David Arioch – Jornalismo Cultural

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Um final de tarde agonizante no Castelo de Grayskull

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Uma camada de ferrugem que a cobria esfarelou sobre o meu rosto como chuva suja de óxido nítrico

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Smith Machine, modelo usado no Castelo de Grayskull (Foto: Reprodução)

Em uma época da minha vida, me empolguei tanto com a musculação que comecei a treinar em duas academias. Ingênuo, eu acreditava que teria melhores resultados dessa forma. Então, sempre no final de semana, eu atravessava a cidade para me exercitar em um desses ginásios precários, onde falta tudo, menos a vontade de levantar pesos.

O cenário era desagradável para pessoas acostumadas com academias mais bem equipadas ou visualmente atrativas, o que não importava muito para mim, já que eu estava ali para complementar a rotina. A manutenção era inexistente, a julgar pelo aspecto enferrujado de anilhas, aparelhos descascados e travas de segurança tão moles que pareciam capazes de saltar sobre meus olhos ao toque de um dedo.

Era difícil não pensar nos riscos de ver pernas esmagadas ou decepadas tão logo a “guilhotina”, apelido que dei ao leg press, descesse na sua contumaz ferocidade, quando o mais descuidado dos usuários ousasse extrapolar nas repetições da última série. Talvez o aparelho até sonhasse com esse momento para compensar anos de negligência enquanto rangia mais do que o piso que a porta pungia.

Ao meu redor, nunca havia muita gente, e eu agradecia, calado e contente. Gostava de treinar sozinho, no silêncio da minha mente ou ouvindo uma playlist pungente. E minha fisionomia austera, que pouco aspirava à socialização, ajudava bastante nesse sentido. Nada contra ninguém. Na realidade, sou um sujeito bem educado. Eu apenas tinha um motivo específico e bem definido para estar ali.

Um dia, quando a outra academia fechou no meio da semana, recorri mais uma vez ao “Castelo de Grayskull”, apelido do ginásio sucateado. Era um final de tarde, e assim que me aproximei da entrada, alguns caras que acabaram de treinar saíram às ruas sem camiseta. Um deles fazia pose e estufava o peito enquanto o outro guardava dentro do bolso uma fitinha usada para medir o próprio braço.

“Olha como tô ficando fibrado! É nóis, mano!”, berrou o terceiro, ajeitando o par de óculos escuros, inclinando o corpo à direita e observando o próprio reflexo no retrovisor de um carro. O quarto amigo sacolejava uma coqueteleira e exibia um par de luvas que reluzia mais do que colete refletivo.

Por descuido, tive que retornar ao carro para buscar minha toalha. Nisso, passaram pelo menos quatro minutos, e o rapaz continuava sacudindo a garrafinha. Pensei até que pudesse ser um novo exercício para tratamento de artrite ou um tipo de powerball em forma de squeeze. Tudo bem! Entrei na academia, cumprimentei alguém na recepção e caminhei até um aparelho.

Era dia de agachamento invertido. Coloquei os fones no ouvido e as anilhas na barra. Num primeiro olhar percebi que aquele aparelho era menor do que o da academia onde eu treinava com mais frequência. “Ok! É só pegar leve e compensar a intensidade com mais séries e repetições”, concluí.

Deitei no chão, posicionei os pés contra a barra e fiz a primeira série. Antes do final, ela envergou e começou a estalar. Julguei que fosse normal e preferi me arriscar. Na segunda série, a barra travou na subida da última repetição. E, parar piorar, no mesmo instante um senhor com um crônico problema de flatulência, que reavivou lembranças da minha visita ao aterro sanitário, encostou na máquina, com as costas à minha esquerda, e seguiu papeando com uma moça.

“Mas você nem precisa fazer musculação. Tá maravilhosa!”, comentou o homem escorando o braço sobre as anilhas do aparelho, simulando um tipo de apoio. Ele forçava a barra para baixo enquanto eu tentava empurrá-la para cima. A música na academia estava tão alta que nem o sujeito nem a garota ouviam minhas reclamações. Me tornei invisível.

Quando comecei a roxear, com o aparelho repleto de anilhas dos dois lados, e a barra subindo apenas do lado esquerdo, tentei forçar a elevação mudando a posição dos calcanhares. Em vez subir, a barra apenas estremeceu e uma camada de ferrugem que a cobria esfarelou sobre o meu rosto como chuva suja de óxido nítrico.

Não consegui evitar que ciscos entrassem em meus olhos. Também franzi a testa e fiz um esgar de desgosto quando senti o pó de ferrugem nos lábios. Sem enxergar nada e tentando terminar a última repetição, ouvi o homem dizendo para a moça: “Nossa! Cruzes! Que mau cheiro! Hoooorrrrríííííveeeel! Vamos sair daqui! Tem gente que não respeita ninguém!”

Sem ver nada e agonizando no chão, com as pernas trêmulas e os olhos fechados, fiquei tão irado que aproximei um pouco mais os dois pés e empurrei a barra numa intempestiva e derradeira lufada de força. Assim que ela se prendeu ao suporte, me libertei. A música acabou e o silêncio começou.

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Acidente numa noite de outono   

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As únicas luzes eram dos faróis danificados que iluminavam algo que eu não enxergava

Avenida Parigot de Souza, onde meu carro foi atingido e perdi o controle da direção (Foto: David Arioch)

Avenida Parigot de Souza, onde meu carro foi atingido por uma caminhonete preta (Foto: David Arioch)

Em junho de 2013, eu retornava para casa quando uma caminhonete preta em alta velocidade bateu no para-choque traseiro do meu carro na Avenida Parigot de Souza. Com o impacto violento e o som dos estilhaços, levei um baita susto. Só tive tempo de me esforçar para tentar manter o controle da direção, evitando que o veículo se chocasse contra uma carreta estacionada a poucos metros da entrada da Rua John Kennedy.

Depois do acidente, fiquei com a impressão de que bati em uma caçamba. Olhei para o meu irmão e perguntei se ele estava bem. Como ninguém tinha se machucado, desci do carro e não consegui entender o que aconteceu. Era como se não existisse mais nada diante de mim além da noite tenebrosa de outono. As únicas luzes eram dos faróis danificados que iluminavam algo que eu, desorientado, não enxergava naquele momento por causa da neurastenia.

Não vi casas, muros, pessoas, animais, nada. Só reconheci o som da minha própria mente, mais ruidosa do que nunca. Enleado, não me dei conta do estado do meu carro. Na esquina, a caminhonete continuava parada e dentro dela vi somente uma sombra sob o vidro escuro quase fechado. Me senti muito mal e, rendido a um desespero progressivo, notei meu corpo ligeiramente alheio à minha mente. Com pernas cambaleantes, voltei para o carro. Então meu irmão gritou que o motorista da picape fugiu. “Vamos atrás dele, David! Ele vai fugir!”, disse.

Liguei a chave do carro com a mão trêmula. Atravessei mais quatro quarteirões da Parigot de Souza quando a caminhonete a mais de 100 quilômetros por hora desapareceu no horizonte da Avenida Tancredo Neves. Com a visão turva, sem qualquer possibilidade de ver a placa, parei o carro ao final da Parigot, desci e levei às mãos ao rosto que ardia como se eu tivesse chocado a minha própria face contra o asfalto.

Meus sentimentos não estavam claros – tristeza, desalento e descrença no que vivi. Eu sentia tudo e ao mesmo tempo nada. Havia um vazio que me queimava por dentro como se meu interior fosse habitado pela mais excruciante das úlceras. “Será que estou acordado?”, pensei e pisquei com força três ou quatro vezes antes de entrar no meu carro novo ainda sem placa, comprado uma semana antes. Recebi algumas propostas de seguro na concessionária e fiquei de decidir qual escolheria no dia seguinte. Era tarde demais.

Sem música, voltei para casa ouvindo o som estrepitoso do veículo. Era agonizante, e o barulho se intensificava a cada quarteirão como panelas e talheres pendurados que balouçam com a incidência do vento. Meus olhos se encheram de lágrimas e o cheirinho de novo se desvaneceu. Dezenas de curiosos a pé e dentro de automóveis olhavam com atenção, na tentativa de interpretar o acontecido e talvez propagar suas versões de predição.

Chegando em casa, abri o portão e coloquei o carro para dentro. Não queria que vizinhos e passantes se aproximassem porque provavelmente multiplicariam boatos – a história mudaria de acordo com o anseio do narrador. Na garagem, vi como ele estava avariado, mais danificado do que eu pensava. Enquanto eu caminhava ao redor do carro, tentava entender por que o motorista da caminhonete fugiu e não assumiu a responsabilidade pela batida. Aquilo era o pior de tudo.

“Como ele conseguiu assistir tudo e ir embora como se nada tivesse acontecido? Que tipo de consciência uma pessoa assim pode ter? Será que é possível dormir bem? Talvez eu esteja enganado e ele me procure amanhã. Preciso ter calma…”, inferi. Em poucos minutos, ouvi vozes em frente ao Corpo de Bombeiros, inclusive uma referência à batida no cruzamento da Avenida Parigot de Souza com a Rua John Kennedy. Fui até lá. Havia bombeiros e outras pessoas.

Um dos homens disse que bati no carro dele e fugi. Notei olhares repreensíveis. Entre voz remansosa e agitada, tentei explicar que fui atingido por uma caminhonete e, em meio à escuridão, quando meu irmão mostrou que o responsável pelo acidente fugia, só pensei em ir atrás dele. Não imaginei que tivesse atingido outro carro. Por causa do impacto seco que não visualizei, achei que fosse uma caçamba.

E, assim como qualquer outra pessoa motivada pelo desespero, tentei anotar pelo menos a placa do veículo do causador. Não consegui. Ele saiu ileso e só quem me conhecia acreditou na minha história. Apesar de tudo, concordei em ir com o proprietário do outro carro até o 8º Batalhão da Polícia Militar na manhã do dia seguinte registrar o boletim de ocorrência.

Contei e escrevi exatamente o que vivi. No caso dele, não sei qual foi sua versão. Porém, só eu, meu irmão e o motorista da caminhonete estávamos naquela rua no momento do acidente. O carro atingido estava estacionado na rua. Não havia mais ninguém por perto. Retornei ao local na mesma manhã para avaliar seu prejuízo e levei um funileiro que eu considerava de confiança para fazer o orçamento.

Na primeira noite, acordei de madrugada e fui até a garagem me certificar dos danos. Sim! Era tudo verdade! Tive pesadelos por algumas noites. E envolviam situações em que eu tentava me aproximar da caminhonete preta e ela se desvanecia como se fosse a própria neblina arredia da madrugada caliginosa.

Meu coração palpitava com ferocidade conforme a picape se distanciava. Num desses rompantes oníricos, a picape se entranhou nas profundezas da terra e o asfalto se fechou impedindo a minha entrada. Outra vez minha imaginação fez uma associação com Christine, O Carro Assassino, de John Carpenter.

Passei duas semanas em vão tentando localizar a caminhonete. Percorri mais de 20 funilarias, pedi ajuda de amigos. Nada adiantou. Recorri até ao sistema de monitoramento de câmeras da prefeitura. Infelizmente, cobria somente a região central.

Aceitei a minha derrota e desisti. Como precisei de um bom tempo até reunir o dinheiro para custear o conserto do outro carro atingido na batida, o proprietário ficou impaciente, achou que eu não pagaria e recorreu a um advogado. Um dia, recebi uma proposta de acordo de um escritório de advocacia.

E o que mais me chamou a atenção era que lá constava que atingi seu carro enquanto eu disputava racha com outro veículo. Só consegui sentir um misto de tristeza e constrangimento, tanto que tive de reler três vezes para crer. Eles acusavam alguém com 29 anos, que nunca recebeu nenhuma multa por excesso de velocidade, de ser participante de rachas.

E para piorar, eu soube por meio de parentes que alguns de seus familiares estavam espalhando calúnias sobre mim. Ok. Não quis checar a veracidade disso. Somente lamentei e logo deixei de me importar. Dentro do prazo que me ofereceram, efetuei a transferência do dinheiro e evitei falar abertamente sobre o assunto com outras pessoas. Quando questionado, parei de me justificar e deixei cada um com suas interpretações. Afinal, minha consciência é a minha, não a dos outros.

Do motorista da caminhonete, eu jamais soube coisa alguma. Só imaginei como deve ser horrível conviver com a preocupação de que sempre que algum carro igual ao meu se aproximar, ele há de suspeitar que eu esteja lá dentro e, no seu ideário desconhecido, o culpando pelo acontecido. E quem garante que o causador do acidente não seja um conhecido?

A experiência não foi totalmente ruim. Endossei a crença do que eu não gostaria de ser ou fazer com os outros. Acredito que se o dinheiro se tornar mais importante do que a minha capacidade de empatia, provavelmente deixo de ser quem sou, perdendo a minha identidade e tornando-me um refém da empáfia.

E fui colocado à prova no ano seguinte. Em novembro de 2014, eu estava em frente a um mercado quando um motorista bateu à esquerda do meu carro e seguiu ziguezagueando pela rua. Quando vi o amassado pelo retrovisor, fui atrás dele. Sinalizei para que parasse e ele encostou o seu Corcel II bem deteriorado, com o escapamento arrastando no asfalto.

Desci e caminhei em sua direção. Embriagado, o sujeito mal falava. Sua esposa também desceu e expliquei que ele bateu no meu carro. Constrangida, a mulher se desculpou enquanto o marido fazia caretas, ria e tamborilava as mãos sobre o capô do carro. Ele parecia não se importar com a situação. No banco de trás, uma garotinha de tranças, com três ou quatro anos, assistia tudo em silêncio, segurando uma bonequinha inteiriça de plástico duro, dessas mais baratas.

A esposa do motorista me deu o número do seu telefone e implorou para não chamar a Polícia Militar. Na realidade, eu nem tinha essa intenção. Ela sugeriu que eu entrasse em contato para passar o orçamento do conserto. Antes de ir embora, perguntei de onde eles eram e o que faziam. “A gente mora e trabalha na roça dum homi aí, ‘samo lavrador’. Tamu ino visita o túmulo da minha mãe. Pedi pra ele não beber, mas é teimoso demais. Cê pode ligar qualquer hora”, se justificou constrangida.

Nunca liguei. Só assisti o sujeito serpentando o carro e desaparecendo dois quarteirões abaixo quando a fumaça do escapamento ocultou o veículo. A sinuosidade de suas vidas talvez fosse representada pelos traços sulcados no rosto daquela mulher precocemente envelhecida. Meu prejuízo material nem de longe se aproximava do seu padecimento existencial.

Benílio, um tipo de Verlaine travestido de Rimbaud

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Como se feito de ironias, Benílio era visto por mim como um sujeito vivendo um paradoxo existencial

Benílio, que não aparece na foto, frequentava o Projeto Mais Cinema na Casa da Cultura (Foto: Amauri Martineli)

Benílio, que não aparece na foto, participava das discussões do Projeto Mais Cinema na Casa da Cultura (Foto: Amauri Martineli)

Já passei por situações muito incomuns e estranhas na minha vida e hoje vou relatar uma delas. Em 2008, comecei a coordenar um projeto de cinema na Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade. O público era modesto, mas bastante participativo, tanto que com o tempo estreitei contato com os frequentadores mais assíduos. Afinal, tínhamos em comum o amor pelo cinema e o interesse em discutir sobre o tema. Os encontros ocorriam às quartas-feiras, quando exibíamos algum filme fora do circuito comercial. Ao final, eu fazia uma análise e em seguida abria espaço para o público fazer perguntas. Foi assim até 2013. Era gratificante ver que até pessoas de outras cidades gostavam do projeto.

Em 2010, um rapaz a quem chamo de Benílio, para preservar a sua identidade, compareceu ao Mais Cinema. Na primeira vez em que participou, se mostrou bastante atento ao filme, a discussão e tudo que o cercava. Basicamente, um sujeito tranquilo, questionador, com bons argumentos e um humor sardônico. Algum tempo depois, Benílio começou a sumir e ressurgir durante as sessões de cinema. Parecia agitado e incomodado, o que contrastava com tudo que notei anteriormente sobre seu comportamento. A expressão ponderada, o olhar quiescente, foram substituídos por uma agitação frequente que o fazia se levantar da poltrona como se o estofamento estivesse dominado por percevejos.

Às vezes mudava de poltrona, até que sem observar lado algum abandonava o local com pressa, coçando os olhos com tanto vigor que mesmo ao longe dava a impressão de que o objetivo era esmagar o globo ocular com pontadas de dedo. Apesar disso, Benílio continuou frequentando o projeto. Sorridente e trocista, aparentava ser mais jovem do que realmente era. Andava sempre à vontade; de camiseta, bermuda e tênis ou sandálias. Mas ostentava um olhar amaneirado para compartilhar com pessoas de quem desgostava. Como se feito de ironias e de uma acidez vocabular inconstante, Benílio era visto por mim como um sujeito vivendo um paradoxo existencial.

Assim como na Gioconda de Da Vinci, seus olhos eram como uma antítese do sorriso, o que relevava mais intransparência e ardil do que insegurança. Com naturalidade dúbia, despertava reticência, principalmente sobre suas intenções e elucubrações durante as conversas. Jupiteriano, pouco se importava em transmitir clareza quando não simpatizava com alguém. Na realidade, fazia até questão de minar a conversa para afastar o interlocutor. Afeiçoado à arte clássica, ele desprezava com poucas ressalvas a arte contemporânea.

Por volta dos 20 anos, Benílio abandonou o curso de medicina da Universidade Federal do Paraná, mais tarde sendo relegado à pária por colegas, amigos e até familiares. Não se importava com as convenções sociais e as postulações de um mundo em que se deve viver sob a égide cronológica dos deveres. Parecia-lhe um despautério a ideia de que o ser humano deveria se limitar a estudar o suficiente para conseguir um bom trabalho, se casar, ter filhos, netos e falecer; assim não fazendo mais do que uma formiga obreira que percorre o chão nu transportando alimentos em horários estratégicos.

Seu nível de inteligência e cultura estava muito acima da média, o que era endossado por décadas mergulhado em livros, música e outras formas de arte. Um dia, me relatou alguns de seus conflitos amorosos com uma jovem com quem rompeu relacionamento de longa data. “Eis uma perda de tempo, uma relação que minora a alma em vez de alongá-la”, dizia. Em complemento e observação, citei que todo o nosso saber se reduz a aprender a renunciar nossa existência para podermos existir, segundo um aforismo de Goethe.

Ocasionalmente, Benílio me pedia carona na saída da Casa da Cultura. O deixei algumas vezes no cruzamento da Rua Manoel Ribas com a Avenida Paraná, no centro de Paranavaí. À época, eu dirigia ouvindo uma banda romena de rock chamada Travka que curiosamente falava de conflitos de identidade, do recrudescimento humano e da minoração da sensibilidade. Enfim, existentialisme par l’existentialisme.

Notei mais tarde que o rapaz era emocionalmente inconstante e por isso consumia com frequência medicamentos controlados. Solitário, tinha um pai aventureiro que há muito tempo se mudou para Rondônia. A mãe, com quem também pouco convivia, recebia visitas esporádicas do filho no Jardim Santos Dumont. Benílio morava sozinho em uma velha pensão na Rua Amapá, onde dividia o espaço com os mais diferentes personagens marginalizados. A maioria, pessoas que percorriam sob os ditames da penúria um chão de paralelepípedos tão maciço quanto a dor da invisibilidade velada por um sorriso frugal.

Um dia, eu corria pela Avenida Lázaro Vieira, no Jardim Progresso, quando ouvi Benílio me chamando. Olhei para o lado, ele sorriu e se aproximou de mim. Relatou que estava estudando Programação Neurolinguística (PNL) porque acreditava que as ações humanas são motivadas pelas próprias experiências, não pela realidade em si. “A mente e o corpo formam um sistema que a PNL ajuda a harmonizar, estimulando novas formas de pensar, sentir e agir. É um meio de minimizar conflitos entre o corpo e a mente”, comentou.

Na semana seguinte, após mais uma sessão do projeto Mais Cinema, Benílio pediu que eu o deixasse na Praça dos Pioneiros. Eram quase 23h, ele desceu do carro e começou a caminhar sozinho em torno da praça, sem se enfastiar com a solitude e a frágil iluminação precária e açafroada dos postes que atraíam somente insetos. Andou alguns metros e desapareceu no meio da quadra na outonal escuridão enevoada. Ignorava lados e direções, despreocupado em ser expulso da própria introspecção por sacomanos, ladrões, delinquentes ou vadios.

Como já fazia parte da minha rotina percorrer a cidade a trabalho, vez ou outra eu o via vagando sozinho pelos mais distantes pontos da área urbana. Nunca perguntei o que fazia. De qualquer modo, não era difícil perceber que Benílio não se importava em ignorar pessoas e deixar claro que sentia ojeriza pela superficialidade. Demonstrava grande amor por muitas conquistas humanas. Em contraponto, nutria indiferença e desgosto por tanta gente. Julgava o mundo como tornado doente e usava isso como justificativa da pontual ausência de empatia.

Uma vez, há alguns anos, eu e meu amigo Sobhi Abdallah fomos até a casa da mãe de Benílio, onde ele estava hospedado enquanto ela viajava. O objetivo era conversar sobre o roteiro e a pré-produção de um documentário baseado na vida de um eremita conhecido como Negão do Surucuá. Entre tereré e palavras, a tarde até que rendeu bem. Dias depois, Benílio me ligou avisando que precisávamos discutir novamente sobre o roteiro. Segundo ele, a reunião também havia sido acertada com Abdallah e meu amigo Amauri Martineli.

Quando cheguei ao local, estacionei o carro e estranhei que não havia nenhuma movimentação na varanda. De repente, Benílio gritou, pedindo que eu entrasse. Lá dentro, perguntei sobre os outros convidados e ele mentiu afirmando que eles não puderam comparecer. Após minutos, o rapaz se aproximou e me convidou para tomar café. Assim que coloquei os pés na soleira, perguntei o que ele estava preparando. “Não estou preparando nada. O café somos nós dois!”, comentou com naturalidade enquanto penetrava a massa escura de um pão preto com uma longa faca de cozinha. Em seguida, me observou atentamente os olhos, revelando um sorriso narcísico e pela primeira vez naturalmente mórbido.

Me afastei de Benílio, que não reconheci naquela figura tétrica e medonha. Contrariando todas as minhas possibilidades de reação diante de situação tão imprevisível e espantosa, expliquei tranquilamente que iria até o carro buscar o pré-roteiro do documentário. “Já volto. É rapidinho!”, argumentei sem titubear. Ele assentiu com a cabeça e continuou na cozinha. Caminhei a passos curtos e pesados, enojado, sentindo meu olhos queimando e minhas mãos suando. O enorme portão parecia a quilômetros de distância e suspeitei até que Benílio poderia tê-lo trancado. Então me preparei para saltá-lo se necessário. Questionei até se ele não teria deixado ao alcance das mãos uma arma de fogo, caso eu fugisse. Por bem, consegui abri-lo e lá fora senti o sol em todo seu esplendor me revigorando, me banhando com sua energia imperecível.

Por segundos, meus sentidos ficaram mais aguçados do que nunca. Ouvi cães latindo, mãe empurrando carrinho de bebê, homem estacionando carreta e duas crianças brincando de pular corda. Assim que entrei no carro, virei a chave e ouvi o som do motor, meu coração desacelerou. Parti com a sensação de que apesar de tudo o mundo ainda era o mesmo e estava lá para lucilar diante de meus olhos escuros. Nunca mais vi Benílio. Fiquei sabendo apenas que, assim como um tipo peculiar de Verlaine travestido de Rimbaud, foi embora para Rondônia tornar-se desbravador de coisa alguma.

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2006: tremor de terra no Jardim Simara

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Fenômeno foi percebido por cerca de cem moradores de dois edifícios

Catuay (em destaque) e Guarapari, prédios atingidos pelo tremor de terra (Crédito: David Arioch)

Em 2006, um tremor de terra com duração de um minuto assustou cerca de 100 moradores de dois edifícios residenciais no Jardim Simara. Felizmente, ninguém se feriu e também não houve danos materiais, mas a experiência dificilmente será esquecida.

O tremor de terra aconteceu por volta das 23h30 do dia 11 de novembro, um domingo, quando muitos dos moradores do Edifício Guarapari e Edifício Catuay já estavam dormindo. A responsável pela portaria do Guarapari, Simone Maria Silva, lembra que o fenômeno surgiu de modo repentino. “Foi tudo muito rápido. Quase todo mundo se assustou, parecia um terremoto. Alguns até pensaram que o prédio ia cair, inclusive acharam que fosse um problema na estrutura do edifício”, frisa.

Quem estava no térreo durante o acontecido não percebeu nada de diferente. Só ficou sabendo do tremor de terra na manhã de segunda-feira. Já no Edifício Catuay, situado em um ponto mais elevado, o tremor foi mais intenso, percebido por todos os moradores, desde o térreo até o último andar.

“Quem estava aqui sabe como foi assustador. Na hora tinha pelo menos 60 pessoas no prédio e todos ficaram horrorizados. Nunca aconteceu nada semelhante, nem de longe, pelo que sabemos”, declara a porteira Nilce Linberger. Quem estava dormindo acordou assustado ao sentir a cama vibrando e se movendo.

De acordo com a Defesa Civil de Paranavaí, o tremor de terra que durou 60 segundos não feriu ninguém, nem resultou em qualquer dano material. “Fomos até lá e concluímos que tudo estava em perfeito estado. Não houve sequer uma pequena rachadura. É algo surpreendente”, assinala o sargento Marco Antônio, do Corpo de Bombeiros.

Contudo, para os moradores a experiência vai ficar para sempre na memória. “Ninguém vai conseguir esquecer isso. O medo foi tão grande que muita gente correu até o térreo só de pijama. Fiquei assustada porque pensei que coisas assim não acontecessem no Brasil. Estamos acostumados a encarar isso só pela TV”, pontua Simone Maria.

A porteira acrescenta que na época os moradores optaram por não relatar o acontecido para outras pessoas, receosos de não serem levados a sério. “Todo mundo ia pensar que era brincadeira ou invenção”, comenta Nilce. Os dois prédios situados na Rua Hayato Nakamura foram construídos há 12 anos e dividem o mesmo quarteirão.