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O Quintal Mágico de Sergio Torrente
“Não tinha como não transformar o lugar onde moro naquilo que vivo diariamente, a arte popular”
Em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, quem passa pela Rua Antônio Felipe em direção à Praça dos Pioneiros se depara com uma residência bem chamativa à direita. É lá, no número 1676, que vive o artista popular Sergio Torrente. Num colorido cenário, Sergio prova que na vida poucas coisas são realmente descartáveis, ainda mais quando um artista tem a sensibilidade de dar um novo sentido até para objetos que cabem na palma da mão e já não funcionam mais, como um velho despertador à corda.
Depois de passar por uma sala, onde também fica o escritório de Torrente, vou mais adiante, atravesso a cozinha e a última porta da casa. Então encontro meu destino, o motivo da visita, o Quintal Mágico, dividido em três espaços. “Não tinha como não transformar o lugar onde moro naquilo que vivo diariamente, a arte popular”, justifica o artista sorrindo.
Entre pinceladas de tinta verde, amarela e azul, há três anos surgiu um palco e alguns bancos doados por uma igreja do Jardim São Jorge, agora pintados num azul anilado. Em pouco tempo, chegaram peixinhos, flores e gira-giras, penduricalhos criados por Sebastião Torrente, pai de Sergio, que hoje adornam uma bela e frutífera jabuticeira. “Começou a se transformar e vimos que ele estava mágico, então surgiu a ideia de dar o nome de Quintal Mágico, um espaço onde a arte popular floresce, onde artistas autorais podem se apresentar”, enfatiza.
Pelo local já passaram compositores locais como o próprio Sergio Torrente, Marquinhos Diet, Fernando Bana, Rogério Esquivel e João Henrique. Todos os fazedores de música de Paranavaí podem se apresentar no Quintal Mágico. Ao final da performance é passado um chapéu e quem quiser pode contribuir. “Tem que aproveitar o espaço que é nosso”, comenta. Depois peço que me leve até SáD´Zabumbê, onde uma pequena e estreita abertura no muro exige que cada convidado se abaixe para entrar, fazendo uma reverência ao rei, um boneco grande que tem pés no lugar das mãos e mãos no lugar dos pés.
Após sair de uma limítrofe cobertura de lona escura, piso no solo de SáD´Zabumbê, que é melhor aproveitado se você estiver descalço, sentindo a energia da terra. Há um palco bem rústico, que remete ao início da civilização, delimitado por duas ripas e um tronco fino. No muro se vê sapatos pendurados, uma analogia de que tudo que cobre os pés deve ficar suspenso. As trepadeiras também crescem livremente em várias direções. “A energia foi chamando”, acredita Sergio.
O local conta somente com a iluminação de uma fogueira, lampião ou luz de velas para criar um clima mais tribal, intimista e informal. Torrente não se preocupa com a ordem das coisas no ambiente, pois elas se ajeitam naturalmente. “Terminamos de tomar uma garrafa de vinho e simplesmente a colocamos aqui, junto com todas as outras que fazem parte de uma simbologia do sangue e da despreocupação”, revela e acrescenta que ao trocar a água pelo vinho o homem deixa de ser motivado pela razão e se guia pela emoção.
O palco de SáD´Zabumbê também foi criado para a encenação do espetáculo “Oração”, do renomado escritor, dramaturgo e cineasta espanhol Fernando Arrabal, de quem Sergio Torrente conseguiu autorização para a montagem da peça. “A minha ‘Oração’ tem direção do capixaba Wilson Coêlho, grande dramaturgo e pesquisador que possui os direitos do espetáculo no Brasil. Apresentei ‘Oração’ na versão original, em espanhol, em 2010 em três festivais na Argentina. Agora quero marcar uma reestreia para 30 a 40 pessoas, discutindo as questões da culpa e da des…culpa, da origem do conhecimento”, pontua enquanto empurra sobre o solo de SáD´Zabumbê um carrinho de bebê com três bonecos que fazem parte do espetáculo, representando Fídio, Lilbé e seu filho.
Por dois a três minutos, Sergio manipula os personagens, encenando em espanhol um fragmento criterioso de “Oração”, a busca do casal por um sentido em suas vidas. Em frente ao modesto palco há uma mamoneira envolta por fitas e uma pinheira. A primeira é uma árvore de recordações em que as fitas representam as histórias, a trajetória humana. “A vida nada mais é do que momentos de felicidade e esses momentos são criados por nós, seja na intenção de viver, ouvir coisas boas ou estar presente. E o Quintal Mágico celebra isso”, argumenta. Sobre o nome, SáD´Zabumbê é um neologismo da junção dos termos regionalistas “sassinhora” e “zabumbê” que juntos significam senhora felicidade. “Se você entrar por baixo, ela vai te levantar. A ideia aqui é manter o espírito de luz, a boa energia em alta”, defende.
A Ação B, o segundo e maior espaço do Quintal Mágico, que fica entre SáD´Zabumbê e a futura Fábrica de Brinquedos, possui um palco com três palmos de altura, usado para apresentações musicais de duas ou três pessoas. Foi construído a partir de cacos de telhas, sobras de lajotas, tijolos e outros restos de entulho. “Assim que mudei pra cá, fui limpando e colocando tudo num canto. Quando vi aquele monte de tranqueira feia pra danar, armei uns palanques, espalhei tudo isso e compactei. Assim surgiu outro palco”, narra.
Nas “Terças Encantadas”, a partir das 19h30, a diversão no local é baseada em prosa, viola, violão, risos e fogueira. “A gente brinca até as 22h, é o suficiente, até porque o vizinho tem que dormir e nós precisamos trabalhar no dia seguinte”, avisa. No sábado e no domingo os encontros começam às 15h e terminam por volta das 19h. O sinal de que o Quintal Mágico está aberto para quem quiser entrar são as luzinhas acesas na entrada da casa. “Viu a luz? É só vir pro fundo”, sugere.
O céu aberto permite que os convidados tenham um visão privilegiada da Lua e das estrelas enquanto se divertem em torno da fogueira. Nos finais de semana o Quintal Mágico convida todos a retornarem à infância, em rodas de brincadeiras e de cirandas, tocando tambores. “’Esta ciranda quem me deu foi Lia que mora na ilha de Itamaracá…’ E assim por diante. A gente pede que as pessoas se sintam à vontade, pisem no chão, façam coisas que não estão acostumadas a fazer todos os dias”, recomenda o artista que também pretende realizar rodas de congo e coco.
No terceiro espaço do Quintal Mágico, Sergio e o músico Rogério Esquivel vão coordenar pesquisas para a fabricação de brinquedos populares. A ideia é futuramente oferecer oficinas para adultos e crianças. “Queremos incentivar todo mundo a brincar como antigamente. Chegou a hora de desligar um pouco a TV, o computador e o celular. Aqui eles vão aprender a fazer um traca-traca, um mané gostoso – aquele que pula, um jogo de trilhas, damas. Enfim, joguinhos que meu pai brincava comigo quando criança e o pai dele brincou com ele”, explica.
Cada oficineiro vai assumir o compromisso de produzir três ou quatro brinquedos, feitos principalmente de materiais recicláveis, para doações em comunidades carentes. Além disso, o Quintal Mágico está recebendo brinquedos quebrados para serem consertados e doados. E como diz a letra da música de Torrente: “Uma cidade tem que ter uma canção, um santinho padroeiro para lhe dar proteção. E tem que ter uma bodega sempre aberta, uma cachaça esperta e um louco de plantão. Vamos fazer a nossa bodega aqui”, canta e informa Sergio.
Coordenada por Sol Púrpura, a bodega deve promover ainda mais a interação e a valorização mútua dos frequentadores do Quintal Mágico. “Em breve vamos oferecer pizza, docinhos caseiros, um vinhozinho, uma cachacinha artesanal, os penduricalhos do Seu Tião, brinquedos populares e o que vier. Todo mundo pode trazer alguma coisinha pra expor e vender, inclusive você. Precisamos de pessoas que venham somar, ajudar para que as coisas aconteçam”, declara.
Antes de eu ir embora, Sergio me serve um café fresco, abraça a viola, canta a plenos pulmões e toca percussão com os pés. A cantoria é acompanhada de uma interpretação singular repleta de trejeitos e caretas. A cada batida o chão treme, os objetos passeiam pela estante azul, os penduricalhos se agitam e as cores vibrantes nas paredes reforçam a alegria emanada de um cenário naturalmente festivo. “As cores, a brisa, o olho vibrando, tudo isso faz com que a alma cresça. É muito bom ver que você voltou com vontade de conhecer ainda mais o Quintal Mágico. É bacana. O Quintal Mágico, SáD´Zabumbê, já pegou você!”, anuncia ao notar a minha satisfação em divulgar a magia de um lugar que contrasta com a tecnologia e a célere realidade da vida urbana.
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