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A morte de Élcio Caetano
O artesão Élcio Caetano faleceu ontem durante uma cirurgia. O conheci em 2014 e fiz uma matéria contando sua história. Ele ficou paraplégico há mais de dez anos, depois de levar um tiro. Entrou em depressão quando descobriu que não poderia mais andar, mas perseverou e encontrou no artesanato uma forma de superação.
O visitei muitas vezes para saber como ele estava e também para tentar ajudá-lo com o apoio dos amigos João Henrique de Andrade e Luzimar Ciríaco Andrade. Em novembro de 2014, ele foi homenageado na Câmara Municipal de Paranavaí em sessão solene em comemoração ao Dia Nacional da Consciência Negra.
Naquela noite, busquei ele em casa. Foi um dos momentos em que o vi mais feliz, sorrindo e empolgado com a possibilidade de ter sua trajetória elogiada por tanta gente. Durante a solenidade, Élcio discursou brevemente, e sua leveza em forma de palavras deixou claro que nem suas limitações físicas o impediam de amar a vida.
Na mesma semana, ele colocou o diploma de personalidade negra de 2014 em um ponto bem visível da parede da sala, para que todos pudessem vê-lo e entender como aquele momento foi significativo em sua vida. “Daí eu não tiro nunca mais. Quero que todos vejam e tenham orgulho de mim”, justificava sorridente.
Élcio gostava de produzir arte com materiais recicláveis e objetos que as pessoas descartavam como se fossem lixo. Também fazia pão para vender, um ofício casual que aprendeu com a mãe. Jamais ficava à toa, mantinha-se sempre ocupado.
“Naquele estado [referindo-se à depressão ao saber que não andaria mais], o ócio é perigoso porque a pessoa acaba tendo muitas ideias que não são saudáveis”, me dizia. O encontrei muitas vezes cruzando ruas e avenidas com sua motoneta adaptada. Com as mãos no guidão e o vento acariciando o rosto, ele se via menos limitado, mais livre.
No ano passado, por problemas burocráticos, ele perdeu o Benefício da Prestação Continuada da Lei Orgânica da Assistência Social (BPC/LOAS), e o governo ainda exigiu que Élcio devolvesse os R$ 70 mil que recebeu ao longo dos anos. Ele ficou um bom tempo sem receber o seu salário mínimo, sua principal fonte de renda.
E a depressão vencida há muito tempo, retornou quando ele reconheceu que mal tinha o que comer. Como devolveria R$ 70 mil? E mais uma vez, ele contou com o apoio de amigos e de pessoas que realmente se preocupavam com o seu bem-estar.
Quando o governo percebeu que ele era um sujeito honesto, que tinha direito de continuar com o benefício, também foi firmado um compromisso de repassar a ele todos os salários que não recebeu durante o bloqueio do LOAS. Infelizmente, ontem, poucos meses depois, Élcio Caetano faleceu durante uma cirurgia, ainda jovem, crente de que logo estaria de volta para continuar produzindo sua arte.
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Élcio Caetano era morador do Conjunto Dona Josefa, na periferia de Paranavaí, no Noroeste do Paraná.
John Joseph: “Se uma dieta baseada em vegetais funcionou para mim, ela funciona para qualquer um”
Como o vocalista da lendária banda nova-iorquina Cro-Mags tornou-se um atleta vegano
Vocalista da lendária banda de crossover Cro-Mags, pioneira na fusão do hardcore punk com o thrash metal, e uma das mais importantes da história do cenário hardcore de Nova York, John Joseph publicou em 2014 o livro “Meat is for Pussies: A How-To Guide for Dudes Who Want to Get Fit, Kick Ass…”. Embora o título possa parecer bobo, cômico ou provocativo, o conteúdo merece muita atenção.
“É um olhar sobre a perspectiva de que o homem ‘precisa’ de carne para ser varonil e forte”, explica o também escritor e atleta vegano. Na primeira parte do livro, John Joseph apresenta fatos e faz críticas aos horrores envolvendo a exploração animal e os processos de produção de carne.
Depois de falar das fazendas industriais, ele guia o leitor a um capítulo em que discorre sobre um estilo de vida mais feliz, saudável e muito mais humano. Ou seja, um estilo de vida vegano. Na obra, ele dá dicas sobre culinária livre de crueldade contra animais. Em síntese, “Meat is for Pussies”, ignorem o título jocoso, é uma obra em que Joseph desafia positivamente os leitores a mudarem de vida.
“Muitos dos caras que perguntam de onde consigo minhas proteínas estão acima do peso, precisam de pílulas para ereção e levam uma hora no banheiro para se livrarem das carcaças podres que estão em seus cólons”, diz.
Uma das figuras mais famosas do cenário hardcore punk dos Estados Unidos, John Joseph tem usado a sua popularidade para atrair pessoas para o veganismo, divulgando principalmente os benefícios de uma alimentação vegetariana aliada a um bom condicionamento.
“Aprendi sobre a PMA [atitude mental positiva] quando a banda punk rastafári Bad Brains me deu um trabalho como roadie deles em 1981. A primeira parte do processo era abandonar carnes, ovos, laticínios, comida processada e drogas”, confidenciou em entrevista à Deni Kirkova, do tabloide britânico Metro em 21 de agosto de 2015.
Segundo Joseph, a sua mudança de atitude foi uma consequência da sua dieta vegetariana estrita, um catalizador em sua vida. “As cortinas caíram, por assim dizer. Absorvi o conhecimento como se eu fosse uma esponja. Fiquei sóbrio, comecei a praticar ioga, meditação, artes marciais, ciclismo, natação de águas abertas e corrida”, revelou.
O novo estilo de vida também garantiu mais energia para tocar com o Cro-Mags e um bom desempenho no Ironman Triathlon, competição de resistência que exige que os atletas completem quase quatro quilômetros de natação, 180 quilômetros de pedaladas e mais de 42 quilômetros de corrida. E tudo isso exige muito treinamento e uma boa dieta. Em 25 de setembro de 2015, a Vice publicou uma matéria baseada na rotina de John Joseph em sua preparação para o Ironman, e se surpreendeu com a força de um homem que só consome alimentos de origem vegetal.
“Se você me dissesse em 1980 que um dia eu seguiria uma dieta vegetariana, e mandaria ver no IronMan, eu provavelmente daria risada em sua cara. Meu passado em Nova York foi duro, realmente duro”, explicou a Deni Kirkova. Mesmo quando sua rotina ficou atribulada por causa das turnês com bandas como Motörhead, Bad Brains, Megadeth e GBH, Joseph continuou cumprindo seu papel como vegano, sem qualquer deslize. Com o Cro-Mags, ele gravou entre os anos de 1986 e 1993 os álbuns “Age of Quarrel”, considerado um dos discos mais influentes da história do hardcore punk, “Alpha Omega” e “Near Death Experience”.
O escritor e atleta vegano já recebeu milhares de e-mails, mensagens no Facebook, Instagram e Twitter de pessoas dizendo que leram seu livro e mudaram de vida por causa do conteúdo e do seu estilo de escrever. “Eles gostam porque dizem que foi escrito na linguagem deles”, justifica.
Quem não conhece a história de John Joseph, jamais imaginaria que ele foi um sem teto viciado em álcool e drogas. Em 1969, aos sete anos, ele foi obrigado a abandonar um lar violento. Viveu em vários orfanatos e em mais lares abusivos. Sem perspectiva de futuro, passou o ano de 1988 consumindo crack.
Na mesma época, levou um tiro, foi esfaqueado e chegou a ser preso. Hoje, com 54 anos, ele continua atuando como vocalista e tornou-se um atleta vegano com desempenho exemplar em cinco edições do Ironman. E ele atribui a sua história de superação ao seu estilo de vida vegano, que não admite a exploração de animais e considera prejudicial à saúde o consumo de alimentos de origem animal.
“As pessoas são bombardeadas por comerciais de fast food barato, e ingerem comidas que não só causam estragos ao seu sistema como ao planeta por causa do abate de animais”, lamentou em entrevista ao jornal The Examiner, da Austrália, e repercutida pelo Exclaim, do Canadá, em 7 de outubro de 2009.
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John Joseph, que nasceu em Nova York em 3 de outubro de 1962, se tornou vegetariano há mais de 30 anos.
Referências
Vegan rockstar and athlete John Joseph on why ‘meat is for pussies’
https://munchies.vice.com/en/videos/fuel-the-vegan-ironman-diet-of-cro-mags-john-joseph
http://exclaim.ca/music/article/cro-mags_john_joseph_declares_meat_is_for_pussies_with_new_book_begins_work_on_reality_show
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A mudança de Nelson
Em fevereiro, contei a história de Nelson Ferreira Filho, um ex-construtor da Vila Alta, na periferia de Paranavaí, que se entregou ao álcool e ao crack. À época, consegui uma vaga pra ele em uma das melhores clínicas de reabilitação do Norte do Paraná. No dia em que planejei buscá-lo, ele desistiu, não quis mais saber do internamento. Fiquei desapontado e preocupado com o seu futuro. Mas algo incrível aconteceu.
Hoje, fui até a Vila Alta e o reencontrei. Conversamos um pouco, inclusive com outras testemunhas, e ele me relatou que abandonou o álcool e o crack. Nelson estava sóbrio e bem animado, tanto que voltou a trabalhar depois de anos. Me surpreendi tanto que quero fazer um pedido.
Se você ver o Nelson na rua, se aproxime, fale que conhece sua história, dê um aperto de mão e diga algumas palavras de incentivo, nem que seja um simples “parabéns”. Quem puder, faça uma doação em ferro e materiais recicláveis. A motivação agora é o melhor caminho para evitar que ele tenha algum tipo de recaída. Acredito que há uma grande chance dele se livrar do vício de uma vez por todas.
Zaguinha, o Rei das Embaixadinhas
Manoel da Silva renasceu aos 44 anos, quando trocou a picareta por uma bola de futebol
Em 1999, o esportista Manoel da Silva, conhecido como Zaguinha, ganhou o título de Rei das Embaixadinhas ao participar de um programa televisivo em que desafiava os telespectadores – venceu todos. Desde então o reconhecimento lhe garante sobreviver daquilo que melhor sabe fazer.
O carismático Zaguinha ganhou visibilidade pela primeira vez em 1999, quando foi protagonista do Programa Esporte Espetacular, da Rede Globo. “Eu estava fazendo embaixadas em Tupã, interior de São Paulo, e um repórter me ligou. Perguntou se eu tinha interesse em participar do programa. Aceitei na hora”, conta.
Convidado para desafiar praticantes de embaixadinhas de todo o Brasil, o atleta não precisou se esforçar demais para faturar o título de rei. “Venci os oito melhores, selecionados pelo programa. Tive que fazer embaixadinhas até na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Mas valeu a pena e muito. Foi depois dessa aparição que consegui patrocínio de uma grande empresa de artigos esportivos”, declara Zaguinha que participou do Esporte Espetacular por 14 domingos consecutivos.
O talento e a dedicação do atleta trouxeram oportunidades inesperadas, como conhecer mais de 20 estados brasileiros e, também, viajar de avião pela primeira vez. Zaguinha é reconhecido internacionalmente, tanto que foi tema de uma reportagem da rede de televisão estadunidense Cable News Network (CNN). “Isso foi em 2000. Me levaram para fazer um trabalho de oito dias em escolinhas de futebol. Até participei de uma feira de esportes em Nova York”, reitera o atleta que se apresentou na Argentina e no Paraguai durante a Copa América de 1999.
O maior orgulho de Zaguinha são as inúmeras façanhas, entre as quais embaixadinhas com bola de futebol americano e abacaxi. “Já fiz 550 com uma bolinha de dois milímetros. Faço com qualquer tipo de esfera, desde que o peso não ultrapasse dois quilos e meio”, enfatiza. Quando participou do Programa do Jô, lhe deram um sabonete molhado. O atleta admite que foi difícil manter o equilíbrio, contudo não passou vergonha; fez cinco embaixadinhas.
O esportista sempre fica feliz ao ser desafiado, mas a satisfação surge apenas no fim, quando o resultado é positivo. “Já fiz muitas embaixadas atravessando a Avenida Paulista, subindo as escadas de uma igreja em Aparecida e, também, sobre o parapeito de um prédio de 15 andares. Nesse desafio tive medo porque não gosto de lugares altos”, revela.
Zaguinha diz que se sente realizado por levar diversão e informação a tantas pessoas. “Minhas apresentações duram em média 30 minutos, só que sempre dedico algum tempo para falar sobre educação e drogas”, pondera.
Atleta teve vida difícil no Noroeste do Paraná
Manoel da Silva, conhecido como Zaguinha, nasceu em Murici, no interior de Alagoas, e se mudou para Loanda, no Noroeste do Paraná, quanto tinha nove anos. “Como saí do nordeste muito novo, me considero tanto nordestino quanto paranaense”, afirma o esportista que teve uma vida muito difícil.
Na década de 1960, o jovem Manoel começou a trabalhar na área rural derrubando árvores para o plantio de amendoim, algodão e mamona. “Sinto saudade das coisas boas, mas foi um tempo de muitas dificuldades”, frisa Zaguinha que se distrai mirando o horizonte. De repente, começa a lacrimejar ao se recordar da esposa falecida em 1981.
Em Loanda, depois de reunir um bom dinheiro, o atleta abriu um bar, onde impressionava os fregueses fazendo embaixadinhas com bolas de sinuca. Com o tempo o negócio deixou de ser lucrativo e Manoel decidiu participar de um concurso público municipal.
“Passei e ganhei uma picareta, uma chibanca [machadinho], uma enxada e uma pá. Meu trabalho era fazer valetas para esgoto. Ganhava um salário mínimo, ou seja, trabalhava demais e recebia pouco”, avalia Zaguinha. Logo que encerrava o expediente, Manoel da Silva ia pra casa treinar.
O apreço pelas embaixadinhas surgiu na infância, quando o esportista e seus cinco irmãos brincavam com bolinhas de meia. “Era comum também matarem porco e a gente tirar a bexiga do animal pra enchê-la com ar. Era a nossa bola, a maior alegria da minha infância”, relata Zaguinha que na década de 1990 decidiu transformar o sonho em realidade ao se mudar para São Paulo.
Estadunidense impulsionou a carreira do esportista
Em São Paulo, Zaguinha adotou o Viaduto do Chá como local de treino porque sabia que a área era bastante frequentada pela mídia. Com a intenção de atrair a atenção para si, sempre fazia embaixadinhas quando via uma máquina fotográfica ou filmadora. “Estava sempre próximo da imprensa, mas sem exageros”, assegura.
Zaguinha passou três anos fazendo shows na rua. Tudo mudou em 1999, aos 47 anos, quando um empresário estadunidense que assistiu a uma apresentação de Zaguinha pela TV a cabo acreditou no trabalho do esportista. “Gostou do que viu no Esporte Espetacular. Quando veio pra cá buscar produtos esportivos de uma grande empresa ele sugeriu que me contratassem. Naquele mesmo mês, comecei a receber para fazer embaixadas”, reitera sorrindo.
Na rua, o atleta sempre é reconhecido pelo traje – uma camisa da seleção brasileira e uma bola que ele carrega dentro de uma pequena rede pendurada no braço. “Onde me vê, o pessoal já sabe quem eu sou e pede pra fazer embaixadinhas”, comemora o atleta.
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Zaguinha já fez mais de 80 mil embaixadinhas em oito horas.
Zaguinha nasceu no dia 1º de março de 1952.
Deusdete, o peão que se tornou exemplo de superação
“Posso dizer que os políticos mais atrapalharam do que ajudaram no crescimento de Paranavaí. É uma cidade marcada por mais injustiça do que justiça”
Em 1952, aos 22 anos, o pioneiro Deusdete Ferreira de Cerqueira deixou Monte Alegre, na Bahia, e viajou de trem de Mundo Novo até a divisa com Minas Gerais, onde subiu em um caminhão pau de arara que parava em qualquer lugar onde alguém acenasse com a mão. Mais adiante, entrou em outro trem na divisa com São Paulo. “Em Ourinhos, peguei o ônibus e a mala errada. Desci com a bagagem de um companheiro. Quando cheguei em Paranavaí, entreguei a mala dele. Perdi tudo”, conta Deusdete às gargalhadas, acrescentando que as malas azuis de madeira foram feitas pelo próprio irmão.
Depois de nove dias de viagem, o pioneiro chegou a Paranavaí em 9 de julho de 1952. A ideia de sair da Bahia surgiu quando Cerqueira ficou sabendo que um irmão do seu cunhado estava morando em Paranavaí. “Viemos em cinco, incluindo meu irmão e outro parente. Parei na Pensão São João, em frente ao Posto Minas, onde fiquei uma semana. Lá estava hospedado um rapaz que era gerente da fazenda onde meu irmão e cunhado trabalhavam”, relata.
O homem que ficaria conhecido como Toninho do Cartório administrava uma fazenda em Itaúna do Sul, onde Deusdete começou a trabalhar como peão. Meses mais tarde, a inexperiência o deixou com as mãos tão feridas que teve de assumir o posto de cozinheiro nas incursões pela mata virgem da região. Depois de preparar a boia, tinha de levá-la para os peões.
O trabalho era tão difícil que poucos resistiam. “Até quem tinha uma vida ruim na cidade natal preferia voltar assim que recebia um dinheirinho, inclusive meu irmão. Eu quis vencer e sempre fui da opinião de ficar”, afirma. Um dia, Deusdete Ferreira percorreu três quilômetros de mata fechada para levar o café da tarde aos peões. Durante o trajeto, se deparou com uma peroba enorme caída no meio de um estreito carreador. Receoso, olhou para um lado e para o outro.
Ao longe, viu uma onça e ficou tão desesperado que gritou, jogou tudo no chão e saiu correndo. Quando chegou ao galpão, teve de aguentar as broncas do fiscal e dos peões. “E olha que onça não pegava ninguém cara a cara. Ela se escondia e atacava de surpresa”, comenta Deusdete rindo e lembrando que como peão trabalhou na abertura de muitas estradas de três a cinco quilômetros de extensão nas fazendas. Naquele tempo as ferramentas mais usadas eram o machado e o traçador.
Cerqueira também derrubou muitas árvores de cedro e canjerana usadas na construção de residências, tulhas e casinhas para manter a sustentação dos pés de café. O salário baixo não o esmorecia. Em pouco tempo foi promovido a subempreiteiro, responsável pela contratação e fiscalização do trabalho de 10 a 20 peões. “Buscava gente nas pensões de Paranavaí e levava pro mato. Fazia o trabalho de peão e ganhava um pouco mais pra cuidar do serviço da turma e cozinhar. O trabalho se estendia por até 12 horas”, enfatiza.
Nos tempos da colonização de Paranavaí, eram poucos os que se arriscavam a trabalhar como subempreiteiro, já que havia peões brutos. Entre os mais valentes, a moda da época era o bigode com as pontas mirando os olhos. Armados e bravos, não gostavam de lidar com os teimosos, nome dado aos empreiteiros sem experiência profissional, como era o caso de Cerqueira.
Uma vez, trabalhando na Fazenda 5R, o patrão atrasou o pagamento e Deusdete teve de vender o próprio encerado para pagar os peões. “O cara poderia até te matar se você não pagasse. Então era preciso se virar”, explica o pioneiro que também complementava a renda comercializando leite, leite condensado e fumo.
A situação só melhorou quando Cerqueira recebeu uma proposta do proprietário da Pensão Jacobina, onde vivia há um bom tempo. Sem condições de assumir a derrubada de 200 alqueires de mata em uma propriedade em Mirador, que pertencia ao diretor da Mercedes-Benz, o homem ofereceu a Deusdete a oportunidade de coordenar metade do trabalho, desde que ele recebesse uma parte dos lucros.
Deu tudo certo e plantaram 200 mil pés de café. A força de vontade de Cerqueira era tão grande que quando faltava comida ele saía de Mirador a pé para fazer compras em Paranavaí. A vantagem era que o proprietário do armazém mandava entregar tudo de caminhão. “Tinha gente que derrubava o mato e deixava margens de quiçaça de pelo menos 10 alqueires, o que era um problema na hora do plantio de café. Nesses casos os fazendeiros geralmente dispensavam ou davam preferência para outras pessoas”, pontua.
Quando o trabalho na mata durava meses, era normal o empreiteiro montar um barracão para vender alimentos aos peões, principalmente arroz, feijão, jabá e peixe. Deusdete percebeu que a maioria tinha o costume de comprar pinga, beber e abandonar a garrafa. Então ele as recolhia e levava para a cidade. “Eu percorria dois quilômetros a pé para trocar por garrafas cheias. Daí à noite, como eu sabia que os peões não tinham mais pinga pra beber durante o jogo de baralho, eu aparecia com as garrafas e vendia os copinhos de pinga”, garante.
Após as noitadas de bebida e jogatina, os peões se amontoavam em um barracão e dormiam sobre camas de palhas de milho e sacos que antes serviram para o armazenamento de carne seca. Quando esfriava, faziam fogueira, mas tinham o cuidado de isolá-la para evitar incêndio. Aos domingos, Deusdete lucrava de outra forma. Enquanto os demais relaxavam ou jogavam, ele ia até uma mina, onde lavava as roupas dos peões sobre uma pedra. Só entregava à noite. “Como fazia frio, ninguém reclamava e pagava certinho”, assegura.
Em 1958, Cerqueira deixou o trabalho na mata e usou as economias para comprar o Bar Continental, um dos pontos preferidos da população mais humilde de Paranavaí. O estabelecimento antes pertencia a uma família italiana que veio do Rio de Janeiro. No local o movimento era constante. Além do espaço amplo e das dez mesas de sinuca, a freguesia era atraída por cerveja, whisky, gim, Fogo Paulista, Cinzano, conhaque de alcatrão São João da Barra, cachaça Jurubeba, pinga Tatuzinho, refrigerantes Garoto, cigarros e charutos. “Eu vendia dois tipos de cerveja. Só que tinha uma que ninguém queria, então quando todo mundo ficava bêbado eu tirava o rótulo da cerveja boa e colocava na outra. Aí bebiam do mesmo jeito”, confidencia gargalhando.
Anos depois, Deusdete viveu uma situação constrangedora. Um dia houve briga e troca de tiros em um bar ao lado do Bar Continental e o chamaram na delegacia para se explicar sobre o acontecido. “Falei que não foi no meu bar e ainda provei. Não deram a mínima para o que falei porque a confusão tinha acontecido em um local frequentado pelos ricos e poderosos de Paranavaí. Queriam me culpar, já que eu não era ninguém na cidade”, reclama.
Com a experiência de quem se tornou comerciante na Bahia quando era criança, Deusdete ganhou dinheiro o suficiente para comprar uma casa na Rua Pernambuco e investir em pequenas propriedades rurais. “Adquiri uma chácara de um português atrás do 8º Batalhão da Polícia Militar. Depois vendi e comprei cinco alqueires do pioneiro Severino Colombelli perto da Fafipa [Faculdade Estadual de Educação, Ciências e Letras de Paranavaí]”, assinala.
Cerqueira viu uma boa oportunidade quando o governo começou a pagar para que os produtores rurais cortassem seus pés de café. Numa época em que as terras eram desvalorizadas, Deusdete comprou propriedades cheias de café, derrubou os cafezais e, seguindo a determinação governamental, plantou outra cultura por dois anos. “Quando ficava pronta, eu vendia pro vizinho. Fui indo, comprando e vendendo, até que consegui adquirir uma área de mais de 35 alqueires. Vendi também e comprei outra na Água da Cobra, perto do finado Luiz Lorenzetti”, cita.
Mais tarde, com a ajuda de Raul Piccinin, comprou uma fazenda de café de pouco mais de 100 alqueires em Santa Isabel do Ivaí. O imóvel pertencia a um senhor árabe de Londrina, conhecido como “Seu Nagibe”. Em 1965, Deusdete vendeu o Bar Continental, adquirido com o dinheiro que ganhou trabalhando na fazenda em Mirador. “Não cheguei e comprei. Continuei trabalhando até quitar o valor total. Falava-se em reserva de domínio. Depois vendi a minha metade do bar para um sócio”, revela e informa que o bar abria às 8h e fechava por volta da 1h.
Mais tarde, investiu em uma fábrica de malas de duratex na Rua Santa Catarina, no cruzamento com a Rua Souza Naves. Além de 10 funcionários, tinha também um caminhão. Deusdete vendia tantas malas que precisava viajar de avião com frequência para São Paulo, onde buscava matéria-prima na indústria de Paulo Maluf.
Em melhores condições financeiras, o pioneiro adquiriu a Fazenda Nova Marília, com 120 mil pés de café, de um fazendeiro árabe chamado Ney Jorge. Aproveitou que os bancos estavam oferecendo financiamento com juros baixos e investiu.
Deusdete e Raquel se casaram após um mês de namoro
Em 1960, depois de oito anos em Paranavaí, Deusdete Ferreira de Cerqueira foi para a Bahia rever a família. Desembarcou de avião em Feira de Santana e subiu em um caminhão pau de arara com destino a Angico, onde na infância já costumava participar da feira, vendendo galinha, fumo de corda, rapadura, leitoa e banana. “Vi uma mocinha e gostei muito dela. Fiquei na casa do primo João Soares e ela parava lá porque tinha comércio também. Então deu certo da gente namorar. Antes falei com a família dela. A mãe aceitou, até porque o pai da Raquel era afilhado do meu avô e nossas famílias moravam perto. Mas exigiu que eu ficasse lá. Eu disse que não porque estava recomeçando a vida no Paraná”, narra.
Após um mês de namoro, o vínculo de confiança entre os dois era tão forte que decidiram se casar na Bahia com a bênção das duas famílias. Deusdete tinha 30 anos e Raquel Reis, a primeira de uma família de 14 irmãos a sair da Bahia, tinha 18. “Vim pra um lugar completamente diferente, mas não foi muito difícil. Senti muita saudade da família. Fui me adaptando, construindo a vida, fazendo amizades. Gosto de Paranavaí. Lá eu morei 18 anos e aqui 55 anos, então aqui é a minha cidade. Meus filhos nasceram aqui e pretendo ficar aqui por toda a vida”, diz Raquel Reis de Cerqueira.
Deusdete declara que não seria quem é hoje se não fosse a companhia de Raquel. Segundo o pioneiro, a esposa só merece elogios. “O casamento me ajudou demais. Minha mulher me acompanhou desde o começo. Sofreu muito quando tínhamos filhos pequenos e íamos de um lugar para o outro na tentativa de melhorar de vida”, analisa.
“Única coisa que me deu prejuízo foi a política”
Ao receber o convite dos amigos para ser candidato a prefeito de Paranavaí em 2000, Deudete Ferreira de Cerqueira aceitou porque tinha o sonho de ver Paranavaí retomar o caminho do desenvolvimento que rendeu tanta popularidade ao município até o final da década de 1960. “Única coisa que me deu prejuízo foi a política. Você não vence uma eleição se não gastar. Banquei tudo do meu bolso. Gastei demais. É claro que ganhando R$ 4 mil por mês eu nunca iria recuperar isso”, admite.
Porém, o que desanimou mais Deusdete não foram os gastos com a campanha, mas sim o que veio depois. Sem grandes apoiadores, sentiu o peso da influência dos grupos políticos mais representativos de Paranavaí. Um deles interviu para que o município não recebesse recursos dos governos estadual e federal. “Paranavaí tinha R$ 3,5 milhões para receber. E só consegui fazer esse dinheiro chegar depois de muito tempo. Eu não tinha apoio. Dei R$ 1 milhão para a Santa Casa de Paranavaí e sobrou R$ 2,5 milhões. Foi o único recurso que recebi na minha gestão”, desabafa, acrescentando que a cidade tem uma história política marcada pela malandragem de grupos que agem como mafiosos.
A preocupação maior não era o futuro da cidade, mas sim atrapalhar o trabalho do poder público municipal. “Meu apoio era a minha família e o povo que acreditava em mim. Muita gente me defendeu, mas minha família sofreu muito por causa da exposição”, afirma Deusdete e revela que os opositores só não conseguiram prejudicar sua imagem porque ele não devia nada a ninguém. De 2001 a 2004, o então prefeito teve de trabalhar no limite, contando principalmente com recursos municipais.
“Não fiz tudo que gostaria porque não havia muito dinheiro, mas pelo menos deixei para a população algumas escolas novas, reformei praças, ruas, avenidas, investi um pouco em saúde e nos pequenos empresários. Tenho orgulho de ter ajudado na criação de uma cooperativa de costura para mais de 600 donas de casa. O resultado foi bom, mas quando saí acabaram com a cooperativa”, lamenta.
Cerqueira relata que deu continuidade a vários projetos do prefeito anterior. No entanto, desabafa que desde que Paranavaí surgiu a cidade é castigada pela inveja entre prefeitos. É rara a preocupação de não sacrificar o progresso em benefício próprio. “Por que Paranavaí não cresceu tanto quanto os outros municípios? Tínhamos tudo nas mãos, mas aqueles que têm o poder sempre fizeram o possível para que a cidade ficasse para trás. Sabe por quê? Porque eles se beneficiam disso”, enfatiza.
Mesmo quando era prefeito, Deusdete Cerqueira teve de enfrentar o preconceito. Ouvia ofensas até nos corredores da prefeitura. “Sofri muito por causa da minha cor e por ter pouco estudo. Nunca deixei de passar por essa situação. Só que enfrentei tudo de cabeça erguida, ignorando quem me agredia. Não me arrependi de ser prefeito, mas o resultado não foi o esperado. Posso dizer que os políticos mais atrapalharam do que ajudaram no crescimento de Paranavaí. É uma cidade marcada por mais injustiça do que justiça”, avalia.
Saiba Mais
Deusdete Ferreira de Cerqueira nasceu no dia 13 de março de 1930.
Frases do pioneiro e ex-prefeito Deusdete Ferreira de Cerqueira
“Tudo que tenho eu devo a Paranavaí.”
“Prefeitura foi feita para ser tocada como uma empresa, um comércio. Não pode ser administrada com base na politicagem.”
“Peguei a prefeitura com uma dívida de R$ 2,7 milhões. Paguei tudo e não deixei nenhuma dívida quando saí.”
Lou Ferrigno, de vítima de bullying a campeão de fisiculturismo
Stand Tall, mais do que uma versão Pumping Iron do ítalo-americano
Embora muitos digam que o ex-fisiculturista e ator Lou Ferrigno foi ofuscado por muito tempo pelo também ator e ex-fisiculturista Arnold Schwarzenegger, a verdade é que o primeiro filme estrelado pela dupla, o documentário Pumping Iron, de 1977, de Robert Fiore e George Butler, serviu para alavancar ainda mais a carreira do ítalo-americano, mesmo que a película tenha se pautado mais na carreira e personalidade de Arnie.
Exemplos não faltam. Após o lançamento de Pumping Iron, Lou Ferrigno estrelou o filme The Incredible Hulk, seguido pela série homônima de sucesso que foi ao ar pela CBS até 1982. Depois, Ferrigno foi protagonista de The Incredible Hulk Returns, de 1988; The Trial of the Incredible Hulk, de 1989; e The Death of the Incredible Hulk, de 1990. Ainda trabalhando com a sétima arte, interpretou o mitológico Hércules em 1983 e 1984, além de Sinbad of the Seven Seas em 1989.
Dos anos 1990 para cá, o fisiculturista aposentado teve poucas participações no cinema e na TV. Os trabalhos mais populares incluem a voz do Hulk nos remakes mais recentes e muitas dublagens para os desenhos animados da Marvel. No Brasil, o filme Stand Tall, de 1996, do cineasta Mark Nalley, é desconhecido da maior parte do público aficionado por musculação e fisiculturismo.
Curiosamente, é o único que mostra quem é e quem foi o maior adversário de Arnold Schwarzenegger no antológico Mr. Olympia de 1975. Ainda assim, é preciso ressaltar que talvez por ser um docudrama com caráter de tributo ou homenagem, Stand Tall omite informações sobre o final da carreira de Ferrigno como bodybuilder, quando amargou em 1992 e 1993 as posições de 12º e 10º colocado.
O filme de Mark Nalley tem boa estrutura, em acordo com uma proposição humanista que visa despertar a identificação do público com um dos maiores ícones da era de ouro do bodybuilding. Na obra, Louis Jude Ferrigno é uma criança do Brooklyn, em Nova York, que aos três anos é diagnosticada com surdez causada por uma infecção. Restando apenas 15% da audição, o jovem Ferrigno cresce retraído. As cenas sobre a infância difícil do atleta são apresentadas em forma de vídeos caseiros registrados no final dos anos 1950.
Vítima constante de bullying, apenas anos mais tarde consegue ouvir e falar com clareza. São emocionantes as cenas de Lou contando como foi ridicularizado na infância por ser um garoto magricela surdo-mudo. Mas tudo começa a mudar aos 13 anos, quando descobre o fisiculturismo como forma de superar a timidez e a baixa autoestima. O amor pela modalidade é quase instantâneo, tanto que Ferrigno trabalhava como engraxate para comprar revistas de musculação.
Um dos momentos mais inesquecíveis de Stand Tall surge quando o ex-fisiculturista lembra dos episódios em que disse aos seus clientes que se tornaria um campeão mundial de bodybuilding. A narrativa vigorosa e a construção clara e objetiva do filme conquistam a atenção do espectador. Mesmo quem não gosta de musculação ou fisiculturismo começa a entender e respeitar a complexidade e o rigor da construção corporal, seja em nível competitivo ou não.
O filme que conta a história de superação do ítalo-americano também tem algumas semelhanças com Pumping Iron. No clássico de 1977 o adversário que o protagonista Arnold Schwarzenegger precisa superar é Lou. Já em Stand Tall, Ferrigno, com mais de 40 anos, tem de vencer o veterano Boyer Coe. A obra que levou um ano e meio para ser produzida tem bom material de pesquisa e apresenta entrevistas com familiares e amigos de Lou, além de Arnold, o maior ídolo do fisiculturismo.
Nalley quase desistiu de ter Schwarzenegger no filme por causa das dificuldades em convencê-lo a participar. Para o bem do cineasta, as regulares insistências garantiram um final feliz. Em troca da participação, Arnie pediu apenas uma caixa de charutos. “Sabíamos como seria determinante para o filme ter alguém famoso como o Arnold”, diz o cineasta Mark Nalley que precisou se desdobrar com um orçamento modesto de 200 mil dólares, considerado minúsculo para os padrões estadunidenses. Uma das poucas queixas sobre o filme diz respeito a iluminação. Há algumas cenas escuras que denunciam uma certa falta de cuidado e de recursos da produção.
Felizmente, nada disso é o suficiente para ofuscar o brilho do documentário sobre um dos atletas mais importantes da história do fisiculturismo. Se tratando de estatura física, Ferrigno, que tinha 1,96m e 130 quilos, ultrapassou os padrões do bodybuilding profissional e conquistou dois títulos de Mr. Universo em 1973 e 1974, além de uma terceira colocação no Mr. Olympia de 1975. Em síntese, Stand Tall é um filme feito para todos os seres humanos, amantes ou não de atividade física resistida. “Ele tinha tudo. Boas costas, bons ombros e sabia como posar”, comenta um admirador do atleta no filme.
Fazendo a diferença em Ruanda
Violette Mutegwamaso, a mulher que superou uma guerra civil e o brutal assassinato do marido
Em 1994, milícias armadas entraram em conflito em Ruanda, na região dos Grandes Lagos da África. Pessoas de etnias hutu e tutsi tornaram-se inimigos mortais, se enfrentando pelas ruas à luz do dia. A motivação foi o desvio de recursos que deveriam ser utilizados para a reestruturação do país. Com a expansão do caos, iniciado na capital Kigali, 250 mil pessoas foram mortas. Ainda assim, muita gente acreditava que estava livre das zonas de guerra civil. Um exemplo era a dona de casa Violette Mutegwamaso que cuidava dos filhos enquanto o marido trabalhava na capital, a três horas de distância de Gahini, a pacata aldeia onde a família sempre viveu.
“Quando percebi que a guerra já estava ao lado, peguei meus dois filhos nos braços e fugi para a igreja mais próxima. Pensei que encontraria um santuário de paz. Na realidade, entrei em um pesadelo”, lembra. Atacados por uma milícia munida de facões e armas de fogo, muitos moradores de Gahini caíram mortos dentro da igreja. Para sobreviver, Violette deitou-se em um corredor e lambuzou os corpos dos filhos e o próprio com sangue para evitar que os agressores os matassem.
“Nos escondemos entre os cadáveres e nos fingimos de mortos. Ficamos naquela igreja por uma semana até que o exército ruandense apareceu para libertar a área”, conta. No episódio, sobreviveram apenas 20 pessoas dentre os mais de 700 escondidos no templo religioso. O marido de Violette não teve a mesma sorte. Foi brutalmente assassinado quando retornava para casa depois de mais um dia de trabalho.
A dona de casa se viu obrigada a assumir sozinha a criação do filho Eric, de cinco anos, e Angelique, de quatro anos. Demonstrando muita força, Violette ainda cuidou de um órfão que perdeu a família inteira na guerra. “Não tive quase apoio, mas tentei reconstruir a vida cultivando as terras de outras pessoas. O que ganhava não dava para alimentar a mim e meus filhos. Também não conseguia pagar a escola, comprar remédios e roupas. Foi muito difícil”, admite em tom emocionado.
Dez anos depois, Violette ouviu falar de um programa internacional de patrocínio para mulheres. Sem nada a perder, se matriculou e ganhou uma ajuda da estadunidense Liz Hammer, uma mãe de dois filhos comprometida em repassar 30 dólares por mês ao longo de um ano. A quantia que partia de Boston pode parecer ínfima para muita gente, mas Violette soube fazer a diferença com tão pouco.
Usou o dinheiro para investir em cerveja de sorgo. “Cheguei a produzir uma tonelada e meia do cereal. Ainda assim, a demanda era tão grande que tive de comprar sorgo de outros agricultores”, explica. De modo artesanal, Violette Mutegwamaso preparava de 150 a 180 litros de cerveja a cada três dias, lucrando cerca de 50 dólares por lote.
Com o dinheiro da bebida, investiu no plantio de feijão. Além de garantir alimento para a família, também conquistou uma nova fonte de renda. “Se o preço está alto, vendo o feijão para os vizinhos. Já quando cai, repasso no atacado para lojas e restaurantes”, revela. Enquanto a maior parte da população de Ruanda tinha uma renda mensal familiar de 260 dólares, segundo dados do Banco Mundial, Violette, superando todas as expectativas, já conseguia faturar 1,8 mil dólares com a safra de feijão.
Mais tarde, ampliou ainda mais os negócios e contratou trabalhadoras locais para atuar no campo e no gerenciamento das atividades. Preocupada com a comunidade, fez um empréstimo bancário para instalar uma tubulação de água na aldeia, evitando que as mulheres tivessem de andar por horas até achar uma torneira. “Vivemos em um país onde apenas 20% das pessoas tem acesso à água potável, então muitas mulheres são obrigadas a carregar jarros pesados por longas distâncias”, desabafa.
Hoje, Violette Mutegwamaso é presidente de uma cooperativa de artesanato. Dentre os produtos mais populares está a cesta de paz que faz parte da cultura ruandense e normalmente é comprada para presentear a noiva e o noivo no dia do casamento. “Também vendemos bastante cerâmica e artigos de crochê. Fico feliz por reunir na mesma cooperativa mulheres de origem hutu, tutsi e twa. Elas sentam lado a lado para tecer fibras de sisal com técnicas tradicionais de desenho”, afirma Violette.
A cooperativa tirou da miséria muitas vítimas do genocídio e até mesmo pessoas que assumiram a autoria dos mais chocantes homicídios cometidos durante a Guerra Civil de Ruanda. “Se perdoei o assassino do meu marido por que não aceitaria aqueles que cometeram outros crimes?”, questiona, incitando reflexão.
A superação de Stevie Zee
O fisiculturista com paralisia cerebral que se tornou um exemplo
O estadunidense Stevie Zee estava completamente perdido em 1992. Reprovado na faculdade comunitária e incapaz de encontrar trabalho, o rapaz que sofre de paralisia cerebral (PC) decidiu fazer algo para evitar a depressão e a autopiedade.
Em dezembro do mesmo ano, Stevie foi até um ginásio de musculação em Portland, Oregon, sua cidade natal, onde conheceu o fitness trainer e fisiculturista heavyweight David Hughes. “Ele apareceu para uma sessão de treinamento e logo me disse que queria se tornar um bodybuilder. Me surpreendi com a decisão e me empenhei em ajudá-lo”, conta Hughes que instruiu o rapaz no treinamento com pesos e o ensinou muito sobre nutrição esportiva.
Stevie queria competir no bodybuilding, seguindo o mesmo caminho de David. Porém as limitações impostas pela paralisia cerebral fizeram com que o sonho parecesse distante e utópico. Em função da doença, os músculos de Zee costumavam ser encurtados, rígidos e enfraquecidos, o que tornava tudo mais difícil. Com frequência, o controle dos músculos era interrompido por movimentos espontâneos e indesejados, além dos problemas de equilíbrio, instabilidade em movimentar pés, mãos e até falar. Em síntese, Stevie sofre de paralisia cerebral mista, o tipo mais severo.
“Eu tinha dificuldade em aceitar a doença, mas agora eu sei que eu a tenho para inspirar outros a se tornarem pessoas melhores, a tirarem o máximo proveito da vida, independente de tudo”, afirma Zee. Segundo David Hughes, Stevie é mais motivado que a maioria das pessoas. Apesar das dificuldades, mora sozinho, cozinha, dirige e faz as próprias compras.
A primeira recompensa do atleta veio em junho de 2003, quando surgiu um novo tratamento para paralisia cerebral. Zee passou por um procedimento em que foi instalado um mecanismo especial na parede abdominal, minimizando os extremos espamos musculares que o fizeram sofrer por tantos anos. Em 2006, o fisiculturista recebeu um prêmio da revista MuscleMag no Los Angeles Championships, onde foi aplaudido de pé por centenas de pessoas, entre celebridades do bodybuilding.
“Ele teve a coragem de deixar Portland e se mudar para Hollywood. Tudo isso, para realizar seus sonhos. É como se ele fosse um personagem de uma história em quadrinhos”, comenta o lendário ex-fisiculturista Rich Gaspari, que desde 2008 patrocina Stevie Zee. Para entender a história de superação do atleta é preciso ter em mente que para quem sofre de paralisia cerebral é complicado até mesmo caminhar e realizar pequenas tarefas diárias. “Imagine então fazer musculação? Há milhares de limitações que o dizem para não ir por esse caminho. Isso mostra o quanto ele é um vencedor”, diz David Hughes.
O que também chama atenção sobre Stevie Zee é a sua capacidade em seguir dietas restritivas, outro ponto considerado impossível para quem sofre de PC. Ao longo de 20 anos, o atleta não apenas ganhou em condicionamento e qualidade de vida, minimizando os problemas com a doença, como se tornou referência de novos estudos sobre a medicina da encefalopatia crônica não progressiva nos Estados Unidos. “Devo tudo isso a David Hughes que foi quem me transformou em uma pessoa totalmente diferente”, declara Stevie emocionado. Vale lembrar que o fisiculturista é tema do documentário Hang On To Your Dreams, lançado em 2008.
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O poder transformador da musculação
Facing Goliath narra a história de superação do fisiculturista canadense Ray Taylor
Lançado em 2006, o documentário Facing Goliath, do cineasta canadense Kirk Pennell, mostra como o fisiculturista e ator Sebastian MacLean ajudou Ray Taylor, um amigo deficiente visual e obeso, a transformar a própria vida aos 50 anos. Com o apoio de MacLean, Taylor descobre na musculação uma nova realização pessoal e decide superar muitos desafios para se tornar um fisiculturista.
Certo dia, Ray Taylor recebe a notícia de que está perdendo a visão do único olho com o qual ainda enxerga. Acreditando que será muito difícil evitar a depressão, Taylor liga para o amigo Sebastian MacLean e pergunta se a melhora da condição física pode afastá-lo dos problemas psicológicos e emocionais. Então o fisiculturista o desafia a participar de um programa de transformação corporal com duração de 12 semanas. “Aceitei o desafio e consegui perder 40 libras [pouco mais de 18 quilos]. Me superei porque acredito que não existe limites quando se quer alcançar um objetivo”, diz Ray.
No filme, MacLean, que competiu como fisiculturista por mais de dez anos ininterruptos, é contagiado pelo empenho do amigo que toma a decisão de se tornar um bodybuilder. “Com a parceria de Ray, me senti até mais animado para competir”, conta o experiente fisiculturista que coleciona prêmios e já foi apontado como uma das revelações do fisiculturismo natural canadense. Em várias oportunidades, chegou a ser destaque da revista Muscle Mag, especializada em bodybuilding.
Sebastian é o responsável por introduzir Ray no universo do fisiculturismo clássico, onde a relação com as origens do esporte e a busca pela excelência da condição física remetem aos grandes atletas do passado, principalmente da Era de Ouro. É uma filosofia de vida em que a forma harmoniosa se sobressai ao físico exagerado e volumoso. Com MacLean, Taylor aprende que o bodybuilding tradicional tem como alicerce o equilíbrio.
Ray se apega a musculação como uma razão existencial. Um ano depois, mesmo ciente de que faltam apenas alguns meses antes de ficar cego, Taylor intensifica o treinamento. Durante o campeonato nacional, o atleta chega a chamar mais atenção do que o treinador. Por onde passa, independente de resultados, Ray conquista novos fãs e é aplaudido a cada pose. “Eu era completamente sedentário. Ninguém nunca imaginaria que isso aconteceria comigo”, comenta Taylor que sempre se emociona ao final das competições.
Facing Goliath não é apenas um filme sobre a superação de um homem, mas também uma história de amizade, cumplicidade e apoio. Logo no início do documentário, Sebastian ajuda Ray, um amigo em dificuldade. Depois, Taylor quem apoia MacLean a se tornar um fisiculturista ainda melhor. E juntos, chegam ao topo, participando dos mesmos campeonatos e partilhando novas experiências. “Desde o princípio, minha intenção era mostrar que o coração é o músculo mais poderoso do corpo humano. Sebastian e Ray são as provas disso. Se mantêm fortes e unidos até nas situações mais difíceis”, destaca o cineasta Kirk Pennell.
Curiosidade
O filme Facing Goliath, resultado de uma parceria entre os canadenses Kirk Pennell e Sebastian MacLean, já foi exibido em pelo menos 116 países.