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Tolstói: “Às vezes, o açougueiro não acertava direito o golpe e o boi resistia e mugia enquanto jorrava sangue”
“Ninguém se importava se era uma boa ou má ação matar aqueles bois”
Em um dia quente de julho, uma sexta-feira, o escritor Liev Tolstói visitou mais um matadouro em Tula, ao sul de Moscou. Sentiu um odor de sangue ainda mais intenso do que da última vez. O trabalho dos açougueiros prosseguia, e ele observava o pátio cheio de gado. Também havia animais nos galpões adjacentes ao prédio central. Carretas e mais carretas carregadas de bois, vacas e bezerros chegavam ao matadouro.
Em alguns carros puxados por cavalos, ele viu bezerros vivos empilhados com as patas para cima. Os veículos se aproximavam do matadouro e descarregavam. “Havia ainda outros carros com bois mortos, cujas patas se moviam conforme as sacudidas do veículo. Mostravam suas cabeças inertes, seus pulmões vermelhos e o fígado marrom. Todos saíam do matadouro. Junto à cerca, havia cavalos montados, que pertenciam aos fazendeiros. Estes, com suas longas blusas e de chicote à mão, iam e vinham pelo pátio, ou marcavam com alcatrão o gado que lhes pertencia”, escreveu Tolstói.
Depois de negociar o preço, os fazendeiros vigiavam o transporte do gado do pátio até o galpão, e de lá até o prédio. Todos pareciam preocupados por causa das negociações. Ninguém se importava se era uma boa ou má ação matar aqueles bois. Se importavam tanto com isso quanto com a composição química do sangue que escorria pelo chão”, lamentou o escritor russo.
Não havia nenhum açougueiro no pátio. Todos trabalhavam. Ao final do dia, tinham matado pelo menos cem bois. Tolstói entrou no prédio central e ficou junto à porta. Ele não poderia entrar porque não havia espaço. Enquanto o gado se amontoava, o sangue gotejava do teto, espirrando nos açougueiros. “Se eu tivesse entrado, também mancharia minha roupa”, enfatizou.
O escritor russo testemunhou um dos homens derrubando um boi enquanto outro animal deslizava por uma das pistas. No mesmo local, um boi com as patas brancas já não agonizava. Morto, era esfolado por um açougueiro. Pela porta oposta, passava um boi vermelho e gordo. Ele resistia enquanto o arrastavam. Mal chegou à entrada, e um açougueiro o golpeou no pescoço com um machado.
Caiu pesadamente no chão, voltou-se de lado e moveu convulsivamente as patas e o rabo. Logo outro açougueiro se lançou sobre ele, pegou-lhe pelos chifres, e fez com que sua cabeça ficasse rente ao chão para que outro açougueiro o degolasse. Pela ferida aberta, o sangue vermelho escuro brotava como de uma fonte, e um menino sujo de sangue o recolhia com uma bacia de metal. Apesar de tudo, o boi se esforçava para não morrer. Não parava de se mover, sacudindo a cabeça e agitando involuntariamente as patas.
“A bacia enchia rapidamente, mas o boi estava vivo e continuava golpeando o ar com os cascos, o que obrigava os açougueiros a afastarem-se. Tão logo a bacia encheu, o rapaz a colocou na cabeça e a levou para a fábrica de albumina, enquanto outro menino trouxe outra bacia”, registrou Tolstói.
O boi esperneava desesperadamente. Quando cessou de correr o sangue, o açougueiro levantou a cabeça do boi e começou a esfolá-lo. O animal não tinha morrido. “Tinha a cabeça já esfolada e vermelha, com veias brancas. Sua pele pendia dos dois lados, e o boi não cessava de mover-se. Outro açougueiro pegou o boi por uma pata, a quebrou e a cortou: o ventre e as outras pernas continuavam estremecendo convulsivamente”, testemunhou o escritor russo.
Sem demora, alguns homens lhe cortaram os membros restantes e os lançaram em um monte, onde já havia muitos membros de animais. Depois arrastaram o boi, já sem vida, até a polia e o penduraram. Da mesma forma, morreram outros três bois. Todos passaram pelo mesmo processo; cortaram suas cabeças, cujas línguas pendiam entre os dentes. Às vezes, o açougueiro não acertava direito o golpe e o boi resistia e mugia enquanto jorrava sangue. Se esforçava para escapar de suas mãos. Sem chance, o arrastavam ao centro do prédio e o golpeavam até cair.
“De perto, vi repetir a mesma operação, e de que maneira se obrigava os animais a entrar. Cada vez que pegavam um boi do galpão e o arrastavam por meio de uma corda amarrada aos chifres, o animal, farejando sangue, resistia, mugia e retrocedia. Dois homens não conseguiram arrastá-lo à força. Então um dos açougueiros se aproximou, pegou o boi pelo rabo, o torceu e rompeu-lhe uma vértebra. O animal avançou temeroso. Quando terminaram de matar os bois de um pecuarista, deram início ao abate dos animais de outro”, confidenciou o escritor russo Liev Tolstói.
Referência
Tolstói, Liev. O Primeiro Passo (1892).
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Sophia, uma mulher por trás de “Guerra e Paz”
Título da obra mais importante de Liev Tolstói também definia o relacionamento do autor com a esposa
A imagem completa da vida humana, do zeitgeist russo, da história de luta das nações, de tudo que as pessoas consideravam como felicidade, grandeza, tristeza e humilhação sintetiza o significado e a importância do romance “Guerra e Paz”, do escritor russo Liev Tolstói, lançado em 17 de dezembro de 1867.
O anúncio do lançamento da obra que se tornou quase que imediatamente um dos maiores romances da história da literatura foi feito no Moscow News. Os quatro volumes foram vendidos ao preço de sete rublos. Os três primeiros foram entregues com um cupom para o quarto. Os leitores descobriram que viriam mais novidades nos próximos dois anos.
A repercussão da novela de Tolstói foi tão grande que os russos varreram as estantes das livrarias, inclusive para presentear amigos e depois trocarem cartas em que revelavam suas impressões dos personagens. Tolstói dizia que o livro consumiu cinco anos de sua vida, e a obra não era resultado de sua imaginação, mas sim de algo arrancado de suas entranhas. Naquela época, ele e Sophia eram recém-casados. Ela tinha 18 anos e ele 34. Para ajudá-lo, a jovem passava noites sob luz de velas decifrando e transcrevendo os manuscritos de Tolstói.
Além disso, também assumiu a responsabilidade de avaliar a obra e os sentimentos que ele transmitia por meio do livro. Como o russo era um escritor compulsivo e detalhista que não possuía uma boa caligrafia, Sophia teve de reescrever “Guerra e Paz” sete vezes até chegar à versão final. E ela fez tudo isso na esperança de ter um filho com ele. Mais tarde, também desempenhou o papel de secretária, revisora e gerente financeira enquanto o marido escrevia Anna Karenina, lançado em 1877.
Mas o relacionamento dos dois não era baseado somente em cumplicidade. Quando Liev Tolstói começou a escrever “Guerra e Paz”, Sophia registrou em um de seus diários a seguinte passagem: “Ele está escrevendo sobre a condessa fulana conversando com a princesa quem é. Insignificante”, reclamou. O autor russo se dedicou tanto ao livro que Sophia chegou a ortografar que ele provavelmente já “sentia o crime de matar na guerra”. Alguns pesquisadores afirmam que o casamento deles foi conturbado ao longo de 48 anos.
Em 1910, a saúde de Tolstói já estava bem debilitada, tornando-se uma recorrente preocupação familiar. Em seus últimos dias, pressentindo o pior, ele só escrevia e conversava sobre a experiência de morrer. Depois de muito tempo de renúncia ao seu estilo de vida aristocrata e adoção de uma vida simples, um dia ele saiu de casa com a intenção de se separar de Sophia. O motivo seria os ciúmes que ela começou a sentir quando testemunhou a atenção que o marido dispensava aos seus discípulos.
Talvez com razão e talvez também houvesse um motivo a mais, já que alguns pesquisadores apontam que alguns seguidores mais próximos de Liev Tolstói passaram a exercer influência sobre ele. Na fuga de 20 de novembro de 1910, aquele que foi considerado o homem mais famoso da Rússia faleceu em decorrência de pneumonia na Estação Ferroviária de Astapovo, na Província de Riazan, e talvez imerso na solitude final.
Trecho de “Guerra e Paz” – Volume I (Página 467)
Pedro, silencioso, olhava, assombrado, o amigo, sem poder apartar os olhos dele, aturdido com a mudança que nele se operara. As suas palavras eram acolhedoras, tinha o sorriso nos lábios, mas aos olhos apagados, como mortos, por mais que fizesse não conseguia comunicar-lhes sombra de alegria. Não que tivesse emagrecido ou estivesse pálido, mas aquele seu olhar e aquela sua fronte sulcada de rugas, sinal de pensamentos concentrados, impressionavam Pedro e causavam-lhe como que uma sensação de repulsa, uma vez não habituado a vê-los no amigo.
Como sempre acontece depois de uma longa separação, não foi fácil encetarem desde logo uma boa conversa. As perguntas e as respostas eram breves, posto abordassem assuntos de que tanto um como outro estavam certos de ser dignos de mais larga explanação. Mas, por fim, voltaram a tratar dos assuntos a que apenas se haviam referido abreviadamente: o passado, os seus planos de futuro, a viagem de Pedro, as suas ocupações, a guerra, etc. A preocupação e o abatimento que Pedro notara no olhar do seu amigo refletiam-se agora mais pronunciadamente no sorriso com que ele acolhia as tiradas de Pedro, especialmente quando o ouviu falar com jovial emoção do passado e do futuro.
Obras mais importantes de Liev Tolstói
“Guerra e Paz”, “Anna Karenina”, “Confissão”, “O Reino de Deus está em Vós” e “Ressurreição”.
Saiba Mais
Liev Tolstói nasceu em 9 de setembro de 1828 em Yasnaya Polyana, a 12 quilômetros de Tula, na Rússia.
Sophia Andreyevna nasceu em 22 de agosto de 1844 e faleceu em 4 de novembro de 1919. Ela teve 13 filhos com Liev Tolstói, mas somente oito sobreviveram à infância.
Referências
http://www.todayinliterature.com/
V.G. Chertkov, The Last Days of Tolstoy. William Heinemann 1922.
Tolstaya, S.A. The Diaries of Sophia Tolstoy, Book Sales, 1987.