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Você se lembra de mim?
Perto do Banco do Brasil, um rapaz se aproximou de mim sorrindo e perguntou se eu me recordava dele.
— Lembro sim. Você ficou um tempo na rua, não?
— Sim. Então, parei com o crack, mano. Na verdade, parei com tudo.
— Que bom, cara. Muito bom mesmo saber disso.
— É…agora estou bem mesmo. Estou limpo desde o final do ano passado. Não tive nenhuma recaída e estou trabalhando também.
— Você é um exemplo. Pode ter certeza. Isso é uma grande notícia.
— Você acha que estou bonito?
— Está sim. Nem parece o mesmo cara.
— Recuperei todo o peso que perdi enquanto fumava pedra. Olha minha roupa limpinha e nova.
— Ficou muito bem em você.
— Comprei sexta quando recebi o pagamento.
— Que beleza.
— Fiquei mais de ano vagando pela rua, noiado mesmo. Você lembra que eu andava pedindo dinheiro, né?
— Lembro, claro que lembro.
— Isso já passou. Voltei a trabalhar como ajudante de marceneiro também. Tô feliz, cara, de verdade.
— Me desculpe se estou incomodando, falando demais.
— Que isso. Claro que não. É sempre bom receber uma notícia assim. Anima qualquer um com um pouquinho de sensibilidade.
— Valeu mesmo! Vou indo porque amanhã tenho que acordar bem cedo pra trabalhar.
— De nada, cara. Fique bem. Bom trabalho e siga o seu caminho.
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Uma lição de amor à vida
João Mariano surpreende pela capacidade de ver beleza naquilo que passa despercebido pela maioria
Lançado ontem no YouTube, o documentário João Mariano, um curta-metragem de menos de 15 minutos, produzido com um Nokia Lumia 1020, é o meu mais novo trabalho audiovisual. Em meio a muitas reflexões e lembranças, principalmente reminiscências da juventude e das tragédias familiares, o documentário mostra o estilo de vida minimalista do aposentado João Mariano.
Um senhor de 87 anos que ainda tem muita vontade de viver, apesar de tantas perdas e das limitações impostas pela idade, Mariano surpreende pela sensibilidade e capacidade de ver beleza naquilo que passa despercebido pela maioria. Sente prazer na simplicidade de existir e no privilégio de pensar com a mesma acuidade de quando era mais jovem.
Radicado em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, desde 1955, o aposentado que trabalhou até os 84 anos relembra a infância e a adolescência no interior do Ceará. Também fala sobre a tranquila rotina e as experiências mais impactantes de sua vida. João Mariano tem uma relação especial com a natureza e a vida, e isso nem mesmo os problemas de saúde que surgiram na idade avançada são capazes de desqualificar.
O aposentado celebra a vida diariamente à sua maneira e prova que mesmo quando nos tornamos idosos ainda somos crianças e adolescentes. O maior exemplo disso é a passagem em que cita as muitas vezes na infância da década de 1930 em que o pai o chamou para balançar na rede com ele. “Era muito gostoso”, declara sorrindo como petiz o homem de 87 anos.
João Mariano diz como conheceu Clarinda, a namorada com quem fugiu para se casar em 1955, seu primeiro e único amor. Após a separação e o falecimento dela em 2008, o aposentado nunca mais se relacionou com ninguém. “Eu sinto falta dela, de ver ela. Fiquei sozinho e estou até hoje”, enfatiza sensibilizado. Se emociona ao se recordar da morte do filho José Cláudio, vítima de câncer com apenas 42 anos. “Morreu nos braços da irmã dele. Pra mim foi um choque. É uma coisa que tem hora que parece que é mentira, não uma realidade”, lamenta.
O aposentado conta ainda uma exemplar história de honestidade vivida no início da década de 1940, quando era jóquei na região de Iguatu, no Centro-Sul do Ceará. “Meu gosto mesmo era viver até 100 anos. Aproveitar bem do nosso país”, revela rindo. Em seguida, comenta que às vezes fica abalado com o fato de ter visto tanta gente partindo, já que não resta mais ninguém dos seus tempos de infância e adolescência.
Por outro lado, reconhece que estar vivo é uma vitória. Em síntese, o documentário é uma lição de amor à vida. João Mariano ensina que independente do que passamos nada deve ser mais forte do que a vontade de seguir em frente. A trilha sonora do filme é assinada pela banda finlandesa de pós-rock Magyar Posse.
Observação
Não consegui disponibilizá-lo no YouTube com a qualidade final da produção, mas creio que a perda esteja dentro do aceitável.
O amor e a romã
Jamais entendi como o amor, tão colorido simbolicamente, poderia ter compleição tão funesta
Ao longo da vida, sempre ouvi alguém dizendo que o amor, confundido com paixão, é arrebatador, como se feito de fagulhas de insipiência. Quando chega até você o cega e o torna avesso ao juízo e à razão das coisas serenas. O consome de forma inesperada, deixando os lábios ressequidos como chão tracejado pela estiagem severa. Quantas histórias conheci de suicídio por amor; pessoas saltando de prédios, lançando carros contra árvores, se enforcando, consumindo estricnina e atirando contra a própria cabeça. Jamais entendi como o amor, tão colorido simbolicamente, poderia ter compleição tão funesta.
O amor não deve ser como o luto, um manifesto de pesar. Nem merece ser relacionado à morte se abarca na sua essência os destemores da luz. O coração que ama em abnegação só obscurece quando deixa de bater, este sim fato irremediável do nosso epílogo. Mas enquanto vive é corado e robusto como uma manga colhida em março. Está além do bem e do mal. O amor é belo na literalidade, na pureza de sua semântica. Nem por isso unilateral ou menos distorcido e depreciado por imperícia, fabulações e desconstruções de sentido.
Não que não haja dor no amor, afinal ela é inerente à vida e nos envia iterados sinais de que o sofrimento também dignifica a existência; ensina que somos pechosos, frágeis e efêmeros como todos os seres que habitam a Terra. Porém, um sentimento torna-se nocivo somente se assim o permitirmos. Pelo menos é o que me mostra a vida desde que comecei a reconhecer o seu enredamento e profundidade.
Com não mais que sete anos, eu morava com meus pais e irmão em uma velha casa na Rua Pernambuco. À época, uma parte da população de Paranavaí ainda tinha o costume de realizar velórios na sala da própria residência. Um dia, do outro lado da rua, a pouco mais de 50 metros de casa, caminhando e passando os dedos da mão direita pelo muro pintado com cal, parei em frente a um portão onde vi e ouvi pessoas num choro tacanho, conversando e coçando os olhos.
Estavam ao redor de um caixão preto tão lustroso que parecia um sapato desmesurado recém-engraxado. A sala era pequena e as pessoas, dependendo da estatura, quase roçavam o umbigo e o peito na cabeça da falecida para chegarem ao banheiro. Por causa da distância, eu não conseguia ver seu rosto coberto por um tecido níveo que mais lembrava um véu de noiva. Sabia que era mulher porque ouvi alguém dizer que a finada era a Dona Estela. “Ué, tão enterrando ela com pano de festa?”, me perguntei num rompante de espontaneidade e singeleza.
Na manhã seguinte, quando saí pra comprar pão, encontrei Seu Onofre, marido de Dona Estela, caminhando a passos lentos, rindo sozinho, e sem apontar os olhos para nada que o cercava nas imediações de uma padaria na Avenida Distrito Federal. Parecia num transe solene e talvez disparatado na concepção de alguns. Me aproximei, o cumprimentei, e num ato tipicamente irrefletido de criança, questionei: “Seu Onofre, por que o senhor tá rindo se sua mulher morreu ontem?”
Então ele continuou em silêncio por três ou quatro segundos enquanto me observava e ajeitava o penúltimo botão superior de uma camisa florida, dessas que os aposentados usam quando saem de férias para um paraíso tropical. Sua tez e seus olhos reluziam tanto que eu podia ver o meu pequeno reflexo distorcido nas suas pupilas amendoadas e aveludadas.
“Olhe, David, você ainda é muito criança, não sei se vai entender, mas vou lhe revelar um segredo. Não me sinto feliz, só que me comprometi em reencontrar um novo sentido na minha vida. Antes de Estela falecer, ela sabia o quanto eu era dependente dela. Ela foi minha primeira e única companheira por mais de 40 anos, desde a adolescência. Então sabe o que ela fez quando ficou doente e lhe contaram que não viveria por muito tempo? Não se lamentou. Tirou um caderninho de dentro do criado-mudo, pegou uma caneta e planejou minha vida, meu dia a dia pelos próximos cinco anos. Ela sempre soube que sou relaxado. Disse que era pra eu seguir direitinho, assim não me sentiria perdido. Se antes eu conseguisse recomeçar uma nova vida, eu poderia abandonar o caderninho. Senão, bastaria reiniciar as tarefas. O primeiro dia é hoje. Dê uma olhada!”
Peguei o caderninho com as duas mãos e lá estavam as primeira sugestões. “Querido Onofre, meu grande amor, se levante amanhã, tome um bom banho, vista a camisa florida que está no primeiro cabide, a bermuda bege da segunda gaveta e as sandálias castanhas que estão na primeira fileira da sapateira. Vá até a padaria caminhando vagarosamente e sorria. Lembre-se da primeira vez que nos vimos, de quando nos casamos, de quando Laurinha nasceu. Não deixe de sorrir, mesmo que as pessoas o julguem. Ignore toda a negatividade. Mais cedo ou mais tarde esse exercício há de contagiar o seu coração, transformando a dor em uma nova forma de amor.”
Devolvi o caderninho e caminhamos até a padaria. Lá, me pagou um doce e uma sodinha. Preservou o sorriso a maior parte do tempo, inclusive quando me relatou as dificuldades que passaram nos anos 1950 em Paranavaí. “Nossa casinha era praticamente um ranchinho. A gente não tinha geladeira, então só podia comprar alimento que não estragasse rápido. Éramos jovens, muito jovens, só que felizes num lugarzinho no meio do mato”, disse, já com os olhos marejados.
Na volta, notei que durante o trajeto Seu Onofre acariciava com esmero a aliança na mão esquerda. Havia um silêncio morno e abafado como o de um escafandro que se misturava aos sons de motos, carros e caminhões atravessando a Avenida Distrito Federal. De repente, a rescendência desconfortável daquela fugaz amostra de poluição foi ofuscada pela olência uniforme e sutil de um buquê de lírio azul transportado a pé por uma jovem funcionária de uma floricultura. “Era a preferida da Estela. Ela chamava de Xodó Azul”, comentou Seu Onofre num riso lacônico.
Em frente ao portão de sua casa nos despedimos. Quando eu estava me afastando, gritou meu nome e pediu que eu o aguardasse. Logo voltou trazendo nas mãos de palmas rosadas uma porção de romãs colhidas no quintal. “Que nunca falte amor na sua casa, assim como nunca faltou na minha”, falou com um lhano sorriso. Continuei visitando Seu Onofre até 1993, quando morávamos no Jardim Progresso. Com o tempo, minha rotina mudou e a dele também, até que perdemos contato.
Um dia, em 2002, recebi uma carta assinada pela sua filha Laurinha que vivia em Curitiba há mais de 15 anos. Achei até que a correspondência foi enviada por engano, pois já não me recordava dela. Quando abri o envelope, encontrei sementes de romã, trazidas da Palestina, e uma pequena carta. “Meu querido e bom amigo David, o que morre hoje, renasce amanhã, desde que o coração assim o aceite. Saiba que nem mesmo o Mar Morto conseguiu ofuscar o perfume das romãs que irradiavam até Jericó”, escreveu Seu Onofre.
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