como falo ou deixo de falar não interessa. A real é que você tem sido um desgraçado, cara. E isso não pode continuar assim.

— Desgraçado? Eu? Como? Nunca fiz nada contra formigas.

— Eu sei, cara! Você é vegano e todo aquele blá blá blá. Mas o negócio é o seguinte: Sei que você não come açúcar, mas e nós, seu egoísta? Você pensou na gente quando parou de comprar açúcar? Outra coisa, você acha que a gente gosta de açúcar de coco, açúcar demerara… Mano, a gente gosta de açúcar cristal. O mascavo ainda vai, mas não venha mais com esse açúcar de coco, cara. A gente gosta do branco reluzente.

— E onde eu entro nessa história?

— Você é lerdo e cabuloso, hein? A gente quer açúcar cristal, cara! Você vai ter que comprar, e se não atender nosso pedido, pode se preparar. Estamos espalhadas por todos os cômodos da sua casa. Você não tem noção, mano, do estrago que a gente consegue fazer em um dia. Estamos atrás dos rodapés, no forro, em todas as frestas da casa, nos armários, nas dobras das roupas. Não tem pra onde fugir.

— Mas por que tanta maldade?

— Maldade? Tem maldade nenhuma, irmão. É a lei da sobrevivência.

— Entendi. Vou dar um jeito nisso. Mas posso saber de onde vocês vieram?

— Viemos daqui, cara! Meus ancestrais já moravam aqui antes de você e dos seus.

— É? Sério?

— Não! Mentira! Claro que sim.

— Hum…Por que esse mau humor?

— Por causa da abstinência. Tem nada doce por aqui e a gente precisa de açúcar, cara. Já viu alguém feliz com fome? Você fica feliz com fome?

— Não…

— Então, pergunta respondida!

— Posso fazer outra pergunta?

— Caramba, mano! Mais uma? Tá! Manda lá!

— Por que chamam vocês de formiga-faraó?

— Ah! É isso? Beleza!

A formiga saltou em cima da cama, escalou o meu braço, subiu em meu ombro esquerdo e me observou por um instante.

— Louco demais! Essa barba dá um ninho da hora! A gente pode morar aí?

— Claro que não!

— Por que não, cara? Um ajuda o outro. A gente até estica ela pra você, dá mais volume; e ainda come as sobras de comida e alinha seu bigode. Fora que com a nossa presença ela ganha um tom de luzes do tipo caramelo.

— Sai fora!

— Beleza! Mas a permuta é boa e o azar é seu. Perdeu a chance de veganizar umas formigas.

— Me diga por que realmente chamam vocês de formiga-faraó.

— Ah! De novo isso? Ok!

— Meus ancestrais diziam que um dia um grande faraó decidiu banir as formigas do Egito. Ele começou proibindo a fabricação de açúcar e a importação de açúcar da Índia por um longo período. Uma de nós apareceu pra ele, assim como estou fazendo agora, e tentou dialogar. Ele não aceitou o acordo. Então elas comeram o faraó.

— Nossa! Sério isso?

— Sim…talvez…Claro que não, né?

Com a visão ligeiramente turva, cocei os olhos mais uma vez. Quando olhei para o meu ombro, a formiga tinha desaparecido. Minutos depois, meu celular tocou.

— Você estava dormindo? Estou te ligando há mais de dez minutos e você não atende — reclamou meu irmão.

— É…acho que sim.

Por via das dúvidas, esperei o mercado abrir, comprei cinco quilos de açúcar cristal e guardei no armário.

 

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Written by David Arioch

May 20th, 2017 at 9:44 pm

O garotinho que acreditava que sua casa era uma cidade

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Brincando entre um cômodo e outro, ele simulava que tinha percorrido quilômetros

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Seus pais se fantasiavam à noite e o levavam para percorrer a Rua John Kennedy (Foto: David Arioch)

Conheci um garotinho na minha adolescência que acreditava que sua casa era uma cidade, sua rua um estado e Paranavaí um país. Seu nome era Natanael e ele era tão criativo que nominou os cômodos de sua casa como se fossem ruas. Um dia sentou no chão, fez plaquinhas a partir de caixas de papelão e as fixou nas paredes.

Havia a Rua Leão Mágico, Rua Peter Pan, Rua Pequeno Polegar, Rua Pinóquio, Rua do Gato e do Rato e Rua Três Porquinhos. E todas as plaquinhas que cintilavam no escuro por causa da tinta fosforescente traziam uma ilustração. Natanael achava importante mostrar quem eram os homenageados. E se alguém o perguntasse o porquê, ele justificava com grande facilidade.

“Por que você colocou o nome de Leão Mágico neste corredor aqui entre a sala e o seu quarto?”, questionei um dia. Então respondeu que o leão era o maior e mais forte guardião da casa e, como ele tinha o poder de desaparecer e reaparecer onde quisesse, Natanael sempre estaria seguro, assim como seus pais.

Brincando entre um cômodo e outro, ele simulava que tinha percorrido quilômetros, atravessado bairros, estradas rurais e colhido frutas no campo enquanto um ventinho fresco acariciava seu rosto. As fantasias de Natanael eram incentivadas pelos familiares.

Depois de estudar física e eletromecânica, o pai construiu um ventilador especial que simulava o som e a intensidade natural do vento. Já a mãe criou algumas pequenas árvores artificiais e aromatizadas em uma velha despensa e, sobre os galhos que balouçavam como se fossem reais, todos os dias pela manhã ela prendia frutas como maçãs, peras, laranjas e mangas, as preferidas do filho.

As paredes foram pintadas por um tio artista que morava no Rio Grande do Sul e veio a Paranavaí para criar um cenário inspirado na obra Campos de Papoula, do impressionista Claude Monet. Natanael sorria tanto no meio daquele cenário pastoril que sentia até as beiradinhas da boca formigando.

Ele girava em torno das pequenas árvores, se acocorava em um canto, sobre um piso coberto por uma camada grossa de terra que garantia mais realismo ao ambiente, e comia um pedaço de fruta com tanto anelo e satisfação que parecia carregar o que existe de melhor no mundo dentro de si mesmo. Era apenas uma criança, mas dotada de um tipo de sensibilidade encontrada em uma pessoa entre milhões.

Natanael tinha cabelos escuros e lisos, uma pele jamais tocada pelo sol e os olhos grandes, redondos e escuros como jabuticabas gigantes. Vez ou outra, o próprio riso o levava às gargalhadas e quando ele exibia os dentes o ambiente ficava mais iluminado. Sempre descalço, mostrava com orgulho as solas avermelhadas e encardidas dos pés.

Para criar novos cômodos na casa, os pais reduziram o próprio quarto a 1/3 do tamanho original. Também diminuíram a sala e a cozinha. Tudo era feito com a intenção de expandir o mundinho de Natanael que chegava a passar meses dentro de casa. “Hoje vou te levar até a Praça dos Pioneiros pra você brincar no parque. Que tal?”, revelou o pai numa surpresa matutina de sábado.

O homem arqueou os braços formando uma cadeirinha e pediu que Natanael subisse a bordo, escorando as costas em seu peito. A mãe entregou a ele um volante do tamanho de um pires e o pai simulou com a boca o som do ronco de um motor. Reproduziram até os solavancos das lombadas, fazendo o garotinho rir e agarrar o braço do pai como um animalzinho protegido pelo tronco de uma sequoia.

A Praça dos Pioneiros de Natanael era um quarto com escorregador, gangorra, balanço e gira-gira. Todos os brinquedos, tornados os mais belos em seu ideário meninil, foram feitos com peças baratas compradas em um ferro-velho. E sobre sua cabeça, o que mais o emocionava e impressionava, entre tudo que possuía, não era nenhum brinquedo, e sim um sol giratório feito de papelão que ficava suspenso no ponto mais alto da área interna da casa.

Conforme o pai ou a mãe puxava uma cordinha, a lírica réplica sorria e piscava para Natanael que se sentia “quentinho” diante dele apesar da ausência de luz solar. “Por que o sol não queima o teto, mamãe? E por que ele nunca se põe? Será que não sente falta da casa dele?”, inquiriu. A mãe respondeu que aquele era o Solzinho, filho do Sol, e se mudou para a Terra para crescer junto com ele. “Quando o Solzinho for grande, ele também vai ter que partir. Enquanto isso vocês podem ser grandes amigos”, comentou. Natanael ficou em silêncio.

Ele amava tanto o sol que muitas das suas roupas traziam desenhos com as mais diferentes representações da estrela. Até mesmo o teto do seu quarto tinha um sol próprio que resplandecia na escuridão noturna como uma paródia prodigiosa da lua de de Le Voyage dans la Lune, de Georges Méliès.

Com o pôr do sol, Natanael saía de casa para brincar no quintal. À noite, depois de muito tempo, uma vez o encontrei chorando debaixo do pé de manga, reclamando que não entendia porque o “Sol Maior”, aquele que traz a alegria do dia, não gostava dele. “O ‘Sol Maior’ deixa tudo brilhando. Ilumina tanta coisa, menos a minha vida”, reclamou. Apesar da casual melancolia, sempre melhorava com o despertar do dia.

Quando Natanael ficava muito triste, seus pais se fantasiavam à noite e o levavam para percorrer a Rua John Kennedy. Criavam histórias quiméricas sobre seres fantásticos que surgiam com o poente, protegendo pessoas e animais. Para cada quadra, o garotinho dava o nome de uma cidade. “Alto Paraná, Nova Esperança, Presidente Castelo Branco, Mandaguaçu, Maringá, Sarandi…”, dizia, usando como referência um mapa do Paraná que guardava embaixo da cama.

Às vezes, ia além, atravessando o centro e dezenas de bairros, despertando em seu mundo diminuto a sensação de um desbravador atravessando países e continentes. Numa manhã fria e escura de inverno o levaram para conhecer o Bosque Municipal. Natanael ficou chateado porque os animais não apareceram.

Sem saber o que fazer, seus pais o chamaram para ir embora, preocupados com a previsão de que o sol logo despontaria. De repente um macaquinho-prego se aproximou, deu cinco piruetas e guinchou. Lágrimas escorreram pelas maçãs de Natanael que deu ao lugar o apelido de Amazoninha.

Após o aniversário de nove anos, o garotinho teve a oportunidade de ver o sol a céu aberto pela primeira vez. Seus pais conseguiram economizar dinheiro o suficiente para comprar uma roupa especial que o cobriu dos pés à cabeça, evitando as severas agressões do sol.

Hirto, Natanael assistiu extasiado a luz natural que o rodeava. Ajoelhou no quintal de casa por alguns minutos, se levantou e correu em torno das mangueiras e da jabuticabeira. Empolgado, encostou as mãos protegidas por luvas em todos os pontos onde a incidência da luz solar era maior. “Acho que o sol tá começando a gostar de mim. Hoje é o melhor dia da minha vida!”, gritou, acompanhado por Dino, um cãozinho mestiço e serelepe.

Menos de um mês depois, Natanael foi diagnosticado com melanoma metastático, um câncer de pele associado à xerodermia pigmentosa, doença que o acompanhou desde o nascimento e o impedia de se expor ao sol. O garotinho recluso faleceu em casa antes de completar dez anos. “Será que o leão mágico não vem hoje?”, brincou, exprimindo um sorriso fragilizado.

Quando a morte se aproximou como um sono sempiterno, o sol reluziu na janela. Seus pais abriram a cortina e ele sentiu o “quentinho” que pousou sobre a ponta do dedinho. “É talvez o último dia da minha vida. Saudei o Sol, levantando a mão direita, mas não o saudei, dizendo-lhe adeus, fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada”, escreveu Alberto Caeiro (Fernando Pessoa) em Poemas Inconjuntos.

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As transformações da Vila Alta

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Era um abandono total e você pode não concordar, mas acredito que o nosso trabalho tem parte nisso

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Tio Lú: “Com a sua ajuda, quero continuar sonhando mais pelos outros do que por mim” (Foto: David Arioch)

Fiquei feliz e emocionado hoje quando visitei o artista plástico Luiz Carlos Prates de Lima, o Tio Lú, idealizador da Oficina do Tio Lú, na periferia de Paranavaí. Durante um tranquilo bate-papo, ele me relatou que a Vila Alta não é mais o mesmo bairro de três anos atrás.

“Aqui antigamente você via briga direto nas ruas, nem que fosse bate-boca e confusão por bobagem. Assassinatos ou outros tipos graves de crimes não acontecem no bairro tem muito tempo. São raros. Nem sei te dizer quando foi a última vez. E notei que até moradores agressivos estão mais tranquilos, mais civilizados, mais tolerantes. Sempre fico sabendo de novos casos de criminosos que abandonaram a vida errada. Até as crianças estão mais conscientes de certo e errado, de suas obrigações. Parece que muita gente do bairro hoje se sente mais humana, menos insignificante. É como um renascimento. Aqui era um abandono total e você pode não concordar, mas acredito que o nosso trabalho tem parte nisso. Foi só depois que você começou a frequentar o bairro, ajudando, dedicando tempo, fazendo documentários e reportagens sobre a oficina e a vida dos moradores da Vila Alta, que surgiram melhorias, que a atenção se voltou um pouco para este lugar, melhorando até a autoestima da população. Você fez a Vila Alta existir para quem nem sabia que existia periferia em Paranavaí. Claro, não somos perfeitos, a oficina tem suas falhas, mas acredito que ela também tem feito a diferença no bairro, principalmente na vida dos mais jovens. E vejo os pais e avós também reconhecendo isso, o que é muito importante. Estou perto de completar 86 anos e às vezes tenho a impressão de que estou chegando no fim da linha, mas quero persistir e ver novas mudanças. Com a sua ajuda, quero continuar sonhando mais pelos outros do que por mim. Não tenho mais ambições pessoais na vida, a não ser ajudar essa molecada.”

A Oficina do Tio Lú é um dos trabalhos mais belos que conheci e tive o privilégio de acompanhar de perto. Durante a conversa, não pude deixar de dizer como é admirável ver alguém se doar tanto aos 85 anos, ainda mais levando em conta que nessa etapa da vida o ser humano tem grande facilidade em sofrer com crises existenciais. Também acho justo dizer que não consigo enxergar meu trabalho como tão importante, mas é muito gratificante ouvir algo assim do Tio Lú, de quem me tornei amigo no início de 2009.

A chuva cativa sobre a colina

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Irritado, desci a colina gelado, numa torrente que se alongava e se dispersava por todo lado

Me vi em um final de tarde em um casarão de madeira no alto de uma colina (Arte: Gino Masini)

Me vi em um final de tarde em um casarão no alto de uma colina (Arte: Gino Masini)

Desde criança, tenho sonhos incomuns, abstratos e talvez absurdos para quem gosta de defini-los como sinais, revelações ou tormentos. Na noite passada, por exemplo, assim que dormi me vi em um final de tarde em um casarão de madeira no alto de uma colina. Perto de mim, uma bruma morna envolvia crianças e animais que celebravam o Dia de Cosme e Damião em um vilarejo livre de adultos.

Empolgadas, elas gritavam e corriam por todos os lados numa balbúrdia incessante que vinha de um ponto mais baixo, onde a grama tornada seca tinha aspecto embusteiro de palha dourada – e se movia como pés e mãos de espantalhos disformes que gargalhavam sem boca sob as formas do sopro do vento.

Praticamente imóvel, eu observava a movimentação em meio a uma miríade de ventarolas de papel que balouçavam presas às cordinhas de varal. As dezenas de crianças sorriam e giravam em grandes círculos. O ato era simulado por cães e gatos enquanto balas, pirulitos e outros tipos de doces caíam do céu como chuva paulatina. Os picolés derretiam antes de tocarem a grama, se desfazendo como suco embrulhado. Pincelavam os corpos e as cabeças dos pequenos que tentavam em vão agarrar os palitos nus. Era como creolina em roupa. Grudava, se fixava, temendo o próprio fim.

Eu não interagia. Continuava no mesmo lugar, na minha inércia, observando tudo, sóbrio, mas alheio à consciência do tempo e da minha própria condição existencial. Eu era como um nada que antes fluía inidentificável. Na realidade, eu era a chuva que presa e reduzida a um compartimento do telhado acabou privada de tocar o chão, substituída por uma infinidade de doces.

Era injusto comigo que nasci para sentir a terra, umedecê-la e vivificá-la. Ela sempre corava em minha presença. Amolecia, me abraçava e me deixava penetrar em suas entranhas, onde eu poderia desaparecer ou me enredar pelo lençol freático, correndo junto de águas caudalosas. Uma aventura em tanto! Ela me aquecia e eu a esfriava, e aquilo fazia de nossa relação a mais poética das simbioses.

Deixei de ser onipresente naquele Dia de Cosme e Damião, não sei se por unção ou punição a pagão. E isso também pouco importava para quem numa condição limitada somente ansiava, titubeava diante da torrente cálida do sol que o mundo das crianças inebriava. Havia aroma dulcificado por todos os lados, anestesiando até meus sentidos inominados.

De repente, um silêncio solene se instaurou. Todos se calaram para ouvir o som da terra que se intensificou. “O que será que vem agora?”, refleti em confinamento. Depois vi doces brotando do chão. Alguns eram expelidos enquanto outros se descolavam de galhos minúsculos e retraídos sobre caules diminutos.

A cena que se repetiu muitas vezes em vários pontos do vilarejo deixou as crianças ensandecidas. Corriam tresloucadas, atropelando as esculturas de Cosme e Damião que ficavam pelo caminho. Já não representavam a elas mais do que obstáculos. Enquanto digladiavam pelos doces, saltando e golpeando, arrancando com violência as plantinhas que se encolhiam e tremiam curvadas sobre o solo, os cacos de gesso dos irmãos gêmeos voavam pelo chão, formando um caminho encascalhado de profanação.

As brincadeiras findaram, e como selvagens as crianças no chão se debruçaram. Comiam, comiam e comiam sem pestanejar, até que passando mal começaram a soluçar. Mesmo os mais escanifrados ganharam barrigas esféricas como enormes balões. Não conseguiam caminhar, e rolavam e choravam sobre a terra cada vez mais calcinada que o dorso queimava. Alguns resistiam e tentavam correr sobre as pontas dos pés nus, sem direção ou propósito – fuga pela fuga ou échapper par la fuite, como dizem os franceses.

Infindáveis, doces continuavam brotando do chão. Logo centenas de abelhas se aproximaram para polinizar as pequenas plantas que cresciam vertiginosamente. O calor seguiu aumentando. Em estado líquido, eu nada sentia. As crianças sedentas, vencidas pela hiperglicemia, berravam e praguejavam porque não havia água em nenhum lugar de fácil acesso. Encolerizadas com a gritaria, as abelhas abandonaram a polinização para perseguir e atacar os pequenos.

Uma garotinha cercada pelo enxame ficou dourada como a grama queimada, parando de correr e até de se mover. Estática, não tinha ferida, mas parecia sem vida, e seus olhos lembravam bolinhas recheadas de mel que traziam na íris o talhe de um anel. Ouvi alguém batendo na porta do casarão que me abrigava, enquanto o chão, rendido pela mais severa estiagem, rachava.

“Por favor, deixa a gente entrar! Por favor!”, gritavam dezenas de crianças em uníssono. Sem mãos e pernas, o que eu poderia fazer? Não havia ninguém além de mim no casarão. Uma a uma, elas caíram no chão, vitimadas por calor, sede e torpor. Resfolegavam com dificuldade, até que consumido por agitação sobrenatural tentei me desprender da calha entupida. Não consegui e chorei, multiplicando minhas águas e arrastando comigo tudo que me segurava.

Irritado, desci a colina gelado, numa torrente que se alongava e se dispersava por todo lado. Assim que me lancei sobre as crianças, lavando o corpo e a face, elas despertaram e se levantaram. Observaram o céu desanuviado e reconheceram que o mormaço tinha se dissipado. Abriram a boca e beberam a água límpida e fresca que caía em forma de chuva comunesca. Sim, as abelhas também sumiram, e com elas o chão eivado e os doces. O que restava era a vida que resistia consorte e gentia.

O chamado dos animais

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Se transformaram em uma porquinha eufórica que grunhia e girava em torno do próprio rabo

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Era um porquinho landrace que percorria meu rosto com a língua (Arte: Cari Humphry)

Ainda tenho fresca na minha memória a lembrança da última vez em que comi carne. Me ofereceram um lanche, o que eu passava até meses sem comer, e aceitei. Afinal, era uma sexta-feira à noite. “Tudo bem, é só hoje”, pensei. Mordi sem pressa e sem o prazer de outrora o alimento que trazia uma variedade de carnes – filé de frango, hambúrguer e pedacinhos de bacon. Era enorme e mal cabia nas minhas mãos, embora elas não sejam pequenas.

Depois de comer, observei o papel branco que envolvia o lanche. O enrolei e o joguei na lixeira. Há muito tempo me acostumei a não comer demais porque não vejo sentido em ir além das minhas necessidades. Sentado, perdi o interesse em continuar lendo um livro que até então invadia meus pensamentos e divagações. Me senti inchado, não pela quantidade de alimento que ingeri, mas por algum motivador que acredito ser biologicamente inexplicável. De súbito, minha boca ficou azeda como se tivesse recebido uma dose de fel. Fui até o meu quarto, me olhei no espelho e não me reconheci. Meus olhos estavam translúcidos e dentro deles vi algo se movendo repentinamente, como que motivado por um descomedido desconforto.

Levei as mãos ao meu abdômen e notei que minha barriga chapada tinha se tornado irreconhecível, disforme e malemolente. Involuntariamente, se distendia numa ocultação criteriosa. Era incompreensível porque não comi tanto. Quando voltei a atenção ao meu rosto no espelho, havia alguns riscos carminados nas escleróticas. Fechei os olhos por um momento e quando os abri tinham se desvanecido. O mesmo aconteceu com as marcas que surgiram na minha barriga, lembrando toques de uma pata. “Que coisa mais estranha! O que está acontecendo comigo?”, me questionei assustado.

Desliguei o computador, apaguei a luz e deitei na cama. Eu estava cansado e o sono prosseguia distante do meu desejo. Fiquei observando o teto e notei que ele se movia aos poucos. Não poderia ser tontura porque minha noção espacial persistia precisa. Ao meu lado, eu enxergava tudo com exímia clareza. Assim que o teto se abriu, como se fosse deslocado de lugar, sem causar qualquer tipo de barulho, desordem ou sujeira, a chuva fresca se lançou diligente sobre mim. Me movimentei sobre a cama com a ligeireza de quem está sofrendo de espasmo hípnico. Em pé e hipnotizado pelo céu enluarado que iluminava meu quarto com uma luz cerúlea, continuei calado, inerte.

A beleza da madrugada outonal que ofertava um aroma variegado de folhas e flores foi ofuscada pelo miasma trazido por uma vaquinha voadora com focinho de porco e pés de galinha. Apesar de tudo, era um animal lindo na sua singularidade desarmônica. Me recordei das pinturas de Corine Perier e Chris Buzelli. A diferença era que elas não tinham cheiro de morte. Quando a vaquinha pousou ao meu lado, a pestilência se intensificou. “Nem bebo! Que bizarrice é essa? Será que estou pirando?”, refleti. Ela ficou me observando sem emitir som. Seus olhos se agigantavam e em seguida diminuíam. Parecia um coração pulsando. E o fedor só aumentando. De repente, deu um mugido misturado com cacarejo e grunhido. Então se inclinou para que eu massageasse sua cabeça.

Um deles pulou no meu travesseiro e começou a piar, como se quisesse alguma coisa (Arte: Dan Kosmayer)

Um deles pulou no meu travesseiro e começou a piar como se quisesse alguma coisa (Arte: Dan Kosmayer)

Antes que eu a tocasse, a vaquinha partiu da mesma forma que chegou – voando e lançando de suas mamas alguns jatos de leite encorpado misturado com sangue. Uma porção impactou sobre minha cabeça. Passei a mão e notei meus cabelos engordurados, com fedentina de coalhada e ferrugem. Respirei profundamente com olhos fechados, tentando restabelecer a serenidade, e quando os abri tudo tinha sumido, com exceção do cheiro de morte que na realidade era emanado do meu corpo, não da vaquinha.

Voltei para a cama sofrendo de indisposição estomacal – dava a impressão de que o lanche estava revirando meu estômago. Dormi menos de uma hora porque ouvi um barulho insólito que se repetia a cada cinco ou dez segundos. Incomodado, inclinei a cabeça por baixo da cama e percebi um bichinho úmido e morno acariciando a minha tez. Era um porquinho landrace que percorria meu rosto com a língua. No escuro, seus olhos cintilavam como se tivessem luz própria. Ele sorria e aquilo era intrigante.

Prestando muita atenção em mim, recuou sorrateiramente, como que arrependido. Tropeçou sobre as próprias patas e chorou. Suas lágrimas escorriam pelo focinho. Acuado num canto ao lado da porta, o medo destacava ainda mais a sua pele rosácea. Fiquei mais confuso e sobressaltado quando o porquinho me fez uma pergunta com voz titubeante: “Por que você comeu minha mãe?”

O questionamento não se repetiu e imaginei que eu estivesse delirando. Não respondi. Preservei o silêncio até a chegada repentina da ânsia de vômito. Pálido, vi minhas mãos tornadas diáfanas. Algo subia dentro de mim enquanto meu corpo esquentava e esfriava. Quando abri a boca, os pedacinhos de bacon se lançaram ao chão inteiriços. Se juntaram como se fossem magnetizados.

Em poucos segundos se transformaram em uma porquinha eufórica que grunhia e girava em torno do próprio rabo. Extasiado, o filhote se jogou sobre ela e, sôfrego, a lambeu. Os dois ficaram ali, juntos, tão próximos que tive a impressão de que dividiam a mesma respiração. Quando desviei os olhos rapidamente, eles desapareceram. Deitei na cama outra vez. Dormi por duas ou três horas até perceber um animal tocando as minhas costas. Era leve e tinha cheiro de quirera de milho e farelo de soja. Havia três pintinhos andando em cima de mim.

Um deles pulou no meu travesseiro e começou a piar como se quisesse alguma coisa. Ciscava tentando transmitir uma mensagem. Levantei e o observei subir pelo meu braço como se fosse uma ponte. Sobre o meu ombro, ele piava com ternura, se comunicando com os outros dois que repetiam o trajeto. Num rompante, a ânsia de vômito veio com tudo. De minha boca saíram alguns pedaços pequenos e inteiros de filé de frango que antes de caírem no chão ganharam a forma de um frango que voou por curta distância batendo as asas e fazendo uma balbúrdia gangosa.

 Somente um boi que se apresentou como Pastiche falou comigo (Arte: OuShiMei)

Somente um boi que se apresentou como Pastiche falou comigo (Arte: OuShiMei)

Os pintinhos saltaram sobre ele e os quatro correram porta afora, na escuridão amena da madrugada. Não fui atrás. Com os braços apoiados sobre a cama, assisti tudo sentado, com olhos combalidos e semicerrados. Extenuado, caí na cama e adormeci. Em sono profundo, me vi comendo o lanche da noite passada. A cada mordida, eu sentia a dor da finitude, o aroma ininterrupto da morte. Toda a tristeza diante do passamento era absorvida pelo meu organismo e corpo, fazendo-me experimentar pontuais calafrios.

Medo, ansiedade, estresse, impotência e agonia. Os animais mortos concentravam tudo isso em suas carnes que recheavam meu lanche, fazendo vibrar dentro de mim a aglutinação de uma energia negativa intempestiva e solene emanada pela certeza do definhamento. A dor atravessava a minha essência e me fazia assistir os instantes finais de bovinos, suínos, caprinos e aves. Muitos choravam antes da execução porque reconheciam que suas vitalidades foram inibidas precocemente.

A morte perfazia um caminho tortuoso que subsistia dentro de mim. “Veja a minha dor, sinta a minha dor. Um mundo com animais demais e vidas de menos. Um dia, os humanos vão sofrer como nós. A carne há de sobrar, mas não haverá a quem dar de comer. E assim o mundo vai apodrecer rendido aos excessos desenfreados da produção”, ecoava na minha mente uma voz que embora bem articulada simulava um sincretismo de sons de animais de várias espécies.

“Nasci por esses dias. Veja só o meu tamanho, como cresci. E amanhã já vou morrer porque assim quis o meu criador”, comentou um frango resignado dentro de uma gaiola plástica, antes de ter os pés decepados por um facão. Os mais ingênuos, que não sabiam de seu destino, batiam as asas em vão. Se feriam gravemente, mas lutavam pela liberdade com inocência e inaptidão, já que desconheciam outra realidade que não a do confinamento.

Em uma fazenda enorme a perder de vista, os porcos comentavam entre si que haveria um grande abate no dia seguinte. Um deles conseguiu escapar e revelar a trama aos outros animais encarcerados a 50 e até 100 metros de distância. “Fomos criados pra morrer! Pra morrer! Só isso! Nada mais!”, berrava um jovem porco desajeitado. Durante a madrugada os animais se reuniram e cavaram uma vala mastodôntica. Em sequência saltaram no cabouco e pediram que dezenas de cavalos da coudelaria os cobrissem com terra.

“Pelo menos vamos morrer com dignidade”, argumentou um dos porcos mais bem cotados da propriedade. Optaram por se matar porque acreditavam que perdiam a alma quando serviam de alimento aos humanos. No dia seguinte, todos estavam mortos – filhotes, jovens adultos e animais velhos, abraçados independente de espécie. Em frente ao enorme sepulcro improvisado havia uma frase riscada sobre a terra – “O antiespecismo é como uma vela resfolegando sob a chuva.”

Acordei mais uma vez quando ouvi um grito. Me vi entre grades sendo transportado sobre um caminhão. Procurei minhas mãos e não as encontrei. Olhei para baixo e percebi que eu não era mais um ser humano, a não ser pela minha própria consciência, condição psicológica e emocional. Fisicamente eu era um robusto boi preto ladeado por outros bois. A maioria mantinha-se em silêncio. Somente um boi que se apresentou como Pastiche falou comigo.

“Tá chegando a hora, amigo. Nossa jornada chegou ao fim. Pasto, confinamento e abate. É a nossa sina”, lamentou, projetando um mugido fúnebre e prolongado. De repente, todos ficaram em silêncio, com suas cabeças vultosas mirando as próprias patas. Ouvi um som estranho e uníssono. Era como um ritual que eu não entendia porque eu não era um boi de verdade.

Reconheci o peso da morte quando o motorista do caminhão perdeu o controle e caímos de uma ribanceira. Lá embaixo, onde o capim penetrava minhas narinas e invadia minha boca a contragosto, vi a carroceria quebrada e aberta. Ao meu redor, meus companheiros de viagem estavam mortos, inclusive Pastiche que trazia uma expressão de satisfação em meio à penúria. Havia um cheiro estupefaciente de sangue, estrume e ração à base de milho.

Com poucos ferimentos e escoriações, me levantei e corri pelo prado verdejante. Minhas orelhas altaneiras captaram o som oxítono de uma revoada de andorinhas. Continuei correndo sem parar, por uma terra infinita onde o ser humano jamais poderia me alcançar. Recém-despertado de mais um sonho, fiquei sobressaltado, com o coração disparado, sentindo em meus lábios sabor que parecia ser da minha própria carne. Enleado, vi que ainda repousava ao meu lado o papel branco do lanche, lembrança inolvidável de uma avalanche.

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O menino Valdir

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Zombava ao ver uma barreira invisível me impedindo de ultrapassar a soleira da padaria

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Panificadora Pão de Açúcar, onde vovô presentava seu neto postiço (Foto: David Arioch)

Eu tinha cinco anos quando meu avô João chegou em casa falando do menino Valdir. Tranquilo e compenetrado, continuei no sofá assistindo desenho animado. Ele sentou ao meu lado e disse que Valdir era tão dedicado que gostava dele como se fosse seu próprio neto.

Naturalmente comecei a sorrir, mostrando os dentes com bisonhice e observando a expressão serena em seu rosto esfíngico e ainda pouco crispado. De repente, questionei: “Quem é menino Valdir?” – crente de que se tratava de nome e sobrenome. Ele coçou o queixo liso, recém-barbeado, hesitou e falou que era um menino muito esperto e da minha idade. Segundo vovô, Valdir gostava de ajudá-lo em qualquer circunstância.

Fiquei intrigado e imaginei quem seria esse garoto. “Eu conheço o menino Valdir?”, perguntei à minha mãe na cozinha enquanto ela amaciava a longa massa de pão girando um rolo à manivela. Respondeu que não, voltei para a sala e continuei encucado. “Menino Valdir, menino Valdir, menino Valdir, menino Valdir, menino Valdir…”, pensei antes de dormir, como uma dessas crianças que contam carneirinhos, observando o forro amadeirado e envernizado do quarto.

De madrugada, vovô invadiu meus sonhos passeando de mãos dadas com Valdir. Sorridentes, os dois caminhavam até a Panificadora Pão de Açúcar, onde ele presenteava seu neto postiço com os doces mais caros e mais bonitos da vitrine. “Como você é bonzinho, Valdir. Seus pais devem ter muito orgulho de você. Saiba que és a melhor criança do mundo”, comentava.

Valdir, que só balançava a cabeça em concordância, gargalhava e apontava o dedo para mim. Zombava ao ver uma barreira invisível me impedindo de ultrapassar a soleira da padaria. Fui obrigado a assisti-los do lado de fora, ouvindo o ronco do meu estômago. Sentia que havia um cabouco dentro de mim, uma fome tão avassaladora que deixava meu corpo minúsculo tiritante.

Escorado no batente, minha visão enturvecia conforme eu reconhecia a olência edulcorada de alguns doces que em meu mundo diminuto e inaudito eram os mais deliciosos do mundo. Performático, Valdir mastigava com ledice. Repartiu um pãozinho em dois pedaços, apontou o recheio cremoso e frutado em minha direção, lambeu os beiços e simulou que me daria um pedaço.

Levantou do banquinho, veio em minha direção e, faltando dois passos para chegar até a soleira, esticou o braço e recuou. Macarrônico, retornou fazendo o clássico moonwalk, de Michael Jackson, acompanhado de uma fosquinha. Sentou, fechou os olhos rapidamente, suspirou e abocanhou o pão que em poucos segundos desapareceu dentro de sua boca de rapa-tachos. “Por que, vovô? Por que, Valdir? Por que tão fazendo isso?”, retumbavam inúmeros fraseados ribombados que singravam intrincados dentro da minha mente.

Langoroso e atento a tudo que acontecia no interior da padaria, nem me dei conta de que eu estava completamente nu, com exceção dos pés envolvidos por um par de chinelinhos do Zé Colmeia. Só percebi o supra-realismo da situação quando ouvi gritos ensandecidos de uma multidão que me observava do outro lado da Avenida Distrito Federal. Tentei tapar minhas partes íntimas com as mãos, mas não adiantou. Pelado, corri ruborizado até o cruzamento com a Rua Getúlio Vargas, indo em direção ao Jardim São Cristóvão.

Ao meu redor, os motoristas reduziam a velocidade, colocavam suas cabeças titânicas como melancias janela à fora e gritavam com embocadura de hipopótamo: “Pelado, sem vô e faminto, isso que é um azar do quinto!” As vozes continuavam ecoando por todos os lados. Eu corria e não chegava a lugar algum, como se estivesse sobre uma esteira. De repente, o dia virou noite e o céu azul como um oceano prepóstero desvaneceu.

No firmamento, eu via somente escuridão, um vazio abissal. “Cadê a lua e as estrelas?”, refleti, até que centenas de olhos de coió surgiram entre as fendas que se abriram na abóbada celeste. Eram pretos, castanhos, azuis, verdes, cinzas, fulvos, rosáceos, enfim, de todas as cores possíveis e impossíveis. Eles me vigiavam e me acompanhavam com a destreza indefectível de um mecanismo automatizado, e com precisão de lentes telescópicas.

Para todos os olhos havia apenas uma boca. Não! Uma bocarra tétrica que parecia prestes a engolir meu mundo e me deixar vagando pelo sempiterno da inexistência terrena. “O que você quer? Fala logo, baixote!”, projetou o vozeirão macambuzio com um hálito vigoroso e vicejante como das hortas caseiras de hortelã. A cada palavra, ela me lançava uma aragem que esvoaçava meus cabelos com ferocidade e arrancava as folhas dos galhos de uma sibipiruna que me protegia, evitando que eu fosse arrastado.

Tive dificuldade em manter os olhos abertos – esbraseavam por causa da violência lancinante da ventania que sibilava e chiava, me motivando a abraçar o tronco da árvore com minhas mãos miúdas que afundavam em seu dorso, enchendo as unhas de vestígios moscados de coscorão. Num impulso, gritei que só queria voltar para casa. “Por favor! Nunca mais vou seguir o vovô e o Valdir!”, prometi com olhos marejados.

As lágrimas escorriam pelo meu rosto rubicundo, desciam pelo corpo e afrouxavam o elástico do par de chinelinhos tornado escorregadio como pele de sapo. Cabisbaixo, silenciei e quase desmaiei, com a visão ligeiramente embaçada. Só despertei com a chuva morna e torrencial tocando meus cabelos e ombros com a graciosidade de um cafuné e um abraço. Era colorida e tinha cheiro e sabor de sodinha.

Observei novamente o céu e vi centenas de olhos encharcados. O choro se transformou na chuva que aquecia meu corpo, afastando a friagem. Depois, todas as fendas findaram no céu e a água prosseguiu sua jornada solitária, se intensificando e formando uma pequena corrente caudalosa que me arrastou até a Rua Pernambuco. Quando abri o portãozinho de casa, um forame sem fundo surgiu logo abaixo dos meus pés. Não consegui me afastar – era tarde demais. Enquanto eu caía, tudo ao meu redor se desfazia. Subitamente tive um espasmo hipnico e acordei. Três anos depois, o mesmo pesadelo retornou, só que pela última vez.

Naquela madrugada, sentado na cama, me recordei de todos os episódios que vovô viveu com Valdir, tantas experiências e histórias partilhadas. Então tomei uma decisão. Caminhei até a varanda, onde vovô repousava em uma cadeira – ouvindo rádio e vendo a frugal movimentação de passantes na rua, e pedi que me levasse para conhecer o menino Valdir. Ele me observou atentamente em silêncio, sorriu e revelou: “Valdir nunca existiu, a não ser dentro da minha e da sua mente, onde a criatividade floresce sem um pedaço de semente.”

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O sonho de Baruddin e o lamento de um pai

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Ahman observou os furos como se fossem ferimentos provocados por mamonas

Bogor quando Baruddin Jalisu ainda era vivo (Foto: Bogor Heritage)

Bogor quando Baruddin Jalisu ainda estava vivo (Foto: Bogor Heritage)

Em uma das pacíficas manifestações pela independência da Indonésia, Ahman Jalisu foi entregar arroz em um pequeno armazém de Bogor, na Província de Java. Quando ouviu sons de tiros e gritos, abandonou a bicicleta com a carretinha de madeira onde transportava quase cem quilos do produto e correu a pé, abespinhado, gritando o nome do filho.

Percorreu 500 metros e caiu de joelhos ao ver dezenas de pessoas fechando portas e janelas enquanto homens fardados empilhavam cadáveres sobre uma pira. Ao olhar para o outro lado da rua, Jalisu viu o filho deitado sobre uma poça de sangue, com os lábios ao chão.

Os olhos de Ahman fumegaram. O sofrimento o sobrepujou de forma tão truculenta que pensou que o tempo tivesse regelado, transfigurando o efêmero em infinito. Sem se importar com a própria vida, correu até Baruddin. Os cabelos de azeviche do rapaz ocultavam-lhe o rosto de traços singelos.

Ahman o tomou nos braços e correu sem olhar para os lados, pensando apenas em levar o filho escanifrado embora. Parou para resfolegar no armazém onde abandonou a bicicleta. Despejou o arroz no chão, ao alcance de uma turba de famintos, colocou o filho dentro da carretinha e pedalou 15 quilômetros até chegar em casa.

Levou Baruddin ao banheiro e deu-lhe banho. Enquanto o asseava, exigiu que nunca mais agisse de forma tão passional. Jalisu deslizou a mão direita pelos projéteis das submetralhadoras que, abrigados no corpo do rapaz, deixaram três orifícios no tórax, dois na nuca e um nas costas. Ahman observou os furos como se fossem ferimentos provocados por mamonas; comum quando o filho não tinha mais de 10 anos.

Naquele tempo era a principal munição das brincadeiras de estilingue. Com os cabelos de azeviche tapando parcialmente os olhos, Baruddin relatava ao pai que estava treinando para lutar pela independência dos indonésios quando se tornasse adulto. Descalço, corria quilômetros até a residência do amigo Segu.

Juntos, confeccionavam estilingues com forquilhas de ferro. As reminiscências deixaram Jalisu em prantos. Quando percebeu a água da banheira rubicunda, advertiu o filho sobre a importância dele não entrar sujo na banheira. “Não faça assim, ujang [filhinho]… Você bem poderia ter se limpado no poço. É tão pertinho. É claro que depois eu deixaria você entrar dentro de casa e faria o seu jantar. Só quero seu bem. Sempre foi assim”, declarou Ahman balbuciando, sem notar as próprias lágrimas formando pequena poça em seu colo.

Baruddin foi assassinado lutando pela independência da Indonésia (Foto: Bogor Heritage)

Baruddin foi assassinado lutando pela independência da Indonésia (Foto: Bogor Heritage)

Após o banho, Jalisu vestiu o filho com as melhores roupas do pequeno roupeiro de teca seca. Pegou uma camisa e uma calça de cores claras que estavam dentro de um saco plástico transparente, o vestiu e o levou até a cozinha. Enquanto preparava rujak e bananas assadas ao molho de soja, fez carícias no rosto acobreado do caçula desacordado – com a nuca inclinada sobre o espaldar.

Ahman pediu para o filho sentar-se corretamente. “Por favor, Baruddin, se ajeite. Não quero que tenha graves problemas na coluna”, justificou. Jalisu passou a maior parte da tarde dizendo a Baruddin que o ajudaria a realizar seu sonho – construir um ônibus. O rapaz se dedicava às pequenas invenções. Nem as dificuldades econômicas o impeliam a desistir. Era comum vê-lo nas ruas de Bogor comercializando os pequenos inventos que carregava na carretinha puxada pela bicicleta.

Após sete dias convivendo com o filho morto, Jalisu inebriou-se em recordações, já impossibilitado de distinguir pretérito e presente. Para ele, Baruddin era a criança que escalava árvores até o topo, na tentativa de mensurar o tamanho de seu mundo diminuto, que o fazia se sentir como formiga-faraó. Ahman era o único que não se incomodava com o odor do filho.

O mau cheiro exalado pelo corpo foi percebido pelos vizinhos. Recomendaram que desfizesse do cadáver, enterrando-o. “Você vai acabar chamando a atenção da polícia. Pense bem!”, sugeriu um amigo. Ainda assim discutiu com todos e os expulsou de sua propriedade. Só restabeleceu a sanidade no entardecer do décimo dia.

Enleado, pegou o filho escanzelado nos braços com o mesmo cuidado de quando era um bebê. O embalou e cantou “Rasa Sayang”, a canção preferida de Baruddin na infância. Depois o levou até o fundo da residência e sentou sobre uma cadeira de balanço acoplada com um sistema de ventilação movido à casca de batata-doce – invenção do filho.

Pressionando a cabeça de Baruddin contra o peito, Jalisu chorou, umedecendo os cabelos do rapaz. Quando sentiu a fragilidade do corpo sem vida recostado ao seu, berrou até ficar sem voz. Perguntou a Deus se seria possível transferir todos os seus órgãos vitais para o filho. A resposta não veio – não da forma esperada, somente uma alígera brisa com olência de crisântemo e um silêncio ensurdecedor que dilatou seus sentidos à exaustão.

Uma hora mais tarde, Ahman buscou uma faca na cozinha e extraiu com diligência todas as balas alojadas no corpo do filho. Aparou as pontas dos cabelos, cortou as unhas, fez a barba do rapaz e o enterrou nu a 900 metros da casa, sobre folhas de erva-cidreira – a preferida do jovem Jalisu. Preocupado em ter uma recaída e, quem sabe, resolver exumar o filho, não construiu lápide nem deixou qualquer identificação de que no local o corpo de Baruddin repousava.

Temia que pelo fato do rapaz ter sido um insurgente poderiam levar seus restos mortais para serem incinerados em uma fornalha na Província de Jambi. Com o passar dos anos, esqueceu o número de passos até o local onde Baruddin foi enterrado. Apesar disso, os restos mortais continuaram na chácara em que Ahman Jalisu sempre morou.

Para se sentir mais próximo do filho, estudou o projeto criado por Baruddin e construiu em dezembro de 1941 um ônibus de proporções homéricas que até hoje circula pelas ruas de Bogor, transportando sem qualquer custo famílias pobres que vivem nas vilas nas imediações da chácara da família.

“Esses dias, quando eu estava dirigindo, vi Baruddin sentado no último banco, onde o sol deitava candente por trás do vidro traseiro. Não havia mais ninguém além de nós dois. Ele não chorava, não sentia dor nem falava. Apenas sorria, trazendo ao meu coração uma fagulha de alegria. Naquela noite, dormi bem pela primeira vez em mais de 20 anos. Meu filho tinha voltado pra casa”, escreveu Ahman Jalisu em um diário em 25 de novembro de 1963.

Curiosidade

Rujak ou rojak é um prato típico à base de abacaxi, batata-doce, manga, carambola, jicama, jambo, goiaba e tofu. Os ingredientes também podem variar dependendo da região e da tradição familiar.

Written by David Arioch

February 16th, 2016 at 12:52 am

As duas realidades de Mark Britten

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Depois de sofrer um acidente, Britten acorda e acredita que está vivendo em duas realidades distintas (Foto: Divulgação)

Em 2012, a série dramática Awake – Two Dreams, One Reality estreou nos Estados Unidos como uma grande promessa da rede NBC. Infelizmente foi mais um programa que não ultrapassou a primeira temporada, inclusive com cancelamento conturbado e final inconclusivo. Apesar disso, é uma série que vale a pena ser conhecida.

Ao longo de 13 episódios, o espectador é convidado a se aprofundar na história e no cotidiano do detetive Mark Britten (Jason Isaacs). Depois de sofrer um acidente, Britten acorda e acredita que está vivendo em duas realidades distintas. A verdade é que ele não é capaz de identificar quando está acordado ou sonhando devido ao trauma. Em uma das supostas realidades, a tragédia custou a vida de seu filho Rex. Na outra, quem está morta é sua esposa Hannah, o que o deixa mais confuso, o levando ao cume da culpabilidade e da crise existencial.

Outra surpresa é que em cada aparente realidade o detetive tem parceiros diferentes. Na história em que sua esposa faleceu, ele trabalha com o detetive Efrem Vega, um jovem com pouca experiência, mas muito sociável. Já no segmento marcado pela ausência de Rex, Mark Britten atua com Isaiah “Bird” Freeman, um detetive veterano – homem cínico e irônico. É interessante perceber logo no primeiro episódio como os mais diversos aspectos da série são permeados pela dualidade, uma constante que inunda o universo de Britten até o episódio final.

Written by David Arioch

February 2nd, 2016 at 11:01 pm