David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

Archive for March, 2014

Um ataque suicida por um lugar no paraíso

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Crianças e adolescentes respondem por 80% dos ataques terroristas no Afeganistão

Ataque a santuário em Cabul matou nove familiares de Tarana Akbari (Foto: Reprodução)

Ataque a santuário em Cabul matou nove familiares de Tarana Akbari (Foto: Reprodução)

No início de 2013, o jornalista canadense Shane Smith, um dos fundadores da companhia de mídia Vice, esteve no Afeganistão para produzir o documentário “The Killer Kids of the Taliban”, lançado em abril do mesmo ano. Na ocasião, teve a oportunidade de entrevistar muitas crianças e adolescentes convocados pelo Taliban para participarem de ataques suicidas. São jovens que só não morreram porque a Polícia Secreta Afegã conseguiu impedir que as bombas fossem acionadas.

Ainda hoje muita gente se pergunta por que o maior movimento fundamentalista islâmico do Afeganistão usa crianças em seus ataques terroristas. A reposta é simples. Os mais jovens passam pelos postos de segurança com facilidade e podem circular por qualquer lugar sem serem notados. O porta-voz do Diretório Nacional de Segurança (DNS) da Polícia Secreta Afegã, Lutfullah Mashall, disse a Smith que desde a invasão dos Estados Unidos o país registra todos os anos mais de cem ataques suicidas. Do total, pelo menos 80% são cometidos por crianças e adolescentes. “Eles são os preferidos do Taliban porque muitos são pobres, analfabetos e não conhecem de verdade o Alcorão”, revelou.

“The Killer Kids of the Taliban” é um documentário sobre a realidade dos jovens terroristas afegãos (Fotos: Reprodução)

“The Killer Kids of the Taliban” é um documentário sobre a realidade dos jovens terroristas afegãos (Fotos: Reprodução)

De acordo com Mashall, um talib, estudante do livro sagrado, é capaz de lutar e morrer pelo que acredita, mas jamais usaria um colete-bomba. “The Killer Kids of the Taliban” mostra que as crianças não têm real conhecimento das consequências de seus atos. “O imã Marouf [uma autoridade religiosa] nos disse para ir até a província de Logar e cometer suicídio. Ele falou: ‘Coloque as bombas em seu corpo e aperte o botão. Eles morrerão e você continuará vivo’”, relatou um garoto não identificado.

Entre os convocados pelo Taliban, há muitos jovens que não sabem que os coletes são explosivos. Alguns pensam que estão apenas transportando documentos. Em 2013, para se ter uma ideia da gravidade da situação, uma criança de seis anos conduziu um ataque suicida na Província de Paktika, a 244 quilômetros de Cabul. Com base nesses exemplos, o jornalista da Vice deixa claro que o poder de persuasão, mesmo baseado em mentiras, é a principal ferramenta do Taliban na hora de recrutar crianças e adolescentes.

O discurso de que é preciso ficar em frente a um hotel até a hora certa se repetiu muitas vezes. Normalmente, as bombas são acionadas por controle remoto quando chega algum comboio estadunidense, da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) ou Força Internacional de Assistência para Segurança (Fias). Um garoto afegão preso na sede do DNS, chamado Kanjar, recebeu treinamento quando estudava no Paquistão. Os próprios professores o ensinaram a cometer suicídio, afirmando que assim ele iria para o paraíso.

“Não tivemos tempo de ler o Alcorão o suficiente para entendê-lo. Só nos disseram que o suicídio era permitido e deveríamos nos preparar para o paraíso. Quando coloquei o colete, me perguntei por que eu iria explodir a mim mesmo?”, contou Kanjar que em um grande momento de tensão só pensou na possibilidade de ficar em pedaços. Depois de preso, o jovem percebeu que o suicídio não poderia lhe proporcionar nada de bom. Além disso, a prática é condenada pelo Alcorão. Embora esteja arrependido, Kanjar continua preso, acusado de crime hediondo.

Abdul, outro adolescente entrevistado por Shane Smith, justificou que quis colaborar com o Taliban porque soube que há muitos infiéis rasgando o Alcorão e o jogando na latrina. “Fiquei nervoso ao saber que o nome do profeta é profanado”, comentou. Abdul, que nunca leu o Alcorão, também recebeu treinamento para usar um colete-bomba, crente de que assim ganharia um lugar no paraíso. Na turma do adolescente havia centenas de garotos se preparando para cometer ataques suicidas.

Em 2013, pouco antes da chegada da equipe da Vice a Cabul, um santuário foi alvo de um ataque terrorista que matou 58 pessoas. Entre as vítimas estavam nove familiares de Tarana Akbari, uma garotinha que sobreviveu, mas ficou marcada por estilhaços da bomba. Naquele dia, o fotógrafo afegão Massoud Hossaini tinha ido ao local para registrar a procissão do flagelo com correntes. “Foi quando tudo aconteceu. Vi muitas pessoas correndo da fumaça e, de repente, ela desapareceu. Me vi cercado por cadáveres de crianças, mulheres, homens jovens e idosos”, explicou ao canadense. Hossaini testemunhou o momento em que Tarana começou a chorar e gritar.

Caída ao chão, a mãe de Tarana pediu ao fotógrafo para ajudá-la a pegar o seu filho, uma criança pequena. Um homem que estava mais próximo recolheu o menino do chão e viu que havia muito sangue saindo da cabeça. “Aí ele me disse: ‘Esse menino já foi’. O pôs no chão e simplesmente foi embora”, destacou Hossaini. Tarana enfatizou que os corpos caíram como se fossem ovelhas. No ataque terrorista, além do irmão, a jovem perdeu tias e primos.

“Todas as mulheres estavam lá, assim como muitas crianças. Era um santuário. Não havia um lugar melhor para eles atacarem, como um gabinete do governo? Eles atingiram só pessoas inocentes e indefesas!”, desabafou o pai de Tarana. Outro familiar questionou por que a Al-Qaeda está matando tanta gente no Afeganistão se isso vai contra tudo o que está no Alcorão. “Será que nunca leram o livro sagrado? Se tivessem lido, saberiam que não é permitido matar!”, disparou.

Mesmo com o intenso trabalho do Diretório Nacional de Segurança, que tenta evitar que jovens se tornem terroristas, a prática ainda é frequente e reincidente. Após o lançamento do documentário “The Killer Kids of the Taliban”, Shane Smith foi informado que dois garotos perdoados por serem jovens demais foram coagidos mais uma vez e flagrados se preparando para novos ataques.

Com um calmo tom de voz, um dos homens mais importantes do Taliban, Syed Mohammad Akbar Agha, um ex-jihadista e mujahidin que lutou contra os russos e comandou muitas tropas, deixou claro a Smith que enquanto os EUA estiverem no Afeganistão os ataques vão se intensificar cada vez mais. “Tudo vai Continuar. Não tenha dúvida”, garantiu. Quando o jornalista da Vice o interpelou sobre os ataques suicidas, defendendo que são condenáveis pelo Alcorão, Akbar Agha sorriu e respondeu apenas que o Taliban tem grandes muftis, estudiosos islâmicos, que reconhecem a legitimidade da prática.

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As verdadeiras academias estão morrendo

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O treinador Rob King fala sobre o fim dos bons ginásios e a expansão dos “centros de fitness”

King: "“O que é vendido hoje como novo e fresco, acredite, já foi feito antes."

Rob King: “O que é vendido como novo e fresco, acredite, já foi feito antes.” (Foto: Acervo Pessoal)

O treinador Rob King, 40, é um apaixonado por musculação que fundou há alguns anos a Heavyweights Training Center e a Heavyweights Sports Supplements em Mount Pearl, na província de Newfoundland and Labrador, no Canadá. Com a experiência de quem acompanha a expansão mundial da cultura fitness, King afirma que as verdadeiras academias estão morrendo e vê com preocupação o crescimento desenfreado dos chamados “centros de fitness”. Segundo ele, na atualidade, muitas academias vendem mais ilusões do que resultados.

“O que é vendido como novo e fresco, acredite, já foi feito antes. Não existe nenhuma novidade. É o que podemos chamar de falsas reinvenções”, afirma. Rob King ingressou no mundo da musculação há 25 anos. Quando colocou os pés pela primeira vez em uma academia, logo se sentiu intimidado pela atmosfera do ambiente. “Imagine você, eu era um skatista de 15 anos que praticava artes marciais em frente de casa. Queria muito levantar pesos, mas tinha medo de entrar em uma sala de musculação”, diz.

Apesar do receio, o canadense encarou o desafio. Ainda considera o primeiro dia de treino como uma das experiências mais assustadoras de sua vida. “Quando entrei, vi um sujeito de cara fechada que mais parecia um guerreiro. Ele estava levantando pouco mais de 100 quilos no supino reto. Pra mim, parecia que eram mais de 400”, conta.

O temor se dissipou quando Rob se tornou parte de um grupo de marombeiros que treinava diariamente após às 18h. À época, o ginásio não tinha máquinas, com exceção de alguns rústicos aparelhos com cabos. “Quase tudo se resumia a barras, halteres e uma barra fixa. Muitos dos equipamentos pareciam caseiros. Na verdade, acho que eram”, destaca. Não havia esteiras na academia de King. Mesmo assim, ninguém sentia falta. Alguns nem sabiam o que era. Quando surgiram as primeiras, a surpresa foi geral. “Era um negócio enorme, gigante. Agora percebo como estou ficando velho”, comenta em tom bem humorado.

King: "Defendemos que quanto menor o número de pessoas agindo como hamsters em uma esteira, melhor!"

“Defendemos que quanto menor o número de pessoas agindo como hamsters em uma esteira, melhor!” (Foto: Acervo Pessoal)

“As pessoas estão preocupadas em sentir dor”

Quando pondera sobre a realidade atual das academias, lamenta o fato de que o comprometimento com os resultados foi deixado de lado. “As academias de hoje não são ginásios, mas sim ‘centros de fitness’”. As pessoas estão mais preocupadas com a possibilidade de sentirem dor ou ficarem com as mãos calejadas. Até transpirar parece exagerado, o que diriam então sobre fazer ruídos ou deixar os pesos caírem?”, questiona, lembrando que já viu marombeiros serem repreendidos por levarem pó de giz para algumas academias.

A expansão dos “centros de fitness” é definida por Rob King como um fenômeno mundial que pode piorar um pouco mais. E a culpa disso são daqueles que encaram a musculação como um sacrifício, atividade banal, ocasional ou meramente recreativa. Afinal, se esse é o pensamento de quem busca uma academia, com certeza, muitos proprietários vão se aproveitar disso para oferecer um serviço de baixa ou péssima qualidade. “Temos academias ruins porque há clientes que buscam isso. Se muitos dos frequentadores fossem conscientes, bem informados e tivessem bons objetivos, pode acreditar que muita gente pensaria duas vezes antes de se tornar instrutor ou abrir uma academia”, dispara.

“Defendemos o conceito Warehouse Gym

Por outro lado, Rob King tem fé que no futuro o mundo da musculação seja mais direcionado ao básico. “Não vejo razão para abrir mão daquilo que sempre funcionou muito bem. Aqui na América do Norte, estamos divulgando o máximo possível o conceito Warehouse Gym que se pauta no uso de halteres, trenós, cordas e correntes. Defendemos que quanto menor o número de pessoas agindo como hamsters em uma esteira, melhor!”, destaca.

Transformação recente de um dos alunos do canadense (Fotos: Rob King)

Transformação recente de um dos alunos do canadense (Fotos: Rob King)

O mais curioso é que na América do Norte o retorno ao básico encontrou uma grande base de defesa entre pessoas que não são atletas, mas amam treinar. “A diferença está sendo feita por gente que nas horas vagas se dedica ao treino duro e pesado. Propagamos a ideia de que não são necessários muitos equipamentos para proporcionar bons resultados”, conta.

Quando Rob King decidiu fundar a sua primeira academia, ele alugou um pequeno salão. À época, tinha apenas uma gaiola de agachamento, um pneu grande, algumas cordas e modestos equipamentos de pequeno porte. “O que não me faltava era a capacidade de criar, me divertir e me desafiar”, explica, acrescentando que nunca se preocupou em comprar aparelhos aeróbicos.

O interesse pela musculação levou o treinador a participar de competições de bodybuilding e powerlifting. “Comecei aprendendo e continuo aprendendo. Viajo muito e invisto na minha educação. Estou sempre em contato com os melhores do ramo. O conhecimento constante é essencial para quem quer ajudar as pessoas”, garante.

"Ingressei no ramo com apenas 200 dólares em suplementos" (Foto: Acervo Pessoal)

“Ingressei no ramo com apenas 200 dólares em suplementos.” (Foto: Acervo Pessoal)

“Odeio ver tanta gente sendo enganada”

Segundo o treinador canadense, é animador ver o aumento da popularidade da cultura fitness nos últimos anos. Afinal, isso mostra que há muita gente querendo entrar em forma. Em contraponto, o interesse também fez surgir novas e grandes empresas que priorizam o lucro. “Não me entenda mal, sou totalmente a favor do fitness, mas vejo que estamos sendo engolidos pelas ‘big boxes’ ou o que chamo de walmart das academias”, reclama.

Exercícios incoerentes, uma infinidade de máquinas, atividades aeróbicas em que a pessoa não sai do lugar e treinos repetitivos por longos períodos são algumas das características dos “centros de fitness”, na perspectiva de King. “Por incrível que pareça, tudo isso me deu mais fôlego para tentar fazer a diferença. Odeio ver tanta gente sendo enganada por essas bobagens”, desabafa.

"Estamos sendo engolidos pelas ‘big boxes’ ou o que chamo de walmart das academias" (Foto: Acervo Pessoal)

“Estamos sendo engolidos pelas ‘big boxes’ ou o que chamo de walmart das academias.” (Foto: Acervo Pessoal)

“Jurei a mim mesmo que me superaria”

Na adolescência, com uma precoce obsessão por músculos, Rob se inspirou em Arnold Schwarzenegger, após ser hipnotizado pela interpretação do ex-bodybuilder no filme “Conan, O Bárbaro”, de 1982. Quando não podia ir ao ginásio treinar, corria para o quarto do irmão, onde se exercitava com um par de velhos halteres de concreto. Depois, começou a ler tudo que encontrava sobre musculação, até que surgiu a oportunidade de trabalhar na área administrativa de uma academia. Cansado de ficar atrás de uma mesa, se graduou e se tornou treinador.

“No meu quarto, eu tinha uma prateleira com 200 dólares em suplementos. E foi assim que ingressei no ramo de vendas. Anotava tudo que comercializava em uma caderneta. Mais tarde, me mudei para Vancouver e percebi que estava infeliz”, ressalta. O próximo passo foi voltar para a casa do pai e abrir uma loja de suplementos. Sem dinheiro e sem orientação, se arriscou. Dividia o tempo entre a recém-aberta Heavyweights Sports Supplements e o trabalho de treinador em uma academia.

King quando conheceu Arnold Schwarzenegger em 1999 (Foto: Acervo Pessoal)

King quando conheceu Arnold Schwarzenegger em 1999 (Foto: Acervo Pessoal)

“Jurei a mim mesmo que me superaria, que faria de tudo para transformar a vida de muita gente. Me comprometi em torná-los mais fortes e saudáveis. Encontrei a minha verdadeira paixão e nunca olhei para trás”, confidencia. Hoje, King tem o próprio ginásio, uma boa equipe e se orgulha de ter mudado a vida de milhares de pessoas. Além de treinador e empresário, também é palestrante e autor de mais de dez livros sobre fitness, saúde e qualidade de vida.

O encontro com Arnold Schwarzenegger

Em 1999, Rob King usou todas as economias para viajar para Columbus, em Ohio, nos Estados Unidos. Naquele ano em que o grande vitorioso foi o lendário bodybuilder alemão Nasser El Sonbaty, o objetivo de King era conversar com Arnold Schwarzenegger no Arnold Classic. “Foi a melhor experiência que tive aos 25 anos. Sem dúvida, mais um sonho realizado”, enfatiza.

Saiba Mais

Rob King é colaborador dos sites T-Nation, EliteFTS, Schwarzenegger, JasonFerrugia, BretContreas, PTPower, KickBackLife, Super-Trainer, DeanSomerset, InsideFitnessMag, ExerciseForInjuries, FixingMuscleImbalances, FitProInferno e da revista Muscle-Insider.

Dicas de Rob King para quem sonha em abrir uma academia

Você não precisa de muitas esteiras

Você não precisa da aprovação de ninguém

Você não precisa ter um ginásio crossfit

Você não precisa de um ginásio grande

Você precisa gostar de ajudar os outros

Você precisa ter uma mente aberta

Você precisa ter uma fome constante de melhorias

Você precisa querer fazer a diferença

Entenda, todas as grandes coisas começaram como pequenas

Comece agora!

Mais diplomacia e menos guerra

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Crise na Ucrânia vai muito além do que a grande mídia informa

Crise na Ucrânia vai muito além da política e da economia (Foto: Getty Images)

Situação envolve mais do que economia e política (Foto: Getty Images)

Penso que a situação na Ucrânia não é menos delicada do que foi a do Kosovo, Tchetchênia, Sérvia e Montenegro. E pra citar dois períodos hoje remotos, o fim do Império Austro-Húngaro em 1918 e a invasão Bolgar muitos séculos antes. Não há nada simplista quando se trata de povos que, embora dividam o mesmo espaço, e estão sujeitos às mesmas conjunturas sociais e econômicas, possuem formações culturais e posições políticas convergentes e divergentes.

Não acho que o problema da crise na Ucrânia seja apenas político e econômico, embora tenha surgido na grande mídia com tal conotação, até porque esse foi o estopim. Vai muito além disso. Infelizmente, a imprensa tem a mania de aproveitar o fato de que não pensamos em plano cartesiano. Então nos bombardeiam com informações que nos confundem demais ou nos permitem julgar algo da maneira mais superficial possível.

Na minha avaliação pessoal, as manifestações na Ucrânia têm a ver com a sua própria trajetória e as muitas transições que surgiram em centenas de anos, começando pelo século 7. É um país com uma história bem complicada de dominância e submissividade. Me recordo que a Ucrânia já sofreu influência russa, búlgara, polaca, lituana, cossaca, mongol, cazar, tártara, viking e bizantina. E acho que tem mais por aí…

Nacionalistas ucranianos mandam mensagens aos russos por meio de depredações (Foto: Reprodução)

Nacionalistas mandam mensagens aos russos (Foto: Reprodução)

Hoje, muitos preferem não pensar muito sobre o assunto, incorrendo no erro de simplesmente amar ou odiar a Rússia, concordar ou discordar das manifestações na Ucrânia. Acho que mais importante do que julgar objetivamente a influência oriental ou ocidental é a necessidade de ponderar sobre uma resolução baseada na diplomacia. Sim, os nacionalistas ucranianos odeiam a Rússia e isso tem muito tempo. Usam símbolos controversos para afrontar os russos.

Nestor Makhno, líder russo perseguido pelos soviéticos até 1921 (Foto: Reprodução)

Nestor Makhno, líder ucraniano perseguido pelos soviéticos até 1921 (Foto: Reprodução)

Não são poucos os jovens que desfilam pelas ruas de Kiev gritando “Heil Hitler”, o popular 88 do movimento nazista, bem como as 14 palavras do slogan “Devemos assegurar a existência de nosso povo e um futuro para as crianças brancas.” São clichês perpetuados há muito tempo. Entretanto, até que ponto e em que proporção isso representa o pensamento do povo ucraniano? Simplesmente não representa. É apenas uma das vozes da Ucrânia moderna, mas está longe de conquistar a simpatia da maioria, como alguns tentam pincelar.

Considero justas algumas reivindicações dos nacionalistas. Embora dentre os defensores do Nacional Socialismo ucraniano tenha muita gente endossando o movimento somente durante as manifestações, há boas justificativas para não simpatizarem com a Rússia. Entre os anos de 1917 e 1921, os soviéticos perseguiram Nestor Makhno, o maior líder da Revolução Ucraniana. Contrário aos bolcheviques, se tornou o principal desafeto de Leon Trotsky.

À época, o intelectual marxista contratou dois homens para assassiná-lo. Não conseguiram porque o ucraniano fugiu para a França, onde viveu até morrer de tuberculose. Nem todos tiveram a mesma sorte. Antes o Exército Vermelho dizimou milhares de ucranianos. Pouco tempo depois, em 1930, foi a vez de Josef Stalin promover dois dos maiores genocídios do povo ucraniano. Com isso, a Ucrânia enterrou parte de sua herança cultural, já que entre os mortos estavam muitos artistas e intelectuais. Isso explica, mas não justifica o ódio generalizado dos nacionalistas ucranianos contra os russos.

O nacionalismo surge como força transformadora em momentos de grande vulnerabilidade. Ele é contraditório em essência porque consegue ser bom e ao mesmo tempo ruim. É bom porque obriga o ser humano a assumir uma posição ativa, olhar para si mesmo, para sua história e a dos seus. Em concomitância, é ruim porque o cega para suas falhas e o faz julgar o que é diferente como uma deformidade, uma degeneração com um viés idiossincrásico bem limitado. Além disso, como defender um Estado e uma cultura homogênea quando a própria arquitetura do país simboliza a diversidade? Uma das sete maravilhas da Ucrânia é o Castelo Kamianets-Podilskyi, um símbolo do multiculturalismo do Leste Europeu.

Castelo Kamianets-Podilskyi, símbolo do multiculturalismo do Leste Europeu (Foto: Ukraine Incognita)

Castelo Kamianets-Podilskyi, símbolo do multiculturalismo do Leste Europeu (Foto: Ukraine Incognita)

É importante levar em conta que a Ucrânia é um país com mais de 7,5 milhões de pessoas de origem russa. Sendo assim, o que aconteceria com os ucranianos de origem russa, caso os nacionalistas assumissem o poder? Quando falo em diplomacia, penso que seria justo os ucranianos terem direito a uma maior “ocidentalização”, se for o desejo da maioria, assim como ouvir e avaliar as queixas dos nacionalistas.

Por outro lado, também é certo assegurar os direitos dos russos que vivem na Ucrânia, afinal, eles também estão lá para contribuir, trabalhar e constituir família. Não devem ser responsabilizados por algo que não fizeram. Ser Pró-Rússia na Ucrânia é ainda uma forma de autodefesa para muitos descendentes de russos e outras minorias.

Ouso dizer que a história da Ucrânia faz parte da história da Rússia e vice-versa. O maior exemplo disso é “A Crônica Primária”, um trabalho que ganhou status de documento em 1767. A obra é de autoria de Nestor, considerado um dos maiores estudiosos da cultura eslava de todos os tempos.

David Arioch, apenas um entusiasta da cultura do Leste Europeu.