Archive for March, 2020
No mercado em tempos de coronavírus
Fui ontem ao mercado e levei um susto. Parecia um daqueles pré-feriados em que as pessoas se preparam para festejar no domingo. Cheio de gente. Acabei indo embora para retornar mais tarde. Quando voltei, encontrei um cenário de poucas mudanças.
Nos alto-falantes um funcionário pedia o tempo todo que as pessoas mantivessem distância de dois metros e não fizessem compras em grupos, que somente uma pessoa se deslocasse ao mercado, e no caso de idosos, que pedissem a alguém próximo para efetuar as compras.
Muita gente não respeitou isso. Havia uma senhora de mais de 70 anos esbarrando nas pessoas no setor de hortifruti, como se fosse apenas mais um dia normal de compras. Para ser honesto, havia inúmeros idosos no mercado.
Encontrei um homem com máscara abraçando uma conhecida que encontrou na entrada do mercado. Ué? Alguns caras batendo papo na entrada do mercado e alguns outros fazendo o mesmo lá dentro.
Vi também uma menina andando de patins dentro da loja. Estava acompanhada de um casal e ocasionalmente escorava nas gondolas para não se desequilibrar e também esbarrava nas pessoas.
Difícil foi transitar evitando contato, mas não impossível – bastando fazer volteios. Ainda hoje há pessoas que fazem questão de atravessar espaços onde já existe praticamente um amontoado de gente. Poucos respeitavam a distância estabelecida e solicitada pelo mercado de um cliente até outro (que reforçando – são apenas dois metros) – muitos outros não se importavam muito e achavam que um palmo de mão é o suficiente.
Quando uma mulher acompanhada do namorado ou marido se tocou que eu estava com os pés na faixa, que delimitava distância de um cliente ao outro, ela acordou pra situação e se afastou.
O mais estranho disso tudo é que o mercado precisa dizer o tempo todo o que as pessoas precisam fazer pela própria segurança delas – algo que elas deveriam saber faz tempo, desde que o coronavírus chegou ao Brasil e as primeiras recomendações passaram a ser promovidas. Isso prova que infelizmente ainda tem muita gente que não está levando a sério a situação.
Será que só o fato de ser uma doença nova e que já matou pessoas não deveria ser o suficiente para as pessoas agirem de forma mais responsável? Se não por si mesmas, pelo menos pelos outros. Mas o problema é que estamos imersos em uma sociedade em que pensar no outro não existe quando muitos não racionalizam nem o impacto para si mesmos.
Nos tornamos hipócritas
Todos nós nos tornamos hipócritas ao longo da vida, e por diversos fatores, incluindo contexto, assimilações, crenças e influências, mas a diferença é que há aqueles que reconhecem a própria hipocrisia partir de algum momento e, considerando implicação, optam por tentar diminui-la enquanto outros preferem ignorá-la e/ou ampliá-la.
Há muitas formas de hipocrisia, e tanto aquelas que aceitamos e incitamos podem ser tão prejudiciais quanto as que falseamos com outras roupagens para defender nossas inclinações, predileções e conveniências.
Para muitas pessoas o mundo diz que elas devem ser hipócritas e elas sustentam que esse é um tipo de lei da sobrevivência – que a hipocrisia permite um tipo de elevação que não a subtrai, mas proporciona algo tão belo e bom na sua artificialidade que subtrai as considerações de impacto da hipocrisia.
Basicamente o ser humano aprecia as hipocrisias convergentes aos seus interesses, mas deprecia as demais, que, pela própria força oposta ao alheamento, e com um pouco de atenção, iluminam o que ele gostaria de velar.
Coronavírus e os milhões de vulneráveis do Brasil
Trinta e cinco milhões de brasileiros vivem hoje em situação de extrema vulnerabilidade, sem acesso à água potável, e temos autoridades tratando o coronavírus como se não fosse uma situação de grande preocupação. É fácil analisar a realidade dessa forma ganhando 20, 30, 40 mil reais por mês, e ainda tendo outras regalias bancadas até mesmo às custas do sangue e suor dos mais miseráveis.
Acredito que quando um grave vírus ou doença surge em um país, em vez de priorizar a economia em detrimento da vida, o primeiro passo seria considerar o que precisa ser feito para que essas pessoas mais vulneráveis não sofram as consequências da displicência humana e de suas más ações. Não olhe para você para avaliar a situação, olhe para quem está no ponto mais baixo.
Até dias atrás me surpreendi um pouco acompanhando algumas notícias e vendo pessoas falarem em quarentena voluntária ou isolamento social como se fosse algo acessível para todo mundo; e inúmeros discursos fazendo a tal da quarentena parecer uma colônia de férias – “aproveite para assistir filmes, jogar, tocar instrumentos, se exercitar, ler livros, etc.”
Pelo nível do que foi transmitido, parecia que estavam se direcionando à população da Islândia. Temos vários Brasis, e alguns deles são de até dez pessoas vivendo no mesmo casebre, e ainda hoje sem saneamento básico e esgoto – sem comida de qualidade ou nenhuma comida (como 5,2 milhões de brasileiros), sem sabão, menos ainda acesso a álcool em gel.
O comércio aqui já não funciona normalmente e apenas mercados, farmácias e alguns outros tipos de estabelecimentos podem continuar abrindo, mas com algumas ressalvas e observações de conduta – como manter distância específica ou efetuar pagamento por uma janela ou outro meio sem qualquer contato muito próximo. Encontrei placas em um mercado pedindo que os consumidores sejam mais conscientes e não comprem todo o estoque de determinados produtos.
Quem faz isso, reconheço que teme o pior, mas isso não é motivo para pensar somente nas suas necessidades ou vontades. De alguma forma, me recordei de filmes de ficção apocalítica e pós-apocalíptica em que as pessoas priorizam somente a si mesmas e os seus. Mas a diferença é que parece que no mundo real o ser humano é sempre capaz de fazer isso antes mesmo de qualquer situação realmente caótica.
Isso me preocupa bastante, porque ainda que a situação não seja tão grave quanto pode ficar, se não reavaliarmos nosso papel no mundo e na maneira como nos importamos demais somente conosco, parece que estamos fadados a instaurar um caos inimaginável.
Em Curitiba, há medicamentos que estão faltando nas farmácias porque consumidores “leram ou ouviram” que tal remédio ajuda no combate do coronavírus, sem qualquer comprovação científica, e decidiram fazer estoque em casa, prejudicando pessoas que agora precisam desses medicamentos e já não os encontram com facilidade.
Já existe tanta coisa errada no Brasil desde que surgiram os primeiros casos confirmados de coronavírus, e as autoridades postergando a importância de decisões rápidas porque o “dinheiro vem em primeiro lugar”, que parece que a única solução para superar tudo isso seria um profundo exame de consciência, reeducação e o aperfeiçoamento da nossa capacidade de empatia e de consideração de valores.
São tantos sinais de que tudo isso é consequência das escolhas erradas que fazemos, das coisas que priorizamos em detrimento do que realmente importa. O coronavírus surgiu porque, na presunção ignorância, não nos importamos muito com o que acreditamos que não diz respeito a nós. E a verdade é que diz respeito a nós, mas também aos outros, e por ignorar o amplo mal que causamos que vivemos agora essa realidade.
Há tantas especulações sobre o que pode acontecer ou não, mas uma suspeita crescente que tenho é que se não estivermos preparados para mudar para melhor, talvez o coronavírus seja apenas um princípio de acontecimentos ainda piores que possam surgir.
Ser humano deseja ser observado
Hoje, possivelmente mais do que nunca, o ser humano deseja ser observado, porque ele crê que existir depende do acúmulo de observação. Quanto mais sou observado, mais existo, crê-se. A ideia de não ser observado, seja verdade ou apenas uma concepção, pode ser para ele o fortalecimento da crença do não estar aqui ou de não ser relevante.
Alguns podem chegar a imaginar-se, numa alegoria acidental, como aqueles personagens de jogos de plataforma em que a perda de força o torna transparente e imperceptível até o completo esmaecimento.
Mas é apenas uma consequência de iterados sinais sintomáticos de um fenômeno em que se dilui uma realidade perante outra, que pode não ser de fato uma representação da realidade, mas daquilo que acreditamos e concebemos como realidade, independente do percentual de verdade.
Chovia
Dias atrás, chovia quando eu retornava da academia para casa. Em menos de dois ou três minutos, senti os pés pesados – peso que massageava os dedos.
Minha imagem refletia na chuva que descia sem violência pelas galerias, nas paredes de vidro. Escorria pela minha cabeça e fazia cócegas no nariz. Sorria sozinho.
Quem me via, se via, não sei o que pensou, porque eu não mirava o que ia ou o que vinha. Só seguia. Abria boca e sentia pontadinhas no palato, suavidade da infância em forma d’água.
Um afago que vem do céu também faz as pessoas acelerarem. Preferi desacelerar porque não sei quando ela vai voltar.