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Visita aos mortos

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Como o cemitério poderia ser nefasto se plantas cresciam ao redor dos túmulos? 

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Não o visitava com tanta frequência, mas a experiência me agradava bastante (Foto: Reprodução)

Na infância, eu gostava de ir ao cemitério. Não o visitava com tanta frequência, mas a experiência me agradava bastante porque me dava a impressão de que eu estava entrando em outro mundo, onde os vivos reencontram os mortos. Não o considerava um lugar sombrio. Muito pelo contrário. Como poderia ser nefasto se plantas cresciam ao redor dos túmulos? Se cães e gatos frequentavam o lugar?

Não era difícil entender o motivo. A calmaria, o silêncio preeminente na maior parte dos dias, permitia que os seres mais atentos ouvissem os sons da terra, a harmonia e a dissonância das espécies em suas criteriosas relações com a natureza. Ainda me lembro de um casal de sabiá-do-campo que cantava à curta distância do túmulo da minha bisavó, a poucos passos da entrada da necrópole.

O gorjeio suave acompanhava a brisa solene que chegava como um alento. Se projetava do alto de uma árvore, onde algodão, grama e gravetos secos constituíam um ninho em forma de cesta. “Hum…ali vai nascer alguém”, pensei. De repente, um sabiá encostou ao lado do muro branco, renovado com cal, e começou a esgravatar o solo a procura de alimentos. Me observava e ciscava sem pressa, talvez confiante em sua argúcia, já que estava em casa, onde o estranho era eu.

Me afastei e caminhei à esquerda para ler as inscrições e os epitáfios escritos de improviso no concreto ou gravados nas placas de bronze. “Por que os túmulos são tão diferentes? Não poderiam ser iguais?”, perguntei aos meus pais. Me explicaram que os maiores normalmente pertencem aos ricos. Há quem acredite que quanto maior o jazigo, maior o nível de importância do falecido. E baseado nessa crença faraônica supõe-se que até mesmo os estranhos serão atraídos pelos mausoléus. A imponência sempre ajudou a destacá-los dentre os demais, como num floreio que ingenuamente romantiza o inevitável destino de todos os seres.

Em minhas reflexões, túmulos, por mais distintos que fossem, lembravam embalagens de produtos ou pacotes de presentes. Quero dizer, por mais suntuosa que fosse uma sepultura, a verdade é que resguardava a mesma matéria de qualquer outra. Alguns mausoléus eu via como fortalezas, criadas para proteger ou velar a frágil efemeridade humana. Portas, janelas e grandes argolas me faziam suspeitar que talvez os familiares acreditassem na possibilidade de um retorno do querido ente falecido. “Será que eles pensam que o morto um dia vai levantar e sair pela porta?”, questionei.

Observando, aprendi também que às vezes um sepulcro homérico pode revelar uma forma de carinho, tornada material, ou tardia compensação ao morto por algum desentendimento ou parca participação em sua vida. Ouvi histórias de pessoas que movidas por remorso flagelante gastaram pequenas fortunas nas construções de túmulos. Algumas obras custaram mais caro do que uma casa. Os materiais foram trazidos de outras regiões do Brasil e de outros países, assim garantindo à catacumba um privilégio sui generis.

“Você ficou sabendo que a família do Orlando contratou um especialista em arte maneirista para criar o projeto da sepultura?”, ouvi numa manhã. Talvez houvesse uma intrínseca relação com o memorial, o destempero humano diante da finitude, num exercício de perpetuação simbólica. “Vamos criar algo para que ele nunca seja esquecido. Para que séculos após sua morte ainda seja lembrado. Mesmo que não reste nenhum de nós, outros, mesmo que desconhecidos, estarão aqui para visitá-lo”, talvez pensem alguns, se negando a crer que a morte dos nossos sempre muda algo dentro de nós, mas o mundo há de continuar seguindo seu curso natural, ratificando nossa pequenez, independente da nossa dor.

Olhando ao meu redor no cemitério, e vendo tanto sortimento em cores, tipos, tamanhos e adornos, lembrei de uma aula do professor Babeto em que ele nos mostrou fotos de uma necrópole na França, onde a morte reafirma a indistinção dos seres humanos. Sobre o gramado verdejante havia apenas cruzes brancas de concreto. Tudo parecia tão uniforme, harmonioso, justo e coerente. Afinal, não há mais nada a ser provado quando a vida se esvai, já que somos o que fazemos em vida.

Talvez alguns sejam passionais demais para aceitar que os seus também foram vencidos pelo passamento, como tantos outros. Assim, não duvido que para alguns o jazigo passa a ser encarado como uma morada, onde o fim há de ser postergado até o momento que o último pedaço de tijolo ou de mármore estiver envolvendo o ataúde.

De qualquer modo, nunca me senti tão intrigado por mausoléus como me senti por túmulos velhos, desamparados, relegados ao ostracismo – que raramente recebem visitas de familiares e amigos. Curioso e inquiridor, descobri jazigos abandonados há décadas, de famílias que já não existem mais, com histórias e sobrenomes perdidos no tempo – obsoletos e extintos como raros espécimes. Conheci sepulturas que desapareceram porque não eram perpétuas, principalmente de pessoas humildes, lavradores.

Nos anos 1990, por exemplo, eu visitava o túmulo de duas garotinhas com não mais de dez anos, amigas de infância de minha mãe. Num dia chuvoso da década de 1960, elas foram atingidas por um raio enquanto lavavam louça no fundo de casa. Morreram agonizando num chão de terra batida que escureceu-lhes os cabelos claros que cobriam os rostos.

A tragédia comoveu muitos sitiantes que caminharam a pé por longas distâncias para orar pelas crianças, desfalecidas na mais alegórica das fragilidades, rodeadas por cafezais que em pouco tempo deixariam de florescer e frutificar. Dona Maria visitou a filha e a sobrinha até o dia que o túmulo não perpétuo foi destruído para dar lugar à outra criança falecida, que não corria o risco de ter seus restos mortais remanejados porque pagaram o suficiente por tal privilégio. Recebi a notícia há três anos, depois de procurar o jazigo em vão.

Tenho recordações de como eram pequenos os dois túmulos. Sem placas de bronze, fotos, nomes ou qualquer informação. Com o tempo, e sem alarde, continuaram existindo para poucos até o completo e figurado desvanecimento material. “Eram boas meninas. Só que o ciclo delas nesse lugar acabou. Talvez tenha sido melhor assim. A mãe sofria demais”, comentou uma velhinha com sorriso plangente.

Caminhei até outro jazigo, acompanhando essa senhorinha que se apresentou como Tazinha. Seus olhos rutilantes e primaveris contrastavam com a pele do rosto delgado e achacado pela ação do tempo. Tinha voz dulcificada, de quem aceitava da vida aquilo que ela oferecia e por menor que fosse ainda agradecia. Ela visitava o marido uma vez por mês desde 1957, quando ele morreu em decorrência da maleita.

Trabalhava abrindo estradas em Paranavaí, até que um dia adoeceu e não levantou mais. Não chegou nem a receber pelos últimos dois meses de trabalho. “Fui até a casa do patrão cobrar os atrasados. Daí o homem berrou: ‘Tenho nada com a senhora, meu negócio era com seu marido. Vá daqui!’ Sem me irritar, fui embora”, narrou. Anos mais tarde, Tazinha ficou sabendo que o sujeito foi assassinado a tiros. Ele vendeu um sítio com duas casas e tentou derrubar uma delas para revender a madeira.

Após a morte do marido, Tazinha nunca mais se relacionou com outro homem. Ainda carrega no dedo a aliança de casamento comprada em 1951. Quando perguntei se ela não se sentia muito sozinha, argumentou que a solidão não habita um coração em comunhão com a própria vida. Também questionei o motivo dela continuar visitando o marido depois de tanto tempo.

Enquanto ela asseava o túmulo com um pedaço de flanela, um dos mais singelos do cemitério, o desempoando como se estivesse fazendo carícias, me observou com um sorriso cândido e respondeu: “O ser humano que não é fiel às suas promessas não é capaz de ser fiel a si mesmo. Assim como faço todo mês, estou aqui cumprindo a minha, não por obrigação, mas porque revigora o meu coração. A vida está em todos os lugares, nas entranhas da terra e nas incertezas do céu, e no cemitério não é diferente. Daqui também se vê o nascente, assim como o poente.”

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