David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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Uma noite no fliperama

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Frequentar a Play Time me garantia uma aula semanal de “experiência mundana”

Eu estava jogando Sunset Riders quando Graxinha me chamou a atenção (Foto: Reprodução)

Eu estava jogando Sunset Riders quando Graxinha me chamou a atenção (Foto: Reprodução)

Em 1993, meu pai levava eu e meu irmão mais velho, Douglas, uma vez por semana na Play Time, uma famosa casa de fliperamas situada na Rua Manoel Ribas, no centro de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Chegando ao local, um paraíso juvenil de mais de 20 máquinas do tipo arcade que mais lembrava o cenário de um filme teenager estadunidense dos anos 1980, ele falava para formarmos uma concha com as mãos e distribuía dez fichas para cada um. Enquanto jogávamos, nosso pai ficava ao lado, no Bar Toyokawa, mais conhecido como Bar do Kengo.

Eu era pequenino, tinha menos de dez anos e estudava na Escola Vicentina São Vicente de Paulo numa época em que as professoras, principalmente freiras, colocavam os alunos de castigo por mau comportamento. O meu mundo era tão minúsculo quanto eu fui na infância. Cheio de limites, me fazia ter uma visão bem canhestra da realidade, embora eu fosse muito curioso. Por isso o fliperama significava mais do que diversão baseada em jogos eletrônicos.

Foi nas idas noturnas à Play Time que conheci crianças da minha idade que já bebiam, fumavam e se drogavam. Tinham uma linguagem própria que fazia eu me sentir um pouco estrangeiro. Era um universo que me intrigava e ao mesmo tempo me amedrontava. Eu os via de longe e às vezes deixava de jogar apenas para observá-los. Encostavam suas caixas ao lado das máquinas e acompanhavam os jogadores com os olhos. Davam palpites na tentativa de ganhar a confiança, uma oportunidade e quem sabe até uma ficha.

Lembro quando um desses garotos se aproximou de mim. Era um engraxate de não mais que 12 anos. Eu estava entretido com um jogo de tiros com cowboys chamado Sunset Riders, um dos mais disputados do lugar. De repente, ele cutucou meu ombro e disse: “Ei, você pode me deixar jogar? Sou bom nisso. Passo fácil essa fase aí. Deixa, vai!” Acabei cedendo. Era um garoto negro, franzino, de cabeça raspada e com as unhas cheias de vestígios de graxa. Conforme ele jogava, eu prestava atenção em suas mãos e expressões faciais. Era melhor que eu. Jogava com muita vontade.

A impressão que tenho até hoje daquele momento é de que enquanto aquele garoto não vencia na vida ele merecia pelo menos vencer no jogo. E era o que acontecia. A verdade é que não o deixei jogar pensando se ele passaria de fase ou não. Tanto que depois comecei a dividir metade das minhas fichas com ele, independente do desempenho. Em troca, conheci um pouquinho do seu mundo numa permuta não declarada. Me contou que trabalhava das sete até as oito da noite – nem sempre recebia pelo serviço que prestava. Às vezes tinha que fugir para não apanhar dos clientes mais abusivos.

O chamavam de Graxinha e me recordo, numa reminiscência enuviada e parcial, quando revelou que nasceu e foi criado na Vila do Sossego, atual Vila Alta, na periferia de Paranavaí. “É um lugar pra lá do buracão. Moro do lado, numa barraca. Mas nem dá nada. Não vou pra casa sempre. Acostumei a dormir por aí, em banco de praça ou na rodoviária. Assim não preciso ir e voltar todo dia”, relatou. Ficou atônito, ou pelo menos fingiu, quando um dia me pediu um isqueiro e expliquei que não tenho. “Ué, você não fuma? Vai me dizer que também não bebe?”, questionou. Quando respondi sem jeito que não, Graxinha fez uma expressão mimética de surpresa, se calou por segundos e soltou uma gargalhada. Fiquei envergonhado. Só balancei a cabeça e dei um sorriso acanhado.

Desinibido, mas cuidadoso, circulava por Paranavaí só em turma. Dizia que era perigoso andar sozinho porque “de noite a vida do marginal vale menos do que durante o dia”, algo assim. O grupo era formado por sete ou oito engraxates, todos menores de idade. Meu pai conhecia cada um e sempre pagava algo para eles comerem e beberem. Acho que fazia muito mais do que isso. Com o tempo, me dei conta que meu pai, que um dia também foi engraxate, não me levava apenas para jogar, mas também para aprender mais sobre a vida e o mundo. O contato com esses garotos garantia isso. Era como uma aula semanal de “experiência mundana”.

No mesmo período eu soube que muitos dos engraxates de Paranavaí que tinham essa faixa etária inalavam cola de sapateiro, tíner e benzina. Uns diziam espontaneamente que era o jeito de suportar a vida na rua ou o frio rigoroso que chegava no final de junho, ainda que pudesse afetar a mucosa do nariz. Ingenuamente outros se “fantasiavam” de adultos com um cigarro em uma mão e um copo de cerveja na outra. Na ausência de referências, eram precoces que viviam à sua maneira numa época em que crianças podiam tranquilamente comprar bebida alcoólica ou tabaco.

Apesar disso, sempre vi esses garotos como bastante amigáveis. Apenas tentavam sobreviver com o que conseguiam engraxando sapato até tarde da noite. Me pareciam destemidos, mesmo quando estavam agachados e cabisbaixos nas esquinas, armazenando suas ferramentas de trabalho dentro de caixas personalizadas com palavras aleatórias, frases e desenhos feitos à caneta. Na Play Time e em muitos outros estabelecimentos comerciais, alguns clientes os desprezavam tanto que os xingavam e iam embora quando eles chegavam. Os engraxates não gostavam de briga, então só ignoravam. Felizmente, o Eduardo, proprietário da casa de fliperamas, sempre os recebia com cordialidade e respeito.

Um dia, sem avisar ninguém, Graxinha desapareceu. A última vez que o vi ele estava sorrindo e acenando enquanto pegava carona no estribo de uma Caloi Cross branca como a cor do seu boné. Uns afirmam que foi embora de Paranavaí, outros comentam que o assassinaram. Quase 20 anos depois, conheci o lugar onde o jovem engraxate viveu. Não havia mais nada. No local, só um vazio, alguns restos mortais de cães e gatos, uma placa com um trecho do salmo 22, um pouco de lixo e um céu que parecia mais baixo e nebuloso do que em qualquer outra parte da cidade.

 





O estigma social da Vila Alta

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Maria de Fátima: “Todo mundo era cidadão em outro bairro e aqui se tornou um João Ninguém”

Maria de Fátima no cruzamento com a Rua do Ipê, principal via de acesso da Vila Alta (Foto: Reprodução)

Maria de Fátima no cruzamento com a Rua do Ipê, principal via de acesso da Vila Alta (Fotos: David Arioch)

Uma das lideranças da Vila Alta, um dos bairros mais pobres de Paranavaí, no Noroeste Paranaense, a catadora de recicláveis Maria de Fátima Oliveira conta um pouco da história do bairro que um dia foi conhecido como Vila do Sossego e atualmente soma mais de três mil moradores. Desse total, muitos já foram vítimas de preconceito social.

O começo nos anos 1970

A história da Vila Alta teve início em 1977, quando moradores de outros bairros foram obrigados a migrar para uma área desabitada além da Vila Operária. “Era só mato, não tinha nem árvore. Mudei pra cá alguns anos depois e lembro que aqui onde moro hoje só havia duas famílias, uma no Lote 1 e outra no Lote 16”, diz Maria de Fátima que já trabalhou como empregada doméstica, guarda e boia-fria. A catadora de recicláveis, assim como muitos outros habitantes da Vila Alta, nem sempre viveu na periferia.

Maria, que há 35 anos morou na região central de Paranavaí, serve de exemplo para mostrar como o desenvolvimento de um município pode ser prejudicial aos menos favorecidos. “Do Centro, mudei para o Jardim Panorama. De lá, fui para o Jardim São Jorge, até que me vi obrigada a vir pra cá, quando foi decretado o despejo. Isso aconteceu dois dias depois que cheguei do hospital com um filho recém-nascido”, lembra.

Maria de Fátima, uma das principais lideranças do bairro (Foto: David Arioch)

Maria de Fátima: “Éramos excluídos da sociedade e muitos nos tratavam como ‘lixo humano’”

Os barracos de lona e os casebres de lata de óleo

Muitos dos moradores da Vila Alta passaram por situação semelhante por causa da supervalorização do custo de vida em outros bairros. “Todo mundo era cidadão em outro bairro e aqui se tornou um João Ninguém. Éramos excluídos da sociedade e muitos nos tratavam como ‘lixo humano’”, desabafa Maria de Fátima que aponta como um dos principais pioneiros o falecido Zé Bala.

Na década de 1980, ainda não havia muitas residências no bairro que se formou a partir da Rua Benedito Brambila. A maior parte da área era ocupada por barracos de lona e casebres feitos com latas de óleo de cozinha. “Era tanto barraco que a gente parecia um bando de urubus. Sempre fazia aquele barulhão quando o vento batia”, comenta.

O preconceito contra os moradores

A população também não contava com recursos básicos. Assim como a energia elétrica, o acesso à água surgiu bem depois, e de forma precária, quando o Centro Social Urbano instalou duas torneiras no bairro. Para piorar, conseguir emprego no comércio local era quase impossível. “No Centro, ninguém dava emprego para quem era da Vila Alta. As moças e os rapazes mentiam, mas logo que descobriam eram demitidos. O preconceito era muito grande”, revela Maria.

A Vila Alta pouco evoluiu em mais de 30 anos (Foto: David Arioch)

Por falta de opção, crianças passam o dia nas ruas

Um ex-gerente de uma loja de departamentos de Paranavaí, que pediu para não ser identificado, ressalta que por muitos anos recebeu recomendações para não contratar moradores da Vila do Sossego. “A gente tinha o costume de generalizar mesmo, era uma questão até cultural, de família e convivência social. Pensava que o morador de lá era diferente, não era confiável. A gente sempre o julgava da pior maneira”, admite outra testemunha, o empresário Juliano Fernão Garcia. Recentemente, um mototaxista pediu que o artista plástico Luiz Carlos Prates descesse da moto ao informar que o destino era a Vila Alta.

O desemprego e o trabalho braçal

Embora uma parte dos moradores tenha conquistado bom espaço no mercado de trabalho, concluindo o ensino superior e tornando-se enfermeiros e professores, a maioria ainda está relegada ao desemprego e às linhas de produção das agroindústrias, colheita de laranja, corte de lenha, mandioca e cana-de-açúcar.

“Muitos atuam como pedreiros fora de Paranavaí. Uma minoria trabalha no comércio e coleta materiais recicláveis”, relata Maria que ainda se recorda de episódios em que lojas da região central se recusavam a vender produtos para os moradores da Vila Alta, caso o pagamento não fosse à vista.

O sentimento de não pertencimento a Paranavaí

A Vila Alta pouco evoluiu em mais de 30 anos (Foto: Reprodução)

A Vila Alta pouco evoluiu em mais de 30 anos

A principal queixa dos moradores é a de que grande parte da população de Paranavaí não vê as qualidades do bairro. Por isso, há um sentimento de não pertencimento à cidade e uma crença de que ao longo de mais de 30 anos a maior parte das conquistas é resultado de um trabalho comunitário.

“Somos bem unidos, tanto que muitas casas foram feitas em comunidade, com a ajuda de vizinhos e amigos”, garante a catadora de recicláveis, sem deixar de citar que receberam ajuda de pessoas de outros bairros e cidades.

O orgulho da periferia

A Vila Alta se orgulha dos seus trabalhadores que atuam na construção civil. Muitos desempenham função determinante na criação de condomínios e luxuosas residências situadas nas áreas nobres de Paranavaí. O bairro também é visto pelos moradores como um celeiro de artistas, pintores e vendedores. Ainda assim, a população clama por mais empregos, já que muitos se distanciam da família quando conseguem trabalho somente fora de Paranavaí.

Entre os moradores entrevistados é unânime o desejo de ver no futuro uma Vila Alta mais moderna, com a estrutura de uma pequena cidade e maior renda mensal. A população reclama da falta de opções de lazer, tanto para crianças quanto adultos. “A situação não é fácil, mas estamos lutando para melhorar ainda mais a vida na comunidade”, acrescenta Maria de Fátima.