Archive for the ‘Vizinha’ tag
O gato que caiu no quintal
De vez em quando, deito no quintal, sentindo a brisa no rosto, na barba; e reflito um pouco. Hoje, enquanto me distraía com algumas ideias, ouvi um barulho estranho entre os arbustos do quintal vizinho. De repente, um gato saltou o muro e caiu na minha frente, quase entre as minhas pernas. Sem que eu pudesse entender o que estava acontecendo, o bichano veio para cima de mim.
Me afastei, e ele continuou mostrando as garras, um olhar cabuloso e nada amistoso. Mesmo parecendo tão pequeno diante de mim, o gato insistiu em me cercar.
— Que mal pode acontecer? É só um gato pequeno – inferi.
Mas aquele gato pequeno saltou em minha direção e, se eu não o tivesse segurado no ar, talvez tivesse até mesmo furado um dos meus olhos. Enquanto se debatia, ele tentava atingir ou puxar a minha barba de alguma forma. Tudo bem. O mantive à distância segura do meu rosto e caminhei até a casa vizinha.
— Este gato é da senhorita? Ele pulou no quintal de casa – expliquei, o entregando nas mãos da vizinha.
— É sim. Me desculpe pelo transtorno, ela está assim porque doamos um dos gatinhos que nasceu há algumas semanas.
— Ah, entendi. Não tem problema — comentei sem graça.
A moça não conseguiu velar a vontade de rir. Constrangido, me despedi, ela agradeceu, e caminhei de volta para casa. A primeira coisa que fiz foi entrar no banheiro. Me observei no espelho e tentei entender como a minha barba parece um filhote de gata.
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A mulher do apartamento ao lado
Há algum tempo, eu estava saindo com uma garota que morava em um apartamento bem pequeno. Então sempre que eu chegava quando ela estava no banho, a gente tinha o costume de conversar pela porta. Eu nem entrava, simplesmente ficava no corredor. Só que um dia uma senhora que morava no apartamento ao lado abriu a porta e apareceu só de toalha, me pedindo para falar baixo porque ela se sentia vulnerável com o som da minha voz. Me desculpei e ela replicou:
“Você não entende que eu estou pelada? Só com esta toalha por cima? Não quero ouvir a sua voz, ela me traz lembranças desconfortáveis. Simplesmente não quero ouvi-la! Você não entende?” Fiquei confuso, mas respondi que entendi sim. Ela retrucou que se eu entendia não deveria falar mais nada no corredor, já que ela se sentia incomodada. Alegou que eu estava interferindo em sua privacidade de sentir-se nua e livre. Ainda disse que minha voz afugentava seu corpo.
Fiquei assustado e preocupado. Comecei a bater com força na porta do apartamento e minha garota disse que logo sairia. A idosa continuou me observando de longe, com um olhar inquisidor, muito esquisito e desafiador. Insatisfeita, ela abriu um pouco mais a porta e arregalou os olhos. Mesmo titubeante, declarei:
“Olha, senhora, eu só estou aguardando a minha garota aqui. Por favor, não quero confusão. Talvez a senhora esteja muito sensível. Me perdoe se fiz algo de errado.” Sobressaltada, franziu a testa e gritou: “O quê? Como ousa, seu filho da puta!” Então ela soltou a toalha, abriu bem a porta, deu dois passos completamente pelada, parou e ficou me olhando fixamente.
Ruborizado, sem saber como reagir, mirei a parede à minha direita e mantive meus olhos em um ponto fixo. Antes de fechar a porta, aquela senhora fez uma careta e gritou: “Seu porco!” várias vezes. Segundos depois, minha garota saiu e caímos fora de lá o mais rápido possível.
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A morte da senhora vizinha
Uma senhora que morava na minha rua morreu. O anúncio foi feito por dois cães mestiços que tentavam invadir a casa. Eles uivaram e deixaram marcas de garras na porta da cozinha. Em poucos minutos, esculpiram um emaranhado de riscos, sincretismo de tristeza e desespero. Sentiram sua ausência antes de testemunhá-la morta, caída na cozinha, vítima de AVC.
Juntos, cavaram um buraco no quintal, na ingênua tentativa de chegar até ela. Não se deixaram abater. Só abandonaram o buraco quando ouviram alguém abrindo o portão. Era o filho. “Mãe…mãe…cheguei!” Lorenzo e Matino se aproximaram do rapaz. Com os focinhos cheios de terra, latiram simultaneamente.
Desafinados pela estafa e pela desarticulação da surpresa, lamentaram como crianças órfãs, que ainda não aprenderam a falar. Lágrimas escorreram, assim como o uivo fragilizado e prolongado que, oscilante, se perdia como os fios de água que desciam incertos pelas bocas de lobo. O filho abriu a porta e os cães se adiantaram até a cozinha. Lamberam as mãos da mulher que já não existia.
O rapaz tapou a boca e gritou, reprimindo o som e engolindo o bafo quente como rajada de fogo. Enxugou as lágrimas na camiseta e chamou o Corpo de Bombeiros. “Não há mais o que ser feito.” Circulando o corpo, Lorenzo e Matino uivaram mais uma vez. Roufenho, o filho berrou: “Perdão, mãe! Perdão!” Sem fazer barulho, os cães se aproximaram e lamberam as mãos do rapaz.
Com a chegada dos funcionários da funerária, embalaram o corpo em um saco de PVC e partiram. O filho foi atrás, em seu carro, acompanhado por Lorenzo e Matino. Com a cabeça atravessando a janela, seguiram uivando para o nada, ou para o tudo, já que a vida celebra a morte tanto quanto a morte celebra a vida.
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