David Arioch – Jornalismo Cultural

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Reminiscências de um suicida

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As imagens persistem como se a altivez da morte me espreitasse a vida mais do que nunca

"Sinto-me como a tela de uma arte despojada de seus valores morbidamente conceituais" (Pintura: Rudolf Brink)

“Sinto-me como a tela de uma arte despojada de seus valores morbidamente conceituais” (Pintura: Rudolf Brink)

As reminiscências ecoam na minha mente como bruscos flashes do que vivi. Lembro dos momentos de corriqueira harmonia, mas que me foram plenos como o infinito. Os cães correndo pela casa ao encontro de um abraço humano amortecido por pelos grossos e brancos. O aroma vindo da cozinha e deslizando como ondas radiantes ao encontro de minhas narinas que o absorviam com um suave suspiro a olhos fechados.

Sinto como se fosse hoje os dissabores das discussões durante as viagens, mas que sempre terminavam num resplandecente ar de calmaria e reflexão. Época em que os sorrisos eram mais preciosos que a matéria-prima de qualquer ourivesaria. Ao momento que a representação dos sons, imagens e fragrâncias vão me confortando, sinto a pontada que me sorve a existência. Minhas têmporas dilatam a cada imagem do passado, como se a dor rogasse pelas simples, mas representativas alegrias.

Percebo meus lábios secos que um dia já foram úmidos e corados como morangos frescos e silvestres. O abstêmio azedo em minha boca sorvendo um entorpecente filete de sangue. Sangue formador de pequenos traços que fomentam uma abstração do vermelho; obra de fazer inveja a Tristan Tzara. Decidido por uma ignóbil saída, abracei as mãos da finitude, esta que me fora apresentada como um doce caminho percorrido por quem tropeçou no abismo das inverdades.

A pólvora fora uma das grandes invenções da humanidade, e talvez sem a qual eu não tivesse decidido por evitar o futuro da lúdica realidade. A bala que se aloja em minha cabeça gera aflição enquanto forma uma pequena cascata à sua volta. O sangue derrama-se como uma pequenina bica de mina ao mesmo tempo em que se confunde com as inquilinas lágrimas de meus olhos. Como a relação do pequeno riacho com a sua nascente (essa que preconiza o fim das ilusões em chão). O salgado orvalho transparente em ablução com o doce vermelho (segundo os falsos princípios da vida).

Apresento-me imóvel e relativamente lúcido a derrocada do meu mundo paralelo, ao tempo que pressinto a lugubridade do meu final se aproximando da emancipação da carne. As imagens persistem em meu espólio mental como se a altivez da morte me espreitasse a vida mais do que nunca. Sinto-me como a tela de uma arte despojada de seus valores morbidamente conceituais.

O universo paradoxal me deixa a melindrar entre o falso puritanismo e a misantropia, como se a minha existência fosse desvanecendo numa macabra, mas pueril e complacente liturgia. Tornei-me um todo poderoso, senhor da própria morte, que antes do meu último suspiro deixei levar com o sangue toda uma enganosa virtuosidade ideológica. Mas, previamente ao mortiço, antes do meu consciente estardalhaço, consenti uma reflexão que me acalmou as células, o fato de que o mundo em que vivi era tanto de Odin como de Fenrir.

A crônica acima, a minha primeira publicada em um jornal, foi escrita em 2004.

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Written by David Arioch

August 15th, 2015 at 6:45 pm

Todos querem ser John Malkovich

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A busca do ser humano por uma identidade que o faça sentir-se especial

Being John Malkovich trata da complexidade da natureza humana (Foto: Reprodução)

Being John Malkovich aborda a complexidade da natureza humana (Foto: Reprodução)

Lançado em 1999, Being John Malkovich (Quero Ser John Malkovich), do cineasta estadunidense Spike Jonze, é um filme sobre a busca do ser humano por uma identidade que o faça sentir-se especial, mesmo por alguns minutos.

A obra marcou a estreia do cineasta Spike Jonze que teve o mérito de contar com um bom roteiro de Charlie Kaufman, também conhecido por roteirizar filmes que estão muito além do padrão hollywoodiano – como Adaptação, Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças e Confissões de uma Mente Perigosa.

Obra é protagonizada por John Cusack (Foto: Reprodução)

Obra é protagonizada por John Cusack (Foto: Reprodução)

O argumento do filme de Jonze se sustenta na psicologia da natureza humana, o que justifica porque Quero Ser John Malkovich é pautado na subjetividade da existência. No filme, Craig Schwartz (John Cusack em uma de suas melhores interpretações) é um titereiro que descobre acidentalmente como entrar na mente de John Makovich ao longo de 15 minutos. A descoberta torna-se um refúgio para dar vazão ao sentimento de inferioridade do protagonista.

Logo Craig tem a ideia de partilhar a oportunidade com outras pessoas. Sob influência de uma colega de trabalho, decide cobrar U$ 200 para proporcionar a mesma experiência aos outros. A chance de ser o famoso Malkovich por alguns instantes torna-se uma catarse para muitos, pessoas que se apegam a tal realidade virtual como uma ilusória autoafirmação, e mais, a confirmação da crescente falta de identidade do ser humano.

Nem o homenageado, que na história é um personagem caricato, abre mão da oportunidade de entrar dentro da sua própria mente. Quero Ser John Makovich é um filme que recria diversas realidades pessoais que se afunilam e homogeneizam não partindo apenas do que cada um se condiciona a ver, mas também da necessidade que cada personagem tem de existir para além de si mesmo. O filme também traz no elenco Cameron Diaz, Catherine Keener, Orson Bean e Charlie Sheen. A trilha sonora é de Carter Burwell.

Era uma vez um sonho americano

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Down By Law, confinados a uma realidade marginal

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Filme conta a história de três detentos alheios ao sonho americano (Foto: Reprodução)

Lançado em 1986, Down By Law, do estadunidense Jim Jarmusch, consagrado nome do cinema independente, conta a história de três detentos alheios ao sonho americano. Mesmo sem perspectiva de futuro, eles conseguem fugir, mas fora da cadeia se dão conta de que continuam presos, confinados a uma realidade marginal.

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John Lurie, Roberto Benigni e Tom Waits são os protagonistas de Down By Law (Foto: Reprodução)

Zack (Tom Waits) e Jack (John Lurie) são dois personagens condenados a prisão por crimes que não cometeram, embora ganhem a vida praticando atividades ilícitas. Enviados para a mesma cela, os dois se evitam como se fossem pessoas antagônicas. Mas a verdade é oposta. Não se gostam por serem semelhantes; um parece refletir a imagem do outro. A convivência é difícil, inclusive o diretor Jim Jarmusch explora a situação com tomadas longas e uma fotografia em preto e branco que privilegia tons mais escuros.

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Jim Jarmusch explora a incomunicabilidade dos personagens (Foto: Reprodução)

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Mesmo após a fuga, os foragidos não se sentem livres (Foto: Reprodução)

Aos poucos, a história toma outro rumo, até estético. Os diálogos se tornam mais densos e as cenas mais curtas com a chegada do detento Roberto (Roberto Benigni), um verborrágico imigrante italiano, mas bem humorado, que leva luz e vida ao mórbido e opaco ambiente. A princípio, Zack e Jack tentam evitá-lo. Entretanto, cedem quando Roberto afirma ter um plano para fugirem da prisão. Dos três, o único que realmente foi preso por um crime que cometeu é o italiano. Jarmusch destaca a subjetividade e o paradoxo ao mostrar um homicida ingênuo enquanto os outros dois condenados, mesmo inocentes, personificam o estereótipo de um criminoso.

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Cenário onde o imigrante Bob se depara com o sonho americano (Foto: Reprodução)

O cineasta mostra a incomunicabilidade com uma peculiaridade assombrosa. Bob, que mal sabe falar inglês, é efusivo e raramente fica em silêncio. Já Zack e Jack, autênticos estadunidenses, têm dificuldades de se relacionarem. No decorrer da trama, o imigrante italiano, admirador da cultura norte-americana, consegue uma esposa. Jarmusch faz o espectador crer que o abestalhado Roberto encontrou um “lar” na América, quem sabe a concretização particular do american way of life. Em contraponto, os dois americanos da Louisiana continuam vivendo nos EUA como se fossem estrangeiros; vagam em rumo de um objetivo existencial.

Uma das cenas mais impactantes de Down By Law surge quando os três criminosos encontram uma casa durante a fuga. No interior, Jim Jarmusch recria o ambiente de uma cela, com beliches típicos de penitenciárias e colchões cobertos por lençóis iguais. O objetivo é transmitir a ideia de que mesmo livres ainda estão presos, não a um espaço material, mas a uma condição existencial que os acompanhou por toda a vida. É uma referência a responsável por privar-lhes de sentirem-se livres – a marginalidade.

A trilha sonora do filme foi composta especialmente pelo ator, músico e artista plástico John Lurie que fez parte do grupo The Lounge Lizards, um clássico do jazz estadunidense. Outra curiosidade sobre Down By Law é que o filme venceu importantes festivais de cinema e disputou em 1986 o prêmio Palme d’Or, o mais importante do Festival de Cannes. Vale lembrar ainda que a influência da obra se estende ao cenário musical. O exemplo mais emblemático é a banda de punk-rock Down By Law, muito famosa nos EUA e que já se apresentou no Brasil algumas vezes.

Uma garota de programa em paradoxo

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Godard e a perspectiva humanista sobre uma personagem marginalizada

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Musa de Jean-Luc vive a prostituta Nana (Foto: Reprodução)

Vivre Sa Vie, Lançado no Brasil como Viver a Vida, é um clássico da Nouvelle Vague de 1962, do controverso cineasta francês Jean-Luc Godard. O filme conta a história de Nana, uma garota de programa que sonha em ser atriz e vive o paradoxo de preservar a própria integridade.

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Natureza de Nana revela humanismo em crise (Foto: Reprodução)

Viver a vida é protagonizado por Anna Karina que empresta beleza a personagem Nana. Por si só, o rosto angelical e expressivo da atriz propõe um paradoxo ao encarnar uma meretriz. Sem cenas tórridas de lascívia, exibicionismo, exaltação da sexualidade ou até mesmo beijos quentes, o filme é uma perspectiva humanista sobre uma personagem marginalizada. Na obra, a garota de programa assume uma notoriedade idiossincrásica em que citações literárias e filosóficas determinam o cotidiano.

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Protagonista assiste ao enlace entre a modernidade e a decadência (Foto: Reprodução)

Embora depreciada pela sociedade, Nana é uma caricatura expressionista vivendo sob um prisma de valores criados por ela mesma, totalmente desvinculada do caráter maternal imposto às mulheres. O contexto, quando imaterial, se resume a um universo reflexivo, onde a objetividade e o concreto só existem em razão da subjetividade. Tudo é transmitido no filme por etapas, já que Viver a Vida se divide em doze atos.

Do início ao fim, é permitido invadir a intimidade de Nana, representante de um ideal de liberdade que tenta ignorar tudo a sua volta. Mas nem sempre consegue. A protagonista se mostra frágil ao entregar o corpo por exigência do ofício. Sente que algum tipo de emoção e sentimento nasce ou morre antes de cada relação sexual.

O espectador, que assume os olhos de Godard, presencia muitas das cenas como testemunha; alguém o tempo todo ao alcance de Nana. A primeira cena em que a câmera, de uma posição privilegiada, destaca as costas e os ombros da personagem, mantendo o rosto oculto enquanto conversa em um café, é o exemplo primordial.

A natureza de Nana ratifica a ideia de que o humanismo está em crise há muito tempo. Como sobrevivente do submundo parisiense, ela assiste ao enlace entre a modernidade e a decadência. Na capital francesa, surgem cinemas, cafés e máquinas de fliperama enquanto morrem pessoas, sonhos e ideais.