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Um convite animador
Um amigo que é escritor e professor no Espírito Santo entrou em contato comigo me contando que vai fazer um trabalho com estudantes de 13 a 16 anos sobre hábitos e práticas que tratam os animais com crueldade. Depois disso, eles vão enviar cartas para um ativista para relatar esse trabalho e o que eles aprenderam com isso. Eu fui escolhido para me corresponder com essa garotada. São alunos da zona rural de uma cidade pequena, e muitos deles ainda preservam um espírito infantil e inocente, segundo o meu amigo. Fiquei feliz com isso.
O sacrifício do casamento
Moradores de Paranavaí tinham de se casar em Mandaguari
Geraldo Bruno e Guilhermina Baptista viviam na zona rural de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, e decidiram se casar em 1951, após dois anos de namoro. O maior obstáculo na época era que não havia cartório de registro civil, obrigando-os a irem até Mandaguari. Apesar da distância de cem quilômetros, o casal aceitou o desafio para formalizar a relação. Saíram de mãos dadas numa madrugada de outono, antes do galo cantar, com a intenção de chegar a Mandaguari no mesmo dia. “Fomos a pé e não deu tempo de achar o cartório aberto, então dormimos numa pensão, em quartos separados, e nos casamos no dia seguinte pela manhã”, relata a pioneira Guilhermina Baptista, acrescentando que hoje quando conta aos netos pensam que é invencionice.
Geraldo e Guilhermina levaram as roupas e os sapatos do casamento dentro de uma bolsa de estopa, pois sabiam que chegariam sujos em Mandaguari. “O caminho foi bem tortuoso, mas a vontade de casar era tanta que parecia que não existia mais nada além de nós dois na estrada”, comenta Guilhermina em tom de nostalgia, esboçando um largo sorriso. Geraldo Bruno, com um olhar disperso no tempo, lembrou que viajaram de galocha porque tinha chovido dias antes e o lamaçal pelo caminho podia deixá-los descalços se percorressem todo o trajeto com calçados comuns. “Atenção era tudo porque dependendo de onde a gente pisava a lama afundava”, frisa Bruno.
A viagem foi longa e os dois não conseguiram chegar limpos a Mandaguari, mas pelo menos viajaram com roupas escuras para evitar que a sujeira ficasse mais evidente. “Quando passava algum caminhão ou jipe por perto, a gente tinha que cortar pela mata. A paisagem fazia valer a pena. Era bonita demais e tinha muitos bichos pela floresta, fora o verde que forrava o chão pra gente pisar em cima, o que deu mais segurança”, diz Guilhermina.
O casamento no cartório de Mandaguari foi testemunhado por desconhecidos, pois naquele tempo a viagem não compensava para quem iria apenas assinar o testemunho da oficialização. Além disso, poucos tinham automóvel. Por isso, alguns casais tinham de ir a Mandaguari a pé para se casar.
Em Paranavaí, os familiares já estavam preparando a cerimônia na igreja e também a festa de casamento. “Deixamos tudo acertado. Mesmo assim a viagem demorou mais do que a gente imaginou. Levamos dois dias pra ir a Mandaguari casar e depois voltar pra Paranavaí. Na volta, a gente ficou mais feliz porque tinha dado tudo certo”, afirma Geraldo Bruno. A viagem foi muito cansativa, mas, entre sorrisos e olhares, o casal declara que seria capaz de fazer tudo de novo se ainda fossem jovens. Guilhermina confidenciou que antes do matrimônio o relacionamento se limitou a abraços não muito íntimos e carícias na mão.
“Era tudo muito diferente de hoje, havia uma relação muito forte de respeito e cumplicidade. Era bem mais gostoso porque muitas moças só se envolviam quando sabiam quais eram as intenções do rapaz. A gente também tinha certas curiosidades, mas valia a espera”, enfatiza. Quando não eram casados, de acordo com Geraldo Bruno, só saíam de casa com a autorização dos pais de Guilhermina. “Só dava pra namorar nos finais de semana e ainda assim tinha um limite, por volta das 21h, no máximo, eu tinha que levá-la pra casa. Se passasse um minuto além da conta era punido. Ficava uma semana sem ver a Guilhermina”, explica. Geraldo e Guilhermina Bruno têm mais de 80 anos e estão juntos há mais de 60.
Curiosidade
Em 1951, Paranavaí ainda era Distrito de Mandaguari. O título de município só foi assegurado em dezembro de 1952.
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“O pessoal dizia é meu e era mesmo”
Pioneiros falam sobre a grilagem de terras nos anos 1940 e 1950
Em 1946, o mineiro Enéias Tirapeli passou por uma situação vivida por muitos outros pioneiros de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, entre as décadas de 1940 e 1950: teve as terras griladas durante uma viagem de visita aos familiares.
Tirapeli contou que quando chegou a Paranavaí a colônia era administrada pelo marceneiro curitibano Hugo Doubek, também responsável por emitir documentações de imóveis que asseguravam o direito de posse. “Naquele tempo, quando um lote não custava nada, levava de um a dois anos para cortarem o terreno”, garantiu o pioneiro mineiro.
Certa vez, Tirapeli viajou até São Paulo para visitar a sogra e quando retornou a Paranavaí tinham grilado seus oito imóveis. “Perdi até as mandiocas que tinha plantado. O pessoal dizia é meu e era mesmo. Ninguém contrariava. Já tinha polícia aqui, mas não adiantava porque o costume era o sujeito construir em cima e se declarar dono”, afirmou o mineiro.
De acordo com a pioneira paulista Isabel Andreo Machado, era muito comum nas décadas de 1940 e 1950, as pessoas assumirem propriedades de terras sem terem qualquer documentação. “Havia muita briga e morte. Eu cheguei a ver o assassinato do sogro do Mauro Valério em frente à Caixa Econômica Federal por causa disso”, revelou a pioneira fluminense Palmira Gonçalves Egger.
Conforme palavras do pioneiro cearense João Mariano, o período mais intenso de crimes motivados pela posse de terras perdurou por mais de dez anos, de 1945 até 1956. “A partir de 1957 que a coisa começou a melhorar porque já havia uma boa força policial na cidade. Antes disso, Paranavaí era uma terra onde cada um fazia o que bem entendia. Quando o crime era causado por gente graúda a polícia não ousava interferir”, enfatizou Mariano que viu muita gente conhecida morrer em conflitos com grileiros por não querer abrir mão de um terreno.
O cearense ainda declarou que em Paranavaí há pessoas que fizeram fortuna sobre a infelicidade alheia. “Algumas riquezas nasceram do sangue derramado na época da colonização. Mas cada um tem a sua consciência e sabe o que fez para chegar onde chegou. É uma justiça que não cabe aos homens colocar em prática”, comentou, acrescentando que alguns grileiros tinham amizade até mesmo com governadores e outras autoridades.
João Mariano frisou que sobreviveu ao período da grilagem de terras porque nunca se envolveu em conflitos de posses. “A vida vale mais que um pedaço de chão, ainda mais quando você tem uma família pra sustentar”, salientou. Em 1950, querer fazer justiça com as próprias mãos, bancar o corajoso e enfrentar tudo de “peito aberto” era quase um chamado para a morte. “Muitos grileiros nem sujavam as mãos, andavam rodeados de capangas que faziam o serviço por eles. Alguns a gente nunca soube quem eram. Os jagunços de quem se ouve falar eram como os laranjas do tráfico de drogas, ou seja, mesmo que morressem, isso não mudaria a realidade porque pois tinha gente grande por trás” disse Mariano.
O cearense lembrou um episódio chocante vivido por uma família que morava na zona rural de Paranavaí em setembro de 1953. Para evitar problemas, preferiu não citar nomes. “Eram meus vizinhos, sete pessoas, dois adultos e cinco crianças que trabalhavam como colonos numa roça perto de Alto Paraná. O homem tinha conseguido juntar um dinheirinho ao longo de anos pra comprar uma chácara perto da cidade”, relatou. Uma semana depois da negociação, a família foi surpreendida por três capangas que tentaram expulsá-los de suas terras.
Como a visita inesperada aconteceu à tarde e havia vizinhos observando, inclusive o pioneiro João Mariano, os homens foram embora e retornaram de madrugada. Invadiram o casebre e assassinaram a tiros toda a família, deixando rastros de sangue pela casa. “Não pouparam nem as crianças que tinham entre cinco e doze anos. Me falaram que uma delas estava segurando uma bonequinha de espiga de milho toda ensanguentada. Teve gente que entrou lá pra ver, mas eu não tive coragem. A polícia só apareceu no local dois dias depois do crime”, reclamou João Mariano, confidenciando que jamais esqueceu o “cheiro” de tantas mortes.
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