David Arioch – Jornalismo Cultural

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Ângelo Jorge, o escritor português que sonhava com um mundo vegetariano

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Ângelo Jorge, um dos criadores do primeiro movimento vegetariano português

Nascido em 4 de setembro de 1883, o escritor português Ângelo Jorge, da Freguezia de Santo Ildefonso, na cidade do Porto, foi um dos criadores do primeiro movimento vegetariano português, que surgiu no início do século 20. Mas, antes disso, viveu parte da sua juventude no Brasil, para onde se mudou com seus pais aos nove anos. Na adolescência, rejeitou a ideia de atuar na área comercial quando descobriu a vocação para as letras.

“Toda a sua inclinação era para os livros e para os jornaes. Aos 10 annos deu início aos seus trabalhos literários (…)”, escreveu João Paulo Freire no Segundo Volume de “Poetas Portuenses – Antologia e Notas”, lançado em 1924 pela Editora Companhia Portuguesa. Depois de atuar como jornalista no Brasil, retornou a Portugal aos 18 anos, onde defenderia a alimentação vegetariana e, mais especificamente, o frugivorismo. “Se os homens voltarem a ser frugívoros, a questão social será resolvida”, escreveu na obra “A Questão Social e a Nova Ciência de Curar”, publicada em 1912.

Entre os anos de 1909 e 1911, Ângelo Jorge foi secretário de redação da revista “O Vegetariano”, fundada pelo médico português Amílcar de Sousa. O jornalista tinha total liberdade na produção de conteúdo. Em seu artigo “O meu vegetarismo”, de cunho filosófico, Jorge declarou que os homens não se devoram mutuamente, mas devoram outros animais. “Acha-se bárbaro e repugnante dar a morte a um homem com o fito de se lhe comer a carne, mas julga-se naturalíssimo e agradável matar uma ave, um boi, um carneiro ou um coelho, com o mesmíssimo fim de os devorarmos sem piedade”, criticou.

Catarina Rola, da Universidade de Lisboa, escreveu na página 18 da dissertação de mestrado “Vegetarianismo e Comportamento Alimentar”, publicada em 2015, que Ângelo Jorge foi o grande responsável pela fundação da Sociedade Vegetariana de Portugal em 1911. O jornalista era considerado não apenas um idealista, mas um utopista. Sonhava com um mundo vegetariano, e esse sonho que ele via como um objetivo a ser alcançado deu origem à novela naturista e utopista “Irmânia”, publicada em 1912 e reeditada em 2014.

No livro de pouco mais de 100 páginas, ele retrata uma sociedade vegetariana distante da atual civilização moderna; uma sociedade que reconhece que a maneira como nos alimentamos endossa ou rejeita a violência que impomos aos outros animais. Em um diálogo de “Irmânia’, um choque de realidade surge durante um diálogo entre o vegetariano Apolínio e um náufrago que veio de uma terra onde os animais são objetificados e reduzidos a alimentos:

Três vaquinhas pretas de malhas brancas estavam deitadas sobre a relva, as tetas muito cheias, oferecendo-se aos bezerrinhos que as rodeavam.
— Pormenor interessante! exclamou Manfredo. Até nisso se revela a encantadora brandura dos vossos hábitos. A confiança com que estes animais vêm até nós, prova bem que não estão acostumados a que os maltratem.
— Não é como na vossa terra? Perguntou Apolínio.
— Lá, respondeu o náufrago, sob o pretexto de que é o rei da criação, o homem transformou-se no carrasco dos outros seres. A uns, mata-os e devora-os; a outros, fá-los bestas de trabalho; a estes, porque são lindos e estima a sua companhia, rouba-lhes a liberdade e conserva-os presos em casa; àqueles, prejudica-os de várias formas. Por exemplo: vós, em Irmânia, por certo nunca comeste os ovos destas galinhas nem provaste o leite daquelas vacas…
— Não, com certeza. Depois de grandes não costumamos mamar, respondeu com ingenuidade o moço filho de Herculino. E quanto aos ovos de galinha, são destinados ao nascimento dos pintainhos, só.
— Pois nós outros, porque somos muito civilizados, bebemos o leite que as vacas têm para amamentação dos seus bezerros, e comemos os ovos que as galinhas põem para reprodução da sua espécie.
– Seríeis capazes, pelo que vejo, de comer a própria lua, se algum dia ela caísse na tolice de vir cá baixo! concluiu, com graça, Apolínio.

 Ângelo Jorge, assim como o escritor brasileiro Carlos Dias Fernandes, seu contemporâneo, e que também colaborou com a revista “O Vegetariano”, era defensor da alimentação frugal, ou seja, o mais simples possível. Acreditava que assim o ser humano, além de ajudar a extinguir doenças comuns à época, também gerava menos impacto à natureza, o que beneficiava diretamente os animais.

Jorge faleceu em 17 de novembro de 1922, mas deixou uma filha chamada Armanda-Julia Jorge, educada, de acordo com o artigo “O Utopista portuense Ângelo Jorge: Subsídios para a sua biografia”, de Iza Luso Barbosa, seguindo os princípios da sua obra “A Questão Social e a Nova Ciência de Curar”, de 1912. Ou seja, o escritor português deixou uma filha vegetariana, que é a prova de que colocava em prática tudo que escrevia e em que acreditava. “ É forte, saudável, alegre. A Doença hade sempre para ella ser um mytho; e assim, será no futuro mais uma irrefutável prova da verdade naturista”, registrou Ângelo Jorge na legenda da foto da filha publicada em “A Questão Social e a Nova Ciência de Curar” em 1912.

Referências

Jorge, Ângelo. A Questão Social e a Nova Sciencia de Curar. Biblioteca Vegetariana, Vol. IV. Sociedade Vegetariana de Portugal (1912).

Jorge, Ângelo. Irmânia (1912). Edições Quasi (2004).

Barbosa, Iza Luso. O Utopista Portuense Ângelo Jorge: Subsídios para a sua biografia. E-topia: Revista Electrónica de Estudos sobre a Utopia, n.º 5 (2006). ISSN 1645-958X (Disponível em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/1648.pdf)

Rola, Catarina. Vegetarianismo e Comportamento Alimentar. Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (2015). Página 18. (Disponível em http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/27280/1/11253_Tese.pdf)

Vegetarianos há mais de um século. Sociedade Vegetariana Portuguesa (31 de março de 2013). (Disponível em http://www.avp.org.pt/notiacutecias/vegetarianos-h-mais-de-um-sculo)

Metello, Nuno. O vegetarianismo em Portugal já tem barbas brancas. Biosofia.  (Disponível em http://biosofia.net/2012/10/17/o-vegetarianismo-em-portugal-ja-tem-barbas-brancas)





Jaime de Magalhães Lima e “O Vegetarismo e a Moralidade das Raças”

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Livro está à venda na Livraria Saraiva e na Amazon.com em versão digital

Sêneca, o intelectual romano a quem o escritor português Jaime de Magalhães Lima admirava, dizia, inspirado em Focion, que o homem precisa reconhecer a sua capacidade de encontrar alimentos sem o derramamento de sangue. Do contrário, a crueldade há de ser mantida como hábito, já que a prática da carnificina passa a ser primeiramente associada ao prazer do apetite.

“Acrescentava ele que é nosso dever limitar os materiais da luxúria. Que, todavia, a variedade de alimentos é nociva à saúde e não é natural ao nosso corpo. Se estas máximas [da escola de Pitágoras] são verdadeiras, então nos abstermos da carne dos animais é animar e promover a inocência; se mal fundadas, ensinam-nos ao menos a frugalidade e a simplicidade da vida. E que perdeis vós perdendo a nossa crueldade? Apenas vos privo do alimento dos leões e dos abutres”, cita Magalhães Lima. Depois de mais de um ano de abstinência de alimentos de origem animal, Sêneca disse que não apenas era fácil ser vegetariano, como delicioso. Alegou também que as faculdades do seu espírito se tornaram mais ativas.

É acostumar-nos a derramar o sangue humano degolar animais inocentes e ouvirmos sem piedade seus tristes gemidos. É desumanidade não nos comovermos com a morte do cabrito, cujos gritos tanto se assemelham aos das crianças, e comermos as aves a que tantas vezes demos de comer. Ah! quão pouco dista d’um enorme crime!, transcreve Magalhães Lima, fazendo menção a Ovídio.

Outro argumento que reforça o posicionamento do português em relação à abstenção de carne é o fato de que para ganhar sabor é preciso submetê-la a um processo de transformação. “Qualquer dama de mãos mimosas que trinca com delícia uma costeleta coberta de pão e embalsamada em louro, em cravo, em salsa, em cebola, pimenta e limão, empalidece de náusea sentindo o cheiro do açougue, considera imundície um pedaço de carne crua nos seus vestidos, e foge mais depressa da praça do peixe do que da montureira que aduba a horta”, critica.

Na perspectiva de Magalhães Lima, na cozinha vegetariana ocorre o oposto. O esmero e a perfeição consiste em conservar inalterável o sabor próprio de cada alimento. “Muitos e muitos [crianças] que seriam incapazes de roubar de qualquer salgadeira um grama de toucinho, não resistem à tentação de se aproveitarem do primeiro cacho de uvas que lhes esteja à mão. Os assaltos às hortas e pomares são frequentes, e de tal forma isso parece estar na ordem natural que grande número dos homens rudes não lhes associe nem de longe a noção do crime. Longos séculos de corrupção da dieta não conseguiram atrofiar essas tentações de uma antiguidade bíblica, as mesmas que desgraçaram Adão e Eva”, compara.

Para conhecer melhor o trabalho do escritor português Jaime de Magalhães Lima, recomendo que leiam o livro “O Vegetarismo e a Moralidade das Raças”, publicado originalmente em 1912, reeditado no Brasil em 2015, e disponível em versão digital na Livraria Cultura por R$ 5,90 e na Amazon.com por R$ 3,90.

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Written by David Arioch

August 10th, 2017 at 8:03 pm