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A tempestade de fuligem
Ela era artista e obra, uma autora travessa que aprendeu a se guiar pelo vento
Foi num dia de clima ameno que cheguei em casa no final da tarde e encontrei a garagem e as roupas no varal cobertas de fuligem da queimada de cana-de-açúcar. A forma como se moviam pelo espaço me dava a impressão de que eu estava diante dos vestígios de uma tempestade caliginosa, flexuosa e suja.
A fuligem serpentava pelo ar de forma zombeteira. Quando eu tentava tocá-la, ela desviava com agilidade e se fixava em alguma coisa que ingênuo eu me esforçava para proteger. Havia sujeira por todos os lados. Sem constrição, a fuligem grafitava tudo que pelo caminho encontrava.
Ela era artista e obra, uma autora travessa que aprendeu a se guiar pelo vento. Podia ser tocada em sua minúcia, mas nunca possuída, porque depois que nascia a mais ninguém ela pertencia. Escura e minúscula parecia livre para fazer o que quisesse no seu mundo corrente.
Meu carro branco e asseado ficou encarvoado quando a conheceu. Sem condições de se mover, testemunhou o vento especioso transportando tanta fuligem que até o sol desapareceu atrás das sombras massificadas de imundície. O brilho da lataria sumiu, embaciado pela soberania malemolente da falsa plumbagina.
Esfreguei o dedo no capô e notei uma mixórdia de cinzas e grafite de baixa qualidade que se desvaneceu sob o meu indicador direito. Para minha surpresa ainda preservava o aroma de cana-de-açúcar crestada. Repousando no seco, ela se arrastava como alguém que engatinhava. E agarrada ao úmido ou molhado, a fuligem se dissolvia, criando desenhos nem sempre incompreensíveis ou vazios em sentido.
No centro de uma camiseta branca que brandia sobre o varal, vi o adunco formato de uma mão diminuta e estriada. Tinha até unhas carcomidas, e algumas eram mais encardidas que as outras. Cheguei a crer que a fuligem possuía sua própria memória, uma lembrança perene do momento em que se desprendeu da cana-de-açúcar para sumir na imensidão do céu e da aragem outonal.
Talvez fosse a mais depreciativa das Fênix, já que ela renascia das cinzas e quase como cinzas, sem o direito de transformar-se em algo belo, bom e frutuoso que as pessoas pudessem gostar de assistir ou aspirar. Rebento do palhiço de cana, nasceu feinha e sem motivação existencial.
Gestada no borralho, a fuligem percorria dezenas de quilômetros até chegar ao seu destino – residências da área urbana, inclusive de pessoas que nem sabiam que ela existia. Aquela era sua sina, a curta vida de quem despontou casmurrada pela queimada. Não a culpo pela indisciplina. Deve ser horrível acordar sentindo algo quente te obrigando a partir.
Mergulhei dentro da minha mente e assisti seu primeiro voo, tímido e lânguido. Soprada para longe, obedeceu sem questionar a ordem natural das coisas. Apesar de tudo, sentiu o frescor remanescente do verde que se extinguia a dezenas de metros de distância do solo. A fuligem se esforçou para chorar, vendo-se tão turva e uniforme quanto insignificante. Se contorceu no ar, mas de nada adiantou. Relegada a uma existência estéril, era mais seca que a mais contumaz das estiagens.
Encolerizada por não ter direito a nada, e ciente de que não duraria mais do que horas e, com muita sorte, alguns dias, se insurgiu contra o seu fado. Fez um acordo com o vento, prometendo reverenciá-lo como um deus se ele a ajudasse a ir o mais longe possível em sua zaragata. Ele concordou.
Depois de se transformar em tempestade, a aragem a arrastou. Com sua força nímia e sobranceira, condensou toda a fuligem do canavial, criando uma pequena e turva réplica da lua. Num percurso de dezenas de quilômetros, a esfera se desfez e seus fragmentos seguiram pelas mais diferentes direções – atravessando pastos, lavouras, vilas, distritos e cidades da região de Paranavaí.
Naquele dia, a fuligem invadiu a Rua John Kennedy, cruzou o céu da minha casa e deixou centenas de vestígios indesejáveis, acompanhados de um som cicioso que imitava o tinir dos facões. O aroma de cana-de-açúcar ainda persistia. E por um descuido, enquanto eu decidia o que fazer, a fuligem entrou no meu nariz e eu a inalei. Mais tarde senti uma queimação no peito. Tive a impressão de que algo insólito estava vivo dentro de mim e se movendo.
Fui ao médico no dia seguinte e na mesma semana fiz alguns exames. Ele me mostrou que havia uma mancha estranha que se distendia sobre um dos meus pulmões. Não nego que senti um misto de preocupação, raiva e tristeza. “Tenho quase certeza de que são vestígios de monóxido de nitrogênio, dióxido de nitrogênio, dióxido de carbono e amônia. Precisamos cuidar disso, porque senão rapidamente pode virar asma, câncer de pulmão ou até peniano”, alertou o pneumologista.
“Senti a morte despedaçar-se de encontro à minha cabeça, como se um bólide houvesse caído do espaço e fosse escolher justamente o meu crânio para campo de pouso”, escreveu Campos de Carvalho em “A Lua vem da Ásia”. Na segunda e na terceira bateria de exames, realizadas no mês seguinte, não havia mais nada em meus pulmões. Então me recordei que 15 dias antes um prolongado espirro me proporcionou uma ímpar sensação de alívio. E o que saiu do meu nariz não era claro como a água, mas turvo como o vácuo da inexistência.
Chegando em casa, deitei na cama e percebi através da janela que do outro lado repousava uma nova mancha de fuligem na parede – parecia uma sarça ardente. Caí no sono, pensando apenas em outra passagem de Campos de Carvalho. “À noite a lua vem da Ásia, mas pode não vir, o que demonstra que nem tudo neste mundo é perfeito.”
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Quando três padres escaparam da morte
Voo quase termina em tragédia em 6 de julho de 1955
Em 1955, após visita ao bispo de Jacarezinho, no Norte Pioneiro Paranaense, três padres alemães que retornavam a Paranavaí, no Noroeste do Paraná, escaparam da morte durante uma tempestade iniciada quando sobrevoavam Arapongas, na região Norte Central.
No dia 6 de julho de 1955, os padres alemães Adalbert Deckert, Jacobus Beck e Ulrico Goevert decidiram visitar o bispo diocesano de Jacarezinho, Dom Geraldo de Proença Sigaud.
À época, Paranavaí passava por um período de chuvas, mesmo assim os freis decidiram arriscar. Alugaram um avião teco-teco para quatro passageiros e partiram. “Confiamos corajosamente naquela cegonha de lata”, comentou o frei alemão Adalbert Deckert no livro “As Aventuras de Três Missionários Alemães em Paranavaí”.
Naquele tempo, segundo os padres que participaram da viagem, era um prazer indescritível sobrevoar florestas, roças, rios e colônias. Em Jacarezinho, tudo correu bem e ao final da visita que durou duas horas o bispo Dom Geraldo os levou de carro até o aeroporto. Na viagem de retorno, o piloto os alertou que uma ventania em direção contrária impedia que o teco-teco voasse mais rápido.
Aos poucos o céu escureceu e o piloto sugeriu uma parada em Arapongas. Os padres não gostaram da ideia porque optaram por viajar de avião para retornar a Paranavaí no mesmo dia. Apesar das contrariedades, ao longo de dez minutos o piloto sobrevoou a cidade até aterrissar em um campo de aviação. “Estávamos desgostosos por causa da parada involuntária e da necessidade de pernoitar ali. Só depois percebemos que diante da tormenta não demos conta do perigo”, admitiu frei Adalbert.
Do pequeno aeroporto, foram de carro até um hotel enquanto uma tempestade atingiu Arapongas, acompanhada por uma forte chuva de granizo. De acordo com Deckert, era um temporal como jamais visto na Alemanha. “No hotel, a água gotejava do telhado sem parar”, destacou. Mais tarde, os padres foram informados que a tormenta causou sérios danos ao teco-teco usado na viagem. Todos os aviões que estavam no campo de aviação foram danificados.
Mesmo amarrado, um dos veículos foi arremessado do outro lado da estrada, sobre um cafezal. Na manhã do dia seguinte, foi encontrado em um cafezal com as rodas para o ar. “Até mesmo um bimotor enorme foi inutilizado pelo temporal. Ficamos com pena do nosso piloto que era o proprietário do avião, mas não podíamos fazer nada”, afirmou Adalbert Deckert.
Para retornar a Paranavaí, os freis alemães tiveram de pegar outro voo. Quando chegaram aqui, não puderam aterrissar porque uma densa neblina tomou conta da cidade no dia 7 de julho de 1955. A visibilidade era praticamente nula. Porém, isso não abalou os padres. Estavam cientes de que no dia anterior viveram o pior, se livraram da morte. “Nossos sentimentos eram de agradecimento, pois se o táxi aéreo não tivesse aterrissado, a repentina e fulminante tempestade nos teria jogado ao chão como folha de papel”, avaliou frei Adalbert.
Saiba Mais
Os padres decidiram viajar até Jacarezinho com um teco-teco porque caso optassem por um avião de linha a viagem seria muito mais demorada. Outro problema era que além do risco de atrasos envolvendo partida e chegada, aviões que comportavam mais de quatro passageiros tinham de cumprir uma parada obrigatória em Londrina, no Norte Central Paranaense.