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The Herd, e se vacas fossem substituídas por mulheres?
Curta-metragem de horror mostra como os animais são explorados em benefício dos seres humanos
Um filme que mistura horror e suspense, o curta-metragem The Herd (O Rebanho), da britânica Melanie Light, convida o espectador a conhecer a realidade de um grupo de mulheres em regime de servidão, confinadas como se fossem vacas. Em um ambiente sujo e soturno, onde a pouca luminosidade acentua o desespero das prisioneiras, elas são violadas, obrigadas a fornecer até a exaustão o leite dos próprios seios.
Em uma das cenas, assim que uma jovem dá à luz, o recém-nascido é afastado dela. Presa e impossibilitada de tocá-lo, é forçada a testemunhar a criança sendo lançada em uma lata de lixo como se fosse um objeto descartável. Afinal, o que eles querem dela é apenas o leite, nada mais.
Entre gemidos e gritos agonizantes, as vítimas são punidas com choques elétricos. Agonia, medo, desespero e cólera são alguns dos sentimentos que pautam suas vidas 24 horas por dia. Mas a situação começa a mudar quando um homem abre uma das gaiolas e é golpeado com um chute. Uma das mulheres consegue rendê-lo e o mata com uma facada certeira no pescoço.
Embrutecida pela própria condição, ela recobra o seu estado normal de consciência por um momento, quando entra em prantos ao ver o sujeito convulsionando. Depois prossegue sua jornada de retaliação e mata mais um verdugo asfixiado com uma corrente. Outra prisioneira comemora, mas sente-se desorientada quando recebe as chaves da própria gaiola, provavelmente por causa da perda da própria identidade.
Atravessando espaços macabros e insólitos, a fugitiva testemunha uma prisioneira sofrendo lobotomia. Em outra sala, ela observa mulheres agindo como zumbis, despersonalizadas pela condição degradante. Mais adiante, quando se aproxima de uma adolescente para confortá-la, é surpreendida e rendida por outro algoz, até que uma companheira o mata de forma violenta, numa ação retributiva.
E assim a represália continua. Nem mesmo a funcionária responsável por sedá-las escapa da punição. Cortam sua língua, a vestem como uma das prisioneiras e a confinam em uma das gaiolas. Ainda em fuga, elas se escondem quando um empresário é levado até um dos locais onde as vítimas são violentadas.
No final de The Herd, Melanie, que mostra como os animais são explorados pelas indústrias, apresenta a finalidade do leite extraído das mulheres. Todo o material coletado é usado na produção de um creme facial rejuvenescedor chamado Lactis Vitae, O Leite da Vida, que promete hidratar e melhorar a firmeza da pele, além de reduzir rugas.
Vegana, a cineasta interpreta como seria se os animais se rebelassem, e chama a atenção para que as pessoas reflitam sobre o preço a ser pago quando financiamos indústrias que exploram os animais. E para corroborar esse argumento, os minutos finais do filme são dedicados a exibição de cenas reais de bovinos sendo espancados, arrastados e enforcados por correntes.
The Herd foi escrito por Ed Pope e traz no elenco Pollyanna McIntosh, Victoria Broom, Charlotte Hunter, Dylan Barnes, Jon Campling, Francessca Fowler, Andrew Shim e Sarah Jane Honeywell. O filme foi eleito o melhor curta-metragem do Festival Boca do Inferno 2, realizado no Brasil em 2015. No mesmo ano, recebeu prêmios no British Horror Film Festival, Celluloid Screams, London Independent Film Festival, Sounderland Shorts e Russian Annual Horror Film.
O filme foi disponibilizado pela própria autora no Vimeo
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H.P. Lovecraft e o racismo
“O racismo de Lovecraft é um elemento-chave para a compreensão do mundo que ele criou”
Cresci lendo obras do escritor estadunidense Howard Phillips Lovecraft, um dos grandes nomes da literatura de horror e fantasia. Com a chegada da maturidade, comecei a ter uma nova percepção sobre seus livros. Em síntese, percebi por intermédio experiência que não é a mesma coisa ler na adolescência e depois na fase adulta obras como “Herbert West–Reanimator”, “The Call of Cthulhu”, “The Silver Key”, “The Case of Charles Dexter Ward”, “The Dunwich Horror” e “At the Mountains of Madness”, só para citar as mais conhecidas.
É uma constatação natural, levando em conta a versatilidade autoral do escritor, hoje considerado um ícone pop da hipermodernidade que influenciou não apenas escritores e colocou em evidência um novo filão literário, mas também inspirou centenas de filmes, dezenas de séries de TV e milhares de compositores mundo afora, principalmente de bandas de rock e heavy metal.
Porém, há um lado obscuro de H.P. Lovecraft que muita gente desconhece, inclusive fãs que não se aprofundaram muito em seu trabalho. E não falo de nada relacionado a horror ou fantasia. Me refiro ao fato do escritor ser apontado como racista, embora isso seja pouco divulgado sob a justificativa de não acrescentar nem subtrair nada de sua literatura.
Contudo, no ensaio “The Genetics of Horror: Sex and Racism in H. P. Lovecraft’s Fiction”, o escritor Bruce Lord refuta essa afirmação reverberada pelos defensores mais radicais do escritor. “O racismo de Lovecraft é um elemento-chave para a compreensão do seu trabalho e do mundo que ele criou”, informa.
Ele tem razão. Histórias famosas como “The Street” e “The Horror at Red Hook” dão mostras categóricas de discriminação racial e isso não tem nada a ver com a defesa do politicamente correto. São apenas exemplos de que escritores também revelam em menor ou maior proporção os seus preconceitos e pré-conceitos em obras que se tornaram icônicas quando falamos de literatura mundial.
No caso de Lovecraft, o escritor indiano S.T. Joshi, que escreveu sua biografia, diz que é preciso levar em conta o contexto da época. “Não nego que ele era racista, mas naquele tempo todo mundo era”, declara. Contudo, Joshi ignora o fato de que nessa época nos Estados Unidos já havia escritores e antropólogos que usavam a ciência como principal instrumento de combate ao racismo. Dois nomes que merecem ser citados são Franz Boas e Bronisław Malinowski.
Em “The Horror at Red Hook”, Lovecraft apresenta o detetive Thomas F. Malone, um sujeito sensível e com muita imaginação. Quando sai às ruas e observa pessoas de pele escura, ele vê as mais diversas formas do horror. Quem não lê o livro com atenção, pode julgar que o fato de serem negros ou imigrantes não passa de uma casualidade, mas há fontes que provam o contrário.
Sonia Greene, que foi esposa do escritor, confidenciou anos mais tarde que, quando Lovecraft se mudou para Nova York, ele logo deixou claro o quanto era xenofóbico. “Sempre que andávamos em meio à multidão e nos deparávamos com pessoas das mais diferentes raças [etnias], uma característica comum de Nova York, ele ficava lívido de raiva e quase perdia a cabeça”, enfatizou.
No conto “The Rats in the Walls”, de 1923, o gato do protagonista se chama Nigger Man. O nome pejorativo foi trocado em 1950 pela revista Zest Magazine que o nomeou como Black Tom, visando minimizar controvérsias. Em “The Shadow Over Innsmouth”, de 1931, considerado um de seus melhores trabalhos, Lovecraft mostra um personagem que sente repulsão pelos moradores de Innsmouth, assim trazendo um traço biográfico do seu próprio sentimento diante da heterogeneidade de Nova York. O mesmo desprezo veio à tona em 1925, no conto “The Horror at Red Hook”, baseado em suas impressões negativas da população do Brooklyn Heights.
Na biografia “H.P. Lovecraft: A Life by S. T. Joshi”, o escritor indiano declara que Lovecraft simpatizava com hispânicos e judeus, entretanto não sentia o mesmo por irlandeses, alemães e afro-americanos. Por outro lado, há frases em que Lovecraft se posiciona como um antissemita. “Na Polônia e em Nova York, os judeus são de uma estirpe inferior e tão numerosos que seria essencial a mudança do seu tipo físico”, escreveu em uma carta com data de 13 de junho de 1936. De qualquer modo, como os Estados Unidos são uma nação construída por imigrantes é no mínimo paradoxal essa inclinação do autor.
Críticos viram no racismo de Lovecraft um tipo de ausência de amor próprio e até mesmo ódio de si mesmo pela sua condição física fragilizada. Há quem diga que ele se sentia intimidado pela fisicalidade de muitos imigrantes, e isso o tornava odioso e amargo. “O negro é muito inferior. Não pode haver nenhuma dúvida sobre isso, nem mesmo entre os biólogos contemporâneos mais sentimentalistas. Também é um fato que teremos um problema legítimo e muito grave se os negros passarem a ser vistos como iguais aos brancos”, registrou em uma carta escrita em janeiro de 1931.
Um dos autores mais respeitados da literatura de horror do século 20, H.P. Lovecraft influenciou outros importantes nomes da literatura mundial, como o escritor argentino Jorge Luis Borges, William S. Burroughs e Stephen King, além de cineastas famosos como John Carpenter e o mexicano Guillermo del Toro. Sua popularidade cresceu mais ainda com o advento da internet e a divulgação de suas obras em meio digital.
Saiba Mais
Quando a escritora estadunidense Nnedi Okorafor, autora do livro “Who Fears Death”, de 2010, venceu o prêmio World Fantasy Award (WFA) em 2011, ela escreveu um texto sobre o seu desconforto em receber um troféu com o busto de H.P. Lovecraft, logo após uma amiga mostrar-lhe um poema racista escrito por ele em 1912. O episódio também inspirou o escritor estadunidense Daniel Jose Older a criar uma petição pedindo aos organizadores do WFA para substituírem o busto de Lovecraft pelo da escritora Octavia Butler, importante nome da literatura de ficção científica dos Estados Unidos.
Referências
The Genetics of Horror: Sex and Racism in H. P. Lovecraft’s Fiction, Bruce Lord.
Lovecraft Letters Vol. 2, p. 27; quoted in Peter Cannon, “Introduction”, More Annotated Lovecraft, p. 5., 1968.
H.P. Lovecraft: Four Decades of Criticism by S. T. Joshi – Ohio University Press, 1980.
H.P. Lovecraft: A Life by S. T. Joshi Necronomicon Press, 1996.
From New Nation, David Riley, No. 4, p. 20-21, 1983.
The Racial World – View of H.P. Lovecraft, No. 2, by A. Trumbo, 2002.
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The Lost Boys e Cry Little Sister
Tenho certeza que o filme The Lost Boys (Os Garotos Perdidos), de 1987, do cineasta Joel Schumacher, fez parte da infância e adolescência de muita gente. Me recordo quando conheci o clássico na minha infância, por volta de 1992, trazendo um elenco composto por Corey Feldman, Jami Gertz, Corey Haim, Edward Herrmann, Barnard Hughes, Jason Patric, Kiefer Sutherland e Dianne Wiest.
À época, não fiquei impressionado apenas com a história e com o impacto que ela teve sobre mim, mas também com a trilha sonora. Muita gente começou a se interessar pelo gothic rock, que surgiu na Inglaterra no final dos anos 1970, só após o lançamento mundial de The Lost Boys. A música mais icônica do filme e que ajudou a popularizar o gênero é a atemporal Cry Little Sister, de Gerard McMann e Michael Mainieri, hoje dois desconhecidos das novas gerações.
Para quem curte a chamada literatura maldita de Poe, Rimbaud, Baudelaire e Verlaine, não há gênero mais representativo. Se bem que na década passada a temática renasceu na França com ex-integrantes de bandas de black metal em uma fusão de shoegaze, dark music e post-metal. É interessante ver como tudo ressurge com o tempo, independente de roupagens e transformações. Outro exemplo é o tema vampirismo abordado em The Lost Boys. Após 20 anos, vimos novamente essa efervescência. Taí um filme que merece ser assistido e um clássico que deve ser ouvido até o fim dos tempos.
A megalomania de Frankenstein
Em 1931, a Universal Pictures lançou a primeira versão cinematográfica de Frankenstein
Lançado em 1931 pela Universal Pictures, o clássico Frankenstein, do cineasta britânico James Whale, é um filme que gira em torno da ambição do homem em criar vida artificial, o que funciona também como uma crítica sobre a megalomania.
No filme, Henry Frankenstein (Colin Clive) é um ambicioso cientista que tomado por um anormal desejo de poder decide brincar de deus e cria um ser humano. A consequência é uma criatura feita com tecido, carne e órgãos de vários mortos que deveria ser o arquétipo da negação do fim, mas em função das deficiências físicas e psicológicas torna-se um símbolo degenerado da vida post mortem.
Em Frankenstein, o cineasta James Whale conseguiu transportar para o cinema toda a magia inventiva da obra que consagrou a escritora britânica Mary Shelley. A construção de cada personagem, desde Henry Frankenstein ao monstro interpretado pelo antológico Boris Karloff, foi concluída sob influência do cinema expressionista alemão, assim como o cenário que também remete ao romantismo gótico.
Tais referências podem ser observadas na saturação das sombras durante os momentos em que a pouca incidência de luz simboliza o triunfo da escuridão. Cena que ilustra isso é a de Henry Frankenstein e o seu ajudante Fritz (Dwight Frye), extasiados pelo inédito, procurando cadáveres frescos no cemitério, como se fossem deglutidos pelas trevas.
Já se tratando dos personagens, o mais emblemático é o monstro. Inapta a falar, a criatura é impelida a transmitir sensações e emoções por meio de expressões faciais, gestos e grunhidos que embora instintivos transmitem a essência do homem antes do processo civilizatório. Em vários momentos, mesmo privado de sua humanidade e sem saber quem realmente é, a criação de Frankenstein demonstra benevolência e desejo em ajudar, como se manifestasse uma certa consciência de outra vida.
A figura do cientista que luta contra as leis naturais da vida também é das mais inesquecíveis, graças ao paradoxo criado por Whale que confunde o espectador sobre quem seria realmente o monstro, criador ou criatura, já que toda criação representa a materialização de um anseio do inventor, mesmo disforme.
O filme considerado um dos maiores clássicos de horror de todos os tempos ainda traz no elenco mais alguns célebres atores dos anos 1930, entre os quais Mae Clarke, John Boles, Edward Van Sloan, Frederick Kerr, Lionel Belmore e Marilyn Harris. A trilha sonora é de Bernhard Kaun. Com um modesto orçamento de 262 mil dólares, Frankenstein arrecadou mais de doze milhões de dólares.
Os zumbis de Romero
Night of the Living Dead, o primeiro filme de horror como crítica social
Lançado em 1968, Night of the Living Dead (A Noite dos Mortos-Vivos) é um filme cult de horror do cineasta estadunidense George Romero que apresenta uma crítica social a partir das deficiências de caráter do ser humano em situações de risco.
Em Night of the Living Dead, os mortos voltam à vida por causa da radiação de um meteorito do planeta Vênus. Cientes de que os zumbis se alimentam de carne humana, os vivos fogem em busca de abrigo. A antropofagia no filme é tão direta quanto simbólica; representa a autodestruição do homem e a anulação do que cada um representa na individualidade.
Na obra, alguns sobreviventes se refugiam em um casebre localizado na área rural de Pittsburgh, na Pensilvânia. A partir do confinamento, Romero apresenta a vileza humana através de ações de egoísmo e autopreservação. Em vez de se unirem para tentarem se livrar dos zumbis, os personagens brigam entre si, ampliando o caos em um universo racional, onde o intelecto deveria ser dominante.
O mais curioso é que paralelo a isso, os mortos-vivos que estão fora da residência, mesmo privados de suas funções cerebrais, representando de forma peculiar a essência primitiva e livre do homem aquém dos princípios sociais, agem coletivamente, como uma infantaria. Em Night of the Living Dead, Romero também confronta o preconceito racial ao destinar o papel mais importante do filme a Ben (Duane Jones), um jovem negro que ao contrário dos brancos da história é o personagem mais lúcido, coerente e perspicaz. Há ainda uma cena que faz referência ao ativista Martin Luther King Jr.
Outro destaque é a previsão quase profética do cineasta ao mostrar a submissão do homem diante da tecnologia. Um grande exemplo é a cena em que os abrigados parecem reféns de um televisor, aparelho usado para preservar algum tipo de relação com o mundo exterior. Aí subsiste uma ironia, pois a TV já era encarada como um instrumento de reafirmação coletiva, condicionamento e uniformidade reflexiva.
Um dos precursores da zombie culture, Night of the Living Dead influenciou centenas de filmes, além de séries televisivas. O clássico está entre os melhores de todos os tempos nas mais importantes listas de grandes obras de horror. É considerado o expoente do splatter film, subgênero que tem como principal característica a violência gráfica que por meio de efeitos especiais ressalta a vulnerabilidade do corpo humano e a teatralização da mutilação.
Embora não se enquadre tanto como splatter film quanto Dawn of the Dead, lançado por Romero em 1978, Night of the Living Dead é um marco e serviu de base para os subgêneros exploitation e slasher. O primeiro diz respeito aos filmes de apelo visual e baixo orçamento. O segundo se refere as obras ao melhor estilo “serial killer à solta”, como os sucessos Halloween, de John Carpenter; Friday The 13th, de Sean S. Cunningham; e Nightmare on Elm Street, de Wes Craven.
Até hoje, Night of the Living Dead surpreende pelo custo de produção de U$ 114 mil, o que garantiu um lucro de U$ 30 milhões em todo o mundo. Em seu livro, Planks of Reason – Essays on the Horror Film, de 2004, o pesquisador estadunidense Barry Keith Grant, define o clássico de Romero como um divisor que transformou o cinema independente norte-americano e apresentou uma fórmula de sucesso aos muitos cineastas que enveredaram pelo horror nos anos 1970 e 1980.
Sobre H.P. Lovecraft
O escritor estadunidense H.P. Lovecraft é uma das minhas principais referências da literatura do horror, assim como Edgar Allan Poe. Sem dúvida, o gênero deve muito a ele. O próprio cinema de terror não seria o que é hoje se não fosse pela criatividade de Lovecraft, o Mestre Cthulhu reverenciado até mesmo por uma infinidade de bandas espalhadas pelo mundo.
H.P. é um autor que faz parte de todas as fases da minha vida: infância, pré-adolescência, adolescência e fase adulta. Sem Lovecraft, não teríamos uma infinidade de obras literárias, filmes e músicas que fazem referência ao intrigante Necronomicon, O Livro dos Mortos, além de outras criações fantásticas. O preciosismo e realismo de suas obras, embora fantasiosas, há quase 90 anos estimulam pessoas de todas as partes a procurarem o Necronomicon de Abdul Alhazred, escrito em 730 d.C, de acordo com o conto “The Hound”. É uma pena que H.P. Lovecraft tenha morrido com apenas 46 anos.
Ninguém podia deixar a Fazenda Brasileira
Quem abandonava o povoado era assassinado a tiros às margens do Paranapanema
Na década de 1930, a Fazenda Brasileira, atual Paranavaí, no Noroeste do Paraná, era conhecida como terra sem lei. Os migrantes que vinham para cá em busca de melhores condições de vida não podiam abandonar o povoado. Quem se arriscava a fugir era assassinado a tiros às margens do Rio Paranapanema, com a conivência dos colonizadores.
A história da colonização de Paranavaí é marcada por muita luta e perseverança, principalmente dos colonos. No entanto, o que a maioria da população desconhece até hoje é que em 1930 as regras já eram ditadas por colonizadores e jagunços que se colocavam acima da lei.
No ano em que Getúlio Vargas assumiu como presidente do Brasil, o Paraná ainda preservava 87% de vegetação primitiva. O novo governo federal tinha grande interesse na quase inabitada Vila Montoya, no Noroeste, que pertencia a Tibagi, no Centro Oriental Paranaense. A área então, que era da Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco), foi repassada ao jornalista e político gaúcho Lindolfo Collor (avô do ex-presidente Fernando Collor de Mello), um dos participantes da Revolução de 1930.
No mesmo ano, foram trazidas à Brasileira cerca de 1,2 mil famílias de migrantes, principalmente do Sudeste e Nordeste, para trabalharem na lavoura de café sob regime de colonato. Naquele tempo, já vivia aqui, desde 1929, época do Distrito de Montoya, o falecido pioneiro pernambucano Frutuoso Joaquim de Sales, das primeiras levas de migrantes trazidos pelo engenheiro agrônomo baiano Joaquim Rocha Medeiros.
Sales é sempre apontado como o pioneiro que vivenciou o período mais obscuro da história de Paranavaí, embora sempre evitasse falar a respeito. Preferia assuntos maleáveis, os mais simples e triviais. “Em 1930, ele era o responsável pelo transporte de café, sabia de muitas coisas, mas para não comprometer a si mesmo e a terceiros sempre fugia de temas polêmicos, principalmente quando alguém perguntava sobre os crimes do passado”, declara o pioneiro mineiro Sátiro Dias de Melo que foi muito amigo de Frutuoso.
No ano em que Sales era responsável pelas cargas que entravam e saíam da Fazenda Brasileira, inúmeras famílias insatisfeitas com as condições de trabalho decidiram partir. Com o consentimento do contratante, os colonos recebiam os vencimentos, recolhiam os pertences e eram acompanhados até as margens do Rio Paranapanema, de onde sempre partia alguma balsa com destino ao Estado de São Paulo.
Antes da travessia, colonos e familiares eram assassinados a tiros por jagunços que trabalhavam para os colonizadores. Alguns eram mortos às margens do rio, já outros, abatidos quando estavam de costas, durante a travessia. Segundo relatos de pioneiros, os capangas abriam os corpos das vítimas, extraíam todas as vísceras, enchiam de pedras, costuravam e jogavam no Paranapanema, conhecido pelo enorme cardume de piranhas. As histórias sobre os crimes praticados contra os colonos impediram que muita gente fosse embora da Fazenda Brasileira. Os fatos disseminavam terror e medo.
A morte à espreita no Rio Paranapanema
De vez em quando, alguns migrantes, mesmo cientes do risco, preferiam se aventurar na fuga, o que dá uma ideia da dimensão do padrão de vida subumano imposto aos colonos na Fazenda Brasileira. O pioneiro Natal Francisco viu isso de perto quando deixou Presidente Prudente, em São Paulo, para conhecer o Noroeste do Paraná. Acompanhado pelo irmão José Francisco, guiou um Ford movido a gasogênio até o Porto Ceará, às margens do Rio Paranapanema.
Lá, perguntaram ao balseiro sobre a Brasileira. O rapaz os alertou que deveriam deixar o veículo, caso não quisessem perdê-lo. “Disse também que a gente corria risco de morte vindo pra cá”, informou Natal Francisco em entrevista concedida ao escritor Paulo Marcelo Soares Silva, publicada no livro História de Paranavaí, lançado em 1988. Muitos migrantes chegavam à Fazenda Brasileira partindo de uma estrada que ligava Presidente Prudente, Porto Ceará, Povoado de Cristo Rei, Gleba-1, Piracema e Porto São José.
Depois de oito dias na Brasileira, os irmãos Francisco estavam retornando ao Porto Ceará quando ouviram o som de um acordeão. Surpresos, mas curiosos, adentraram a mata. Antes que vissem qualquer coisa, uma mulher gritou. “Pelo amor de Deus, não mata nóis. Tamo fugindo, mas tamo quase morto.” Mesmo assustados, Natal e o irmão ligaram as lanternas para ver se tinha mais alguém ali. O marido da moça estava caído no chão com a roupa rasgada e uma sanfona sobre o peito todo ensanguentado.
O casal de colonos enganou os jagunços e fugiu da Fazenda Brasileira. Às margens do Rio Paranapanema, improvisaram uma jangada para navegar até o Porto Ceará. Enquanto isso, alguns capangas chegaram até a beira do rio. De lá, atiraram e acertaram o rapaz que sobreviveu com a ajuda dos irmãos Francisco.
Curiosidade
Em abril de 1931, quando o interventor e general Mário Tourinho retomou as terras do Noroeste para o Governo do Estado do Paraná, o interventor estabeleceu por decreto que nenhuma pessoa ou família poderia ter títulos de propriedade que ultrapassassem 200 hectares, iniciando assim uma nova ordem na Fazenda Brasileira.