David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

Archive for the ‘Imoguiri’ tag

“O Poço”: sociedade, miséria e aspirações humanas

without comments

Lançado em 2019 e disponibilizado pela Netflix em fevereiro deste ano, “El Hoyo”, que no Brasil recebeu o nome de “O Poço”, é um filme do espanhol Galder Gaztelu-Urrutia, que mistura suspense, terror e ficção científica.

No início, somos apresentados ao único elemento capaz de manter os personagens da história vivos – a requintada e faustosa comida oferecida pela administração de uma peculiar prisão vertical, preparada em uma cozinha que parece de um hotel de luxo.

O esmero no processo de preparo e as repreensões a qualquer falha acrescentam um rigor sardônico que contrasta com o cenário aviltante da prisão – um local que não se sabe onde fica, talvez pela despersonalização da própria realidade contextual – que pode ser qualquer lugar ou lugar nenhum.

A nós, basta apenas saber que a maioria, que não temos ideia de quem são, está lá cumprindo pena por algum crime (ou não), e dependendo do andar onde estão instalados, têm a oportunidade de comer uma vez por dia, quando desce uma plataforma com comida, caso os condenados dos andares de cima não tenham consumido tudo. Ou seja, ganha a liberdade aquele que conseguir manter-se vivo (alimentado) até a conclusão da pena.

Nesse cenário, conhecemos Goreng (Ivan Massagué) e Trimagasi (Zorion Eguileor). O primeiro, que chegou à prisão por vontade própria. aceitando cumprir uma pena de seis meses em troca de um título, tenta conversar com o velho condenado por atirar uma TV pela janela e matar de forma acidental um imigrante.

A princípio, Trimagasi se mostra desinteressado e incomodado com qualquer pretensão de socialização. Mas, com o passar dos dias, acabam criando um vínculo e uma conveniente relação de proximidade e mutualidade – inclusive nas atividades mais simples do dia (ou noite) – já que Gaztelu-Urrutia também desconstrói uma percepção tradicional de temporalidade a partir de um cenário soturno de poucas mudanças que, em alguns momentos, lembra um palco.

Trimagasi, uma figura enigmática amoral que parece saída de um filme expressionista alemão, instiga mais ilações por parte do espectador atento quando não diz nada do que quando fala. Afinal, seu corpo e seus olhos se comunicam muito – assim como seu pescoço contraído enterrado entre os ombros.

Com suas frases curtas, que trazem uma carga simbólica acompanhada de uma expressão desconfiada, satírica e vacilante, que reafirmam a crença de que nem tudo pode ser dito na luta pela sobrevivência, ele incorpora a imprevisibilidade da natureza humana diante da adversidade.

Goreng já é o oposto – e chega a ser tão transparente na sua própria e cândida expressão de ser (a começar pelo motivo de sua prisão) que tem sua ingenuidade celebrada por Trimagasi, que vê nisso um prazer e oportunidade. Não que o velho seja uma incorporação da maldade, mas apenas alguém pragmático tentando manter-se vivo o máximo que pode para “sair daquele buraco infernal”.

Quando Goreng se depara pela primeira vez com o que restou do banquete vindo dos andares de cima, que é o elemento mais importante daquele jogo injusto pela sobrevivência, que também é um retrato da nossa realidade capitalista, ele sente asco e se recusa a comer por dois dias. Nutre nojo ao testemunhar a maneira como Trimagasi com suas pequenas mãos violenta a mesa como um bárbaro esfaimado.

Gaztelu-Urrutia utiliza recursos semelhantes ao de cineastas como o italiano Ettore Scola em “Feios, Sujos e Malvados”, acentuando de forma caricata a repulsa e o antojo momentâneo ao evidenciar uma emergência da miséria de hábitos, que nasce de uma naturalização forçada pela experiência contínua.

Ou seja, o velho estava lá há muito tempo e, de alguma forma, se tornou parte do “poço”, ainda que ansiasse pela sua “liberdade”. Já Goreng estava lá em corpo, mas todo o resto ainda se alheava àquela realidade que lhe parecia estranha – medonha e taciturna que mostra farrapos humanos capazes das ações mais inacreditáveis.

A sua humanidade, neste caso como expressão de algo positivo, é preservada pela sua relação com um livro – “Dom Quixote”, de Cervantes, que ajuda na manutenção de sua lucidez e na crença de que se o corpo é castigado pela realidade, sua mente pode se nutrir pelo lirismo da irrealidade. Mas o velho e qualquer outra pessoa da prisão vê aquilo como expressão de fraqueza – com exceção da mulher que o entrevistou e o encaminhou para aquele lugar.

Quando são enviados a um dos andares onde a comida já não chega, porque os presos de cima não se importam com a fome ou sobrevivência dos demais, numa evidenciação do individualismo, Goreng amanhece amarrado e amordaçado. A amizade que, julgou verdadeira com Trimagasi, já não tem valor, pelo menos numa avaliação em que o velho não se imagina sobrevivendo por muitos dias sem se alimentar. Neste caso, sobreviveria não o mais forte, mas aquele mais “apto” à perpetuação do sistema.

Dessa vez o prato é Goreng. O velho o mantém na cama de concreto por dias, até que não resiste e decide cortar o primeiro pedaço de carne da perna do rapaz. A antropofagia acompanhada de uma concepção romântica medonha que antecipa uma ação, ainda que motivada pela sobrevivência, carrega um caráter ritual, embora naquele contexto vazio em significação até determinado momento.

Trimagasi é interrompido e degolado por Miharu (Alexandra Masangkay), uma jovem a quem Goreng já tinha tratado com consideração em uma situação anterior quando revelou preocupação com o seu bem-estar. A empatia então suplanta a miséria do ardil que guia a sobrevivência e a retribuição vem na forma do assassinato do velho. Miharu é arrebatadora e personifica vontade e instinto mais do que qualquer outro personagem daquela prisão – ela tem motivação – “um filho”. Mas também (avessa à socialização – os outros não importam) não fala, e não demora a partir.

Goreng já amanhece em outro andar – dividindo a cela com Imoguiri (Antonia San Juan), que cuida de um cãozinho, Ramsés II. A companheira de cela de Goreng personifica sensibilidade, justiça e consciência – tanto que se voluntariou como presa para testemunhar o “maldito sistema” com seus próprios olhos. Sua prisão também é uma forma de expiação e busca por redenção após ter enviado outros para aquele mundo.

O primeiro indício disso é que ela come um dia sim e um dia não para revezar com o cãozinho que a acompanha. Além disso, tenta instruir os outros presos dos andares inferiores a comerem duas pequenas porções de comida e prepararem outras duas para os presos do andar subsequente. Eles se negam a ouvi-la. Goreng, sensibilizado com a iniciativa de “redistribuição de possibilidades de sobrevivência”, usa uma tática mais agressiva que os convence. Ela reprova o método, mas acaba reconhecendo ausência de escolha.

Quando são enviados a um dos andares onde a comida não chega, Imoguiri comete suicídio em sacrifício a Goreng, a quem ela vê como o personagem providencial que pode promover uma grande mudança no sistema. Possivelmente também fez isso motivada por sentimento de retribuição – já que foi ela que o entrevistou e o encaminhou para “O Poço” em troca do título que ele tanto almejava.

Com a morte de Imoguiri e o sentimento de culpa de Goreng, ele, mais do que nunca, passa a sofrer uma crise existencial e a ter visões com Trimagasi, que assume uma forma de “outra consciência” de Goreng; o que é gerado tanto por um sentimento de culpa por ter sido obrigado a se alimentar do velho como também por já não se ver como quem era – se qualificando como alguém em nível de paridade com Trimagasi – ainda que o não tenha matado.

A realidade e uma combinação de sentimentos conflitantes, dinamitados, entre outros fatores, pelo reconhecimento malquisto do próprio canibalismo, que em um devaneio ganha status de antropofagia (que pode ser sua consciência tentando se eximir de culpa), o levam a comer as páginas do seu livro “Dom Quixote”, que é, de forma alegórica e simbólica, o seu único contato com o mundo externo e com a sua identidade pré-prisão.

O canibalismo também assume um caráter simbólico pessimista – de que há momentos em que a continuidade da vida em um mundo imerso em miséria material e imaterial depende do quanto estamos dispostos a anular outras existências. Goreng então amanhece no sexto andar, onde divide a cela com Baharat (Emilio Buale).

Quando Baharat decide fugir utilizando uma corda, na tentativa de chegar ao andar zero, mas é sabotado pelo casal de presos do quinto andar enquanto a escala, Goreng, imerso em um estado de inércia, recobra a consciência e assume um compromisso de fazer justiça diante de todas as perdas e infortúnios testemunhados naquele lugar. O seu primeiro ato é segurar Baharat quando ele provavelmente cairia morto com sua corda nos andares inferiores.

Reparação, justiça e redenção se tornam uma missão. Goreng divide com o companheiro de cela o plano de descer por todos os andares obrigando os presos dos primeiros 50 andares a jejuarem, permitindo que aqueles confinados nos andares inferiores possam receber uma pequena porção de comida, assim garantindo que os alimentos sejam redistribuídos de forma justa – colocando um fim à desforra e às mortes desnecessárias.

Nessa parte do filme, Goreng, como “justiceiro social” quer “destruir o sistema”. Há então uma crítica ainda mais clara ao capitalismo, egotismo e exclusivismo – já que em uma escala que segue uma ordem de superior a inferior – aqueles que estão nas escalas mais baixas, como numa divisão arbitrária de classes, não devem ser considerados e, se tiverem de ser sacrificados pelos de cima, está tudo bem, porque já são tipificados, mesmo em um lugar onde as posições e os privilégios são transitórios mês a mês, como inferiores ou de “segunda classe” – que não acrescentam nada ao mundo.

Os prazeres da dominância têm curto prazo de validade em “O Poço”, mas são o suficiente para os humanos, submetidos a situações extremas, sentirem-se envaidecidos pela própria pobreza imaterial – e é isso que garante o sistema da prisão, que funciona de acordo com as atitudes de seus prisioneiros. Avareza, violência, assassinato podem ser influenciados pelo meio, mas a decisão sobre o que fazer em cada momento é de responsabilidade da baliza moral (ou ausência dela) de cada um – com a isenção da administração, que apenas testemunha o espetáculo. Prova disso é que não há intervenção externa quando os presos decidem, por algum motivo, migrar de andar.

Com um senso de justiça à flor da pele, Goreng e Baharat, que personificam a busca por uma igualdade que mimetiza a grosso modo os princípios do socialismo, descem andar a andar, ameaçando aqueles que tentam comer mais do que o suficiente. Então encontram o “Sábio”, mestre de Baharat que diz que eles não devem impor nada, mas sim tentar dialogar.

Também devem selecionar um alimento para que chegue até a administração, quando a plataforma retornar ao topo, para deixar claro que eles alcançaram seu objetivo de provar que é possível despertar um senso de identidade e consideração coletiva – neste caso a sobremesa panacota, que eles passam a defender a qualquer custo como a “mensagem” ou mesmo “bandeira” de sua luta.

A tentativa soa alentadora, mas logo que voltam a descer sobre a plataforma pelos andares inferiores o diálogo é suplantado pela violência e até mesmo pelo assassinato daqueles que ousam atacar a mesa (plataforma) para se alimentarem. Então temos um banho de sangue em que uma “luta não violenta” dá vazão a uma selvageria em que acreditam que justifica os fins.

A partir daí, se o capitalismo alimenta a virulência da desconsideração do que seja o outro e seus interesses e vontades, privilegiando uma minoria, as experiências ditas socialistas ou comunistas (que são uma apropriação ideológica indevida) que descambaram no mundo para algum tipo de regime autoritário também são condenadas por Galder Gaztelu-Urrutia. O que fica claro é a evidenciação de uma cegueira moral em busca de um bem maior, que já não é, de todo, um bem e se apequena a partir dos meios utilizados para conquistá-los.

Em uma das celas, a dupla é atacada por dois homens que lutam como mercenários, e representam uma forma violenta de estranhamento e resistência irrefletida. Um deles havia matado Miharu. Baharat é ferido mortalmente, mas consegue resgatar Goreng, depois que “matam” os dois prisioneiros.

Então “descobrem que há muito mais andares inferiores do que imaginavam”. Em um deles, encontram a filha de Miharu, que Goreng pensava que fosse um menino. Após a resistência de Baharat, cedem à sensibilidade, por vezes inimiga da razão, e acabam entregando a panacota à menina que, faminta, a come – mas preserva os mesmos olhos desconfiados e titubeantes da mãe.

Baharat, que parecia personificar um espírito ancestral de guerra, já não resiste por muito tempo em decorrência dos ferimentos e morre. Mas a “luta continua”. Sozinho, Goreng ultrapassa o andar 300 quando a plataforma para e ele reencontra Trimagasi, saído da escuridão, que o lembra que a menina é a mensagem e que ele deve deixá-la retornar sozinha, já que um mensageiro é desnecessário.

Na realidade, Trimagasi é uma idealização sonial de Goreng, no pré-morte, e que sucumbiu depois de ser espancado até a morte na mesma cela em que Baharat recebeu um golpe letal. Essa combinação entre onírico e absurdo, que no caso do protagonista resulta de uma incompletude, de uma vontade irrealizável, trouxe-me lembranças de Arrabal e Jodorowsky.

Em síntese, “O Poço” é um retrato da sociedade, da reafirmação da ideia de que por pior que seja um cenário, ainda teremos miseráveis lutando por sua manutenção e até mesmo por estar no topo, junto aqueles que perpetuam a miséria dos seus.

Por isso, somente a educação pode ser capaz de mudar nossas relações com o mundo e com nós mesmos. Enquanto não estivermos preparados para uma mudança estrutural e não semearmos isso nas bases, nos depararemos com tentativas que podem se transformar naquilo que mais condenamos e desprezamos – indo na contramão do que acreditamos como justiça social.

Ademais, “O Poço” também é um filme que em pouco mais de 90 minutos explora com singularidade as aspirações humanas nas situações mais extremas e improváveis da existência, onde somos impelidos a agir para não nos desvanecermos – de forma alegórica e real. Afinal, o que seríamos capazes de fazer para alcançar um objetivo maior ou mesmo sobreviver?