Archive for August, 2016
O malabarista sob a chuva e a ausência de empatia
Passei ontem à noite por um semáforo da Avenida Paraná e tinha uma fila imensa de carros. Sob chuva, um rapaz com a roupa toda molhada fazia malabarismo sobre um monociclo. Entendo que ele ame o que faz, mas provavelmente ele não estaria ali naquele momento se não precisasse.
O que me surpreendeu foi que só eu e outro cara demos alguns trocados pra ele. Será que todas aquelas pessoas não tinham pelo menos algumas moedas para darem ao artista de rua?
Sinceramente, minha situação nem sempre é das melhores, mas também não é tão ruim a ponto de eu perder completamente o ímpeto de ajudar alguém ou reconhecer o esforço dos outros.
A galinha garnizé de 20 anos
No quintal da casa da aposentada Lindinalva Silva Santos vive Jurema, uma galinha garnizé de 20 anos. Falo com ela e ela se aproxima. Miudinha e esperta, continua calma e dócil, mesmo depois de ter sofrido tanto ao longo da vida. Escapou da morte várias vezes quando era mais jovem. Uma vez se esforçaram para arrastá-la com linha e anzol.
Naquele dia, Jurema perdeu a língua, mas foi bem cuidada e se recuperou. Também sobreviveu a outras tentativas de ladrões querendo transformá-la em comida. Acho incrível como ela inspira vida. É atenta a tudo. Nada passa despercebido.
Mais surpreendente ainda é ver como Jurema gosta de brincar com outros animais. Será que vale a pena explorar uma ave ou transformá-la em comida? Levando em conta tudo isso, a lição que ela transmite ao existir até hoje, com seus 20 anos. Pelo que pesquisei, Jurema tem potencial para chegar pelo menos aos 25, e não tenho dúvida de que isso é resultado de uma vida sem exploração.
Saiba Mais
A galinha garnizé mora na Vila Alta, na periferia de Paranavaí, no Noroeste do Paraná.
Percy Shelley, um ativista “vegano” no século 19
“Seria muito melhor a um ser senciente jamais ter existido do que existir para suportar a miséria absoluta”
Em países que não têm o inglês como língua nativa, não raramente o poeta britânico Percy Bysshe Shelley é relegado à sombra de sua esposa Mary Shelley, autora do clássico “Frankenstein”, uma das obras mais famosas da literatura inglesa. No entanto, o que pouca gente sabe é que o livro foi influenciado pelas ideias do escritor romântico, sua interpretação do mito de Prometeu aliado à sua filosofia de vida vegetariana, também partilhada por Mary.
Um dos personagens mais influentes do romantismo, Shelley foi muito além da poesia, fazendo da Era Romântica um período em que arte e filosofia estreitaram sua relação com o vegetarianismo. Ao publicar os poemas “Queen Mab” e “Alastor, or The Spirit of Solitude”, e os ensaios “A Vindication of Natural Diet” e “On The Vegetable System of Diet”, o poeta chamou a atenção para os direitos dos animais e os benefícios da dieta vegetariana. Considerado moderno demais para a época, seu idealismo visto como intransigente e pouco ortodoxo fez dele uma persona non grata em muitos círculos sociais europeus.
Controverso, defendia o vegetarianismo, o amor livre e o direito ao ateísmo em uma sociedade visceralmente cristã. Abordava a importância dos direitos das mulheres e incentivava a esposa Mary Shelley a tornar-se ativista na busca por igualdade entre homens e mulheres, o que fez dela uma referência para o feminismo na Inglaterra e nos Estados Unidos. Além disso, ele lutou por justiça social para as classes trabalhadoras.
O poeta britânico se tornou vegetariano depois de testemunhar maus-tratos contra animais domesticados para o abate. Com uma visão filosófica progressista, ele defendia que os animais não precisavam de privilégios, mas de equidade, pois, assim como os seres humanos, também têm direito à vida. Para Shelley, o abate de animais, com a mera intenção de transformá-los em comida, não é apenas a raiz dos crimes cometidos pela raça humana, mas também a causa de todos os comportamentos imorais e criminosos da humanidade.
Ele argumentava que a adoção de uma dieta vegetariana e a cessação do abate animal levaria ao fim as injustiças sociais em decorrência da pobreza, do crime e da violência. Também tinha fé que esse seria o caminho para a implantação de um sistema que substituiria o capitalismo e daria fim às guerras. De acordo com o poeta britânico, o vegetarianismo era o único meio de alcançar a perfeição moral; pensamento que influenciaria o russo Liev Tolstói, um dos maiores nomes da literatura mundial.
“Somente através do amolecimento e do disfarce da carne através da preparação culinária que ela se torna suscetível de mastigação e digestão, e só assim a visão dos seus sucos sangrentos e o seu horror cru não desperta ódio e desgosto.”, lamentou. Mais do que o decano do vegetarianismo no século 19, é justo dizer que Percy Shelley era um protovegano, ou seja, alguém que, despreocupado com denominações e terminologias, teve grande influência sobre o surgimento do veganismo, uma ideologia mais austera, sólida e completa em relação à defesa dos animais.
“Eu sustento que a depravação da natureza física e moral do ser humano começou com seus hábitos não naturais de vida. A origem do homem, como a do universo do qual ele faz parte, envolve um mistério impenetrável”, escreveu Shelley em “A Vindication of Natural Diet”, ensaio em que se opõe radicalmente à exploração animal em todos os aspectos. Na obra, argumenta que uma sociedade baseada na igualdade, justiça social e espiritualidade deve ter como ponto de partida uma alimentação livre da tortura e do sofrimento animal.
O interesse de Percy Shelley pelo vegetarianismo começou cedo. Quando estudava na Universidade de Oxford, o poeta britânico se alimentava como um eremita, levando em conta a pureza e a simplicidade dos alimentos. Em 1812, quando completou 20 anos, adotou a dieta vegetariana estrita. E sua crença no vegetarianismo foi reforçada quando ele conheceu a Família Newton, formada por uma longa linhagem de vegetarianos estritos.
Seus amigos Thomas Jefferson Hogg e Thomas Love Peacock não gostaram da influência dos Newton sobre Shelley. Eles viam a família de vegetarianos como “um grupo de monges tolos”, e logo começaram a zombar do poeta. Porém mudaram de opinião e mais tarde se tornaram vegetarianos. Na biografia “Life of Shelley”, Hogg fala de sua aprovação e adesão ao vegetarianismo.
Frugal, a comida preferida de Shelley era pão, alimento que sempre comprou em uma mesma padaria enquanto estudou em Oxford. Em Londres, durante a permanência do poeta em Bishopsgate em 1815 e depois em Marlow em 1817, Thomas Hogg notou que o amigo seguia firme na defesa do vegetarianismo, assim como fez até os seus últimos dias de vida.
Percy Shelley influenciou os mais importantes reformadores vegetarianos dos séculos 19 e 20, o que garantiu-lhe o título de primeira grande personalidade vegana da história do Ocidente, segundo a obra “In Pursuit of Percy Shelley, ‘The First Celebrity Vegan’: An Essay on Meat, Sex, and Broccoli”, de Michael Owen Jones. Antes de se tornar vegetariano, o poeta romântico era um humanista e humanitarista que se alimentava com simplicidade; o que à época, e paradoxalmente, foi encarado como uma extravagância e uma excentricidade inofensiva propagada por um artista e pensador que seguia os preceitos do evangelho da gentileza e do amor universal.
Assim como o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau, Shelley foi influenciado pelos filósofos gregos Pitágoras e Plutarco – principalmente pelo ensaio “Do Consumo da Carne”, que qualifica a “dieta da carne” como não natural ao homem. O britânico escreveu que os seres humanos eram naturalmente frugívoros, logo deveriam ter uma dieta baseada em água e vegetais. Também via como importante a abstenção de álcool. Considerava o licor fermentado como uma das bebidas mais nocivas ao homem. “Tão venenoso quanto a carne”, sentenciou.
Abdicando do consumo de alimentos de origem animal e retornando à dieta natural dos primeiros seres humanos que habitaram a Terra, não tardaria para a humanidade vivenciar uma evolução moral, melhorias em relação à saúde e restauração da longevidade. “O que se come é o que se é”, dizia o poeta, crente de que a identidade humana tem relação substancial com a alimentação.
E enquanto o homem não retornar às suas origens, ele há de ser punido, assim como foi o mitológico titã Prometeu que roubou o fogo para dar aos homens. Em represália, o acorrentaram ao Monte Cáucaso, onde assistiu um mesmo abutre se alimentando diariamente de seu fígado que se regenerava.
“O homem em sua criação foi dotado com o dom da eterna juventude, isto é, ele não foi feito para ser uma criatura doente como vemos agora. Ele deveria desfrutar de sua juventude e aos poucos afundar no seio da mãe terra, sem contrair qualquer doença ou sofrimento físico. Porém Prometeu ensinou ao homem como transformar os animais em comida. Depois explicou como usar o fogo para que a carne animal se tornasse digerível e agradável ao paladar. Júpiter e os outros deuses, prevendo as consequências dessas ações, ficaram irritados com a visão que tiveram dessas novas criaturas. E para puni-los decidiram deixar que experimentassem os tristes efeitos do consumo de carne. (…) E assim o homem perdeu o dom inestimável da saúde que recebeu dos céus. Ele ficou doente, sua saúde se tornou precária, e não mais desceu lentamente até a própria sepultura”, registrou Percy Shelley em “A Vindication of Natural Diet”, publicado em 1813.
Na obra, Prometeu representa a raça humana que contrariando a própria natureza, usou o fogo com fins culinários. Então os sinais vitais dos seres humanos foram devorados pelo abutre, simbolizando a emergência das doenças. “Seu ser é consumido em cada forma de sua repugnante e infinita diversidade”, registrou.
Shelley também encontrou no mito da criação uma alegoria semelhante, a de que Adão e Eva alçaram à posteridade a ira de Deus e a perda da vida eterna, isto porque se alimentaram da árvore do mal, fazendo florescer a violência e a doença através de uma dieta não natural. “O homem e os animais a quem ele infectou com sua sociedade, ou os depravou através de seu domínio, estão sozinhos e doentes. O porco selvagem, o muflão, o bisão e o lobo são perfeitamente isentos de doenças e, invariavelmente, morrem de violência externa ou de velhice. Mas os porcos domésticos, as ovelhas, as vacas e os cães estão sujeito a uma incrível variedade de enfermidades e, como os corruptores da natureza, há médicos que prosperam com suas misérias”, queixou-se.
O ativismo de Percy Shelley fez com que o famoso e controverso poeta Lord Byron também aderisse ao vegetarianismo na juventude. Na realidade, Shelley tinha um grande poder argumentativo. Não possuía dificuldade em convencer aqueles que estavam mais próximos a ele de tornarem-se vegetarianos.
“As misérias, as doenças que assolam o mundo, são uma maldição conquistada pelo ser humano desde que ele se colocou acima de seus companheiros animais. (…) Comparativamente, a anatomia sempre me ensinou que o homem se assemelha mais aos animais frugívoros, não aos carnívoros. Ele sequer tem as garras adequadas para aproveitar sua presa, e nem mesmo caninos verdadeiramente pontiagudos e afiados para dilacerar corretamente as fibras da carne. Pensem no trabalho que o ser humano tem para preparar a carne, amolecê-la e disfarçar suas características naturais”, apontou em seu ensaio.
Na obra, o autor convida o leitor a refletir sobre o aspecto cru da carne e o seu suco que geram desgosto em quem a consome, alegando que o homem come carne porque finge não ver carne. A quem se considera um carnívoro nato, Shelley, assim como Plutarco, faz um convite: “Experimente rasgar um cordeiro vivo.”
No século XIX, ele compartilhou sua filosofia com todos os seus contemporâneos, estendendo seus questionamentos morais e éticos a muitos outros artistas e pensadores, estreitando a relação dos românticos com o vegetarianismo. Em “Queen Mab”, de 1813, escreveu sobre sua transição: “E o homem…não agora, mata o cordeiro de quem observa a face, e terrivelmente devora sua carne mutilada.”
O mesmo excerto abre o ensaio “A Vindication of Natural Diet”. Em “A Refutation of Deism”, uma prosa publicada em 1814, ele aborda a sua filosofia vegetariana, assim como no poema lírico do quinto canto de “Laon and Cythna” ou “The Revolt of Islam”, de 1818, conhecido como “A Lírica do Vegetarianismo”. Com a delicadeza e humanidade que lhe era peculiar, sua crença no vegetarianismo também pode ser observada na abertura do poema “Alastor”, de 1816, onde ele invoca a comunhão entre a terra, o oceano e o ar através da amada fraternidade da natureza.
Shelley, na dedicação sincera a todos os seres sencientes escreveu: “Se o uso de comida animal é, em consequência, subversiva à paz da sociedade humana, quão injustificável é a injustiça e a barbárie exercida contra essas pobres vítimas. Esses animais são chamados à existência pelo artifício humano de garantir uma existência curta e miserável de escravidão e doenças, em que seus corpos podem ser mutilados e seus sentimentos sociais suprimidos. Seria muito melhor a um ser senciente jamais ter existido do que existir simplesmente para suportar a miséria absoluta.”
Referências
Shelley, Percy Bysshe. A Vindication of Natural Diet, Londres. Smith & Davy. 1813.
Salt, Henry. Percy Bysshe Shelley: A Monograph. Swan, Sonnenscheim, Lowrey & Co., Londres. Originalmente publicada no The Vegetarian Annual, de 1887 (1888).
Jones, Michael Owen. In Pursuit of Percy Shelley, “The First Celebrity Vegan”: An Essay on Meat, Sex, and Broccoli. Journal of Folklore Research. Volume 53. Número 2. Agosto de 2016.
Medwin, Thomas. The Life of Percy Bysshe Shelley, Londres. Biblioteca Britânica. Domínio Público (1847).
Hogg, T.J. The Life of Percy Bysshe Shelley, Londres. Editora Edward Moxon (1888).
Blunden, Edmund. Shelley – A Life Story, Londres. Collins St. James’s (1946).
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“Vamos fazer um CD juntos?”
O título da matéria é o nome do projeto criado pelo compositor e advogado João Henrique de Andrade, de Paranavaí, no site de financiamento coletivo Catarse. O objetivo do músico é arrecadar R$ 7 mil para realizar o sonho de gravar o seu primeiro disco, pautado em histórias de amor e amizade.
Muito conhecido na região de Paranavaí, onde desde a década de 1990 toca em barzinhos e eventos, João Henrique informa que o CD vai contar com sete músicas – “Normal”, “Ouvindo a Chuva na Varanda lá de Casa”, “Delírio e Ontem”, “Quasar”, “Pra Sempre Vou Te Amar”, “Mandela” e “Quarta-Feira Cinzenta”. Algumas das composições já foram premiadas no Festival de Música e Poesia de Paranavaí (Femup), um dos festivais mais antigos do Brasil, onde o músico está entre os mais prestigiados pelo público.
A qualidade musical do trabalho de João Henrique é tão evidente que ele foi convidado para abrir o show do cantor Zé Ramalho em Paranavaí no dia 27 de outubro. Além disso, o compositor, em parceria com a esposa Luzimar Andrade, também é conhecido por participar de muitos trabalhos voluntários e por realizar shows beneficentes em prol de enfermos ou de pessoas que enfrentam crises financeiras. Como palestrante, também ministra cursos de oratória com duração de 15 a 20 horas, além de oficinas de empregabilidade para jovens que estão em busca do primeiro emprego.
“É um trabalho que fazemos de graça e com muito prazer para entidades que não visam lucro”, afirma. Para contribuir com o músico que já ajudou tantas pessoas, acesse o link abaixo:
https://www.catarse.me/vamos_fazer_um_cd_juntos_c783
Contato
Para mais informações, ligue para (44) 9955-1325.
Ralf Hütter, Kraftwerk e o vegetarianismo
Hütter: “Não gosto de matadouros. Isso é elementar”
Na reportagem “Kraftwerk: the elusive kings of digital pop”, publicada pelo The Times, de Londres, em setembro de 2009, Ralf Hütter, vocalista, compositor e fundador da banda alemã Kraftwerk, se apresentou como um vegetariano e amante dos animais. E sobre sua escolha, ele foi lacônico: “Não gosto de matadouros. Isso é elementar.” Hütter, que advoga o vegetarianismo há mais de 35 anos, também convenceu os outros membros a tornarem-se vegetarianos.
Kraftwerk é considerada a banda mais influente de todos os tempos no cenário da música eletrônica com ramificações na industrial music, synthpop e dance music. O grupo estimulou o surgimento de milhares de bandas que inspiradas na independência autoral dos precursores do Krautrock, movimento de música experimental alemã, começaram a interpretar a música e o mercado fonográfico sob uma perspectiva mais moderna, que não se abatia pelas restrições e sanções econômicas surgidas com a Guerra Fria.
De um pequeno estúdio em Colônia, na Renânia, Florian Schneider, Ralf Hütter, Wolfgang Flür e Karl Bartos extraíam composições que como cascatas de timbres alusivos à vida moderna versavam sobre a desconstrução humana no pós-guerra, a sujeição ao consumismo e a distorção de valores estéticos, como o kitsch, embora nem sempre atrelados à Indústria Cultural. Iam além e recriavam amores eletrônicos em belos universos desconexos com seus sintetizadores e outros equipamentos analógicos que a própria banda inventava ou personalizava.
Já diziam na inesquecível Das Modell: “Ela é tão bela que por sua beleza teremos de pagar.” Kraftwerk fez muito sucesso pela genialidade em unir criatividade, até mesmo se tratando dos figurinos, perspectivas e prognósticos sobre o homem do futuro, deixando um legado musical que inclui obras-primas como Autobahn, de 1974, e a trilogia Radio-Activity, Trans-Europe Express e The Man Machine, de 1975, 1977 e 1978. Kraftwerk é um exemplo de que há mais profundidade na música industrial/eletrônica do que se imagina.
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O velho vegetariano que inspirou a criação do whisky Old Parr
Em Great Wollaston, perto da estrada de Shrewsbury, no condado de Shropshire, com destino ao País de Gales, ergue-se uma pequena cabana de palha, berço e lar do homem que mais tempo viveu no Reino Unido. Thomas Parr nasceu em 1483.
Ele testemunhou dez monarcas ascenderem ao trono britânico. Ingressou no Exército aos 17 anos e retornou para casa com 35. Parr se casou pela primeira vez aos 80 anos, teve um filho aos 100 anos e se casou pela segunda vez com 122 anos.
Quando ele estava com 152 anos, o Conde de Arundel o levou até Londres para que ele conhecesse o Rei Carlos I. Intrigado, o monarca perguntou qual era o segredo para viver tanto: “Temperança moral e uma dieta vegetariana”, respondeu o velho laconicamente.
Thomas Parr faleceu em novembro de 1635 e teria vivido muito mais se a poluição de Londres não tivesse contaminado seus pulmões acostumados ao ar puro de Shropshire. O túmulo dele pode ser visitado na Abadia de Westminster, em Londres. Em 1909, a figura lendária do velho vegetariano inspirou a criação do whisky Old Parr.
Referência
Winn, Christopher. I Never Knew That About England. Ebury Press (2005).
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Paulinho e a fazendinha das abelhas
“Cadê o dourado do sol cobrindo a fazendinha das abelhas?”
Até os sete anos, a maior alegria de Paulinho era acordar cedo para comer algumas bolachinhas de mel, tomar um copo de suco de laranja e sair para brincar com os amiguinhos. O doce sabor do alimento fazia sua língua acidular. Com satisfação, ele sempre dizia: “Eita, delícia!”
Iogurte com mel, banana com mel, panqueca com mel, bolo de mel, torta de mel e bala de mel. Tudo que tinha o néctar das abelhas o alegrava. E depois de comer, não era raro o garotinho ludibriar os pais, fugindo da obrigação de escovar os dentes. Entrava no banheiro, fechava a porta, molhava a escova de dentes e a esfregava contra a palma da mão esquerda, fazendo barulhinho ardiloso.
Após dois ou três minutos, saía de lá sentindo-se vitorioso, roçando a língua entre os dentes e absorvendo o aroma de mel da própria boca. “Amo mel! Queria que minha boca nunca perdesse o cheiro de mel”, refletia copiosamente.
E era verdade. Paulinho gostava tanto de mel que seu quarto foi decorado como se fosse a mais romanesca das colmeias. Havia abelhas e zangões bem pintados nas quatro paredes. Sobre a cômoda, repousavam alguns espécimes elétricos – todos sorriam. O destaque era um zangão de brinquedo que voava perdido num voo sem sentido, porém divertido.
Em seu mundinho era impossível conceber a ideia de que abelhas e zangões não fossem felizes. E as maiores provas estavam nos desenhos animados que assistia, nos livrinhos que o apraziam e nas histórias em quadrinhos que o satisfaziam. Tudo parecia tão belo.
Paulinho acreditava que as abelhas davam mel às pessoas em troca de algo que ele ainda não tinha descoberto o que era. “O que será que elas ganham? Tem que ser algo muito mais gostoso do que mel. Será que existe?”, monologou. Um dia, se surpreendeu quando seu amiguinho Inácio contou que seu pai descobriu a localização de uma fazenda de mel.
— Vamos dar um jeito de ir lá ver como é, Inácio. Agora fiquei curioso.
— Eu também, Paulinho. Já sei! Vamos inventar uma história pra conseguir visitar esse lugar.
Para convencer sua mãe a levá-los até a fazenda apícola, Paulinho disse que a professora deu um trabalho sobre a vida das abelhas. “Depois ela quer que a gente escreva sobre tudo que vimos lá”, justificou. Como ele jamais tinha mentido, a mãe estranhou a tarefa, mas não o questionou.
O primeiro sinal de estranhamento dos meninos surgiu quando eles perceberam que a fazenda não era tão colorida como nas historinhas infantis. Parecia opaca demais para ser real. Não havia nenhum tipo de brilho no local, somente dezenas de caixas velhas e sujas de madeira rodeadas por árvores fragilizadas, com galhos secos que se inclinavam como se suplicassem pelo despertar da vida em suas mais variadas formas.
A terra nua persistia áspera, arenosa e rala, onde poucas porções de gramíneas se esforçavam para brotar do chão choroso.
– Cadê o girassol e o dourado do sol cobrindo a fazendinha das abelhas? Por que tem pessoas aqui e nenhuma abelha veio receber a gente?
— É mesmo, Paulinho! E que roupa estranha é aquela que tão usando ali?
— Acalmem-se, meninos! É cedo ainda para começar a reclamar.
Logo um homem carregando uma máscara se aproximou para recebê-los. Era o administrador da Fazendinha Douradina, de onde saía o mel que Paulinho tanto apreciava.
— Vieram conhecer nosso trabalho? Sejam bem-vindos, meus amigos!
— Cadê as abelhas?, questionou Paulinho sem titubear.
— Elas estão naquelas caixas ali.
— Ué, mas cadê a colmeia? Aquilo não parece uma, reclamou Inácio.
Sem saber o que responder, o homem desconversou e os convidou para irem até a área industrial da fazenda, onde o mel era processado e embalado. Antes de segui-lo, Paulinho não gostou de ver pessoas manipulando as abelhas nas caixas. Quanto mais eles mexiam, mais os insetos ficavam agitados. Paulinho e Inácio sentiram o desconforto das abelhas através da frequência dos zunidos.
No depósito, enquanto passeavam por expositores com milhares de potinhos de vidro, que traziam na embalagem abelhinhas felizes voando sobre um caldeirão de mel, Paulinho perguntou onde era o banheiro. Disfarçadamente caminhou até um senhor que observava o trabalho da equipe de apicultores.
— Você sabe o que eles estão fazendo ali?, perguntou Paulinho.
— Sei sim. Estão se preparando para substituí-las. Com esse calor e trabalhando na produção de mel, as operárias cansam muito rápido, não vivem mais do que 45 dias. Vão trocar também a Rainha porque ela fez dois anos e está colocando menos de dois mil ovos por dia. Inclusive já devem ter achado as “realeiras”. É difícil evitar que elas morram nesse processo, revelou o motorista da Fazendinha Douradina.
Paulinho ficou surpreso, sentiu os olhos fumegantes e se esforçou ao máximo para não chorar. Seus lábios tremiam e ele não conseguiu desfazer o bico. Sensibilizado, o homem se arrependeu de ter contado a verdade.
— Não, filho! Não é bem assim. Não fique triste, por favor!
De repente, Paulinho sentiu uma leve picada na panturrilha. Quando se agachou, viu uma abelhinha estonteada desfalecendo sobre o chão calcinado. Junto dela, contou mais sete, oito, nove, dez abelhas mortas.
— Nunca mais vou comer nada com mel! Juro por tudo!, berrou o menino antes de correr até os caixotes e derrubar um por um com as próprias mãos nuas. Contrariando todas as probabilidades, as abelhas não atacaram Paulinho, simplesmente partiram voando e zunindo, deixando para trás tudo que produziram.
Quando os apicultores perseguiram o menino, o motorista gritou:
— Não! Deixem ele! Toda criança tem razão porque sua ação vem da pureza do coração.
Cansado, Paulinho deitou ileso numa porção de relva que parecia ter brotado naquele momento, aspirando à vida que ele assistia preenchendo o céu em forma de abelhas. Parou de lacrimejar e sorriu, levantando as mãos para o firmamento, onde o zunido da última abelhinha foi interpretado por ele como um tipo de agradecimento.
O suposto motorista era na realidade o dono da Fazendinha Douradina. Ele não repreendeu Paulinho. Também não se queixou com a mãe do menino. Muito pelo contrário, o agradeceu. No final da tarde, não havia mais abelhas nem mel no local. Pela primeira vez em 20 anos a fazenda fez jus ao próprio nome, quando a luz inédita do sol dourou tudo que renascia sob o canto de um rouxinol.
Curiosidade
“Realeira” é uma grande célula de onde emerge a nova rainha.
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Como o romantismo influenciou o veganismo
Tenha cuidado, porque quando um verme você esmagar, a alma de um irmão você pode encontrar
O romantismo foi a corrente artística que ajudou a sedimentar o vegetarianismo moderno e o veganismo no mundo ocidental. E não por acaso, já que os escritores da Era Romântica argumentavam a favor de uma dieta isenta de ingredientes de origem animal, levando em conta o estado da humanidade, a saúde e os direitos animais, a economia e a divisão de classes sociais.
Embora pouca gente saiba, o aforismo “você é o que você come”, tão divulgado de forma equivocada nos séculos 20 e 21, foi criado pelos românticos na defesa do vegetarianismo, ao ponderarem que tudo que serve de alimento ao ser humano tem implicações físicas e morais. De acordo com o escritor britânico Percy Bysshe Shelley, um dos precursores do veganismo, o consumo de carne não apenas profanou o corpo humano, mas também encorajou o consumo excessivo de álcool e a adoção de outros hábitos destrutivos.
“Acredito que a depravação da natureza física e moral do ser humano se originou com seus hábitos não naturais de vida”, escreveu Shelley em A Vindication of Natural Diet, publicado em 1813. Na obra, ele afirma que o homem naturalmente saudável foi comprometido pela sociedade moderna. “Um corpo tornado doente por uma sociedade doente”, alegou.
Estudando a relação do ser humano com a carne, o escritor percebeu que o suposto alimento não representava apenas mais uma opção nutricional, mas também a legitimação e naturalização da crueldade, tirania e escravidão dos animais. Se não temos qualquer direito sobre seus corpos, como podemos nos colocar em posição de destruí-los? Não há nenhum tipo de permissão, nem mesmo sobre pardais que povoam os céus ou sobre peixes mais modestos que habitam os rios, defendiam.
No século 19, médicos e cientistas que apoiavam os românticos descobriram que a anatomia humana era muito semelhante a animal, principalmente no que diz respeito à senciência e às respostas emocionais. E isso ajudou a reforçar o discurso de que o consumo de animais já era moralmente errado. Sendo assim, o ser humano deveria retornar à dieta de base vegetal.
O escritor inglês e ensaísta Joseph Ritson também contribuiu com novas constatações. Ele registrou que os dentes e os intestinos do homem são muito parecidos com os dos animais frugívoros, portanto ele não deve consumir carne. A existência de caninos curtos e a falta de garras também ajudaram a contestar a ideia de que o homem é um predador ou caçador natural, pois ele não possui capacidades físicas para matar um animal sem usar as ferramentas apropriadas. “Além disso, o comprimento de seu intestino faz com que a digestão da carne seja muito difícil”, justificou Ritson em An Essay on Abstinence from Animal Food, as a Moral Duty, publicado em 1802.
O médico escocês George Cheyne, proeminente figura da medicina nos séculos 17 e 18, ajudou a fundamentar a defesa do vegetarianismo na Era Romântica ao concluir que o surgimento de doenças e a queda da longevidade estavam relacionados à incorporação da carne na alimentação. Para os românticos, a decadência humana começou a partir do momento que o homem fez do consumo de carne um hábito, se negando a aceitar o fato de que os primeiros humanos tinham uma alimentação muito próxima da dieta vegetariana.
E como consequência, as doenças atingiram tanto a humanidade quanto os outros seres vivos. Muitos animais foram diagnosticados pela primeira vez com enfermidades que surgiram com a crescente oferta e demanda de carne. O agravante foi o confinamento de animais em fazendas, tornando-os condutores de doenças que se espalhavam para outros animais. Até mesmo a comida servida a eles, desde o princípio, era um facilitador da proliferação de doenças.
Então os românticos fizeram da arte, da filosofia e da política um instrumento de conscientização contra a natureza opressiva humana – algo que deu origem a uma dieta considerada cruel e brutal que até hoje o afasta de seu verdadeiro papel em relação à natureza. Os vegetarianos do romantismo também foram os primeiros a se preocuparem com o meio ambiente no Ocidente, despertando uma consciência muito próxima da atual. Entendiam que o consumo de carne afetaria cada vez mais a natureza conforme a demanda crescia.
Shelley argumentava que a quantidade de matéria vegetal nutritiva utilizada na engorda do gado poderia alimentar dez vezes mais pessoas se os vegetais usados em sua nutrição fossem destinados às pessoas. Logo a criação de animais para o abate era um desperdício e um assalto à relação entre a capacidade da natureza de fornecer alimentos e o desmedido desejo do homem em explorá-la sem pesar critérios ambientais.
Em An Essay on Abstinence from Animal Food, as a Moral Duty, Ritson afirma que é tão antinatural ao homem o consumo de carne que chega a ser impossível não incitar nele nenhum tipo de ferocidade. Os românticos se preocupavam com o embrutecimento humano, o distanciamento em relação às suas origens; até porque uma das principais características do romantismo era a evocação do passado, incluindo a defesa da natureza, da vida e da imaginação.
“Ele é um homem de paixões violentas, de olhos vermelhos e veias inchadas, que sozinho consegue empunhar a faca do assassinato”, escreveu Shelley em A Vindication of Natural Diet, em referência à prática selvagem e fisiologicamente conflituosa do derramamento de sangue. E ao contrário do que muitos acreditam, os românticos se preocupavam com as classes mais desfavorecidas. Tanto que o vegetarianismo era uma forma de resistência à cultura do luxo.
Reformistas literários como Percy Shelley, de origem burguesa, apostavam no boicote à carne como uma forma de combater também o consumismo. A carne figurava como um dos principais símbolos de distinção social e segregação de classes nos séculos 18 e 19. Para os românticos, que viam a divisão de classes como um dos grandes males da sociedade, a carne foi incluída na dieta humana não para beneficiar o ser humano, mas simplesmente para gerar lucro, aceitação e atrair visibilidade.
Os vegetarianos do romantismo chamavam a atenção para a opressão hierárquica dentro das classes econômicas e para a forma como a humanidade estava deslocada do mundo natural. Portanto consumir carne não era mais do que um vício burguês, e os abastados eram os únicos em condições de consumi-la com regularidade. Paradoxalmente, a dieta mais saudável era a das classes mais baixas. Eles comiam pães, mingau, batatas e vegetais.
Outra curiosidade é que os vegetarianos da Era Romântica eram, em sua maioria, intelectuais de classe média que desprezavam a ganância e o desperdício tão inerente à alta burguesia. O escritor inglês Thomas Tryon, importante defensor do vegetarianismo no século 17, declarou que os seres humanos jamais teriam transformado os animais em comida se fosse apenas por desejo, necessidade ou manutenção da vida. Ele acreditava que a humanidade mergulhou em uma forma de ira amplificada pelo retorno financeiro que os animais poderiam proporcionar enquanto produtos. Assim os humanos deixaram de amá-los e vê-los como indefesas criaturas da natureza.
Os românticos apostavam na expansão do vegetarianismo. Mostravam o quanto a dieta vegetariana era acessível. Eles tencionavam elaborar um plano para aumentar a oferta de alimentos vegetais, forçando a diminuição da demanda por terra na criação de animais, o que significava também reduzir os conflitos de classes. Shelley e outros pensadores entendiam que a comida era um tipo de personificação material de todas as práticas sociais. Por isso o boicote ao consumo de carne era a melhor solução para frear o consumismo.
Entre os séculos 18 e 19, Inglaterra, Alemanha e França eram os países com mais adeptos do vegetarianismo, não apenas como dieta, mas também como filosofia de vida, já que muitos acabaram se tornando vegetarianos por uma questão moral e ética envolvendo os direitos animais. Com a expansão do vegetarianismo, cresceu a disponibilidade e variedade de vegetais. À época, muitas das grandes cidades da Europa tinham seus próprios jardins que ofereciam gratuitamente frutas e vegetais à população.
E tudo isso graças à influência literária dos românticos na ficção, antropologia, teorias de consumo e evolucionismo. Contudo é importante frisar que no final do século 19 o romantismo foi influenciado pelo humanismo durante o iluminismo, quando os europeus começaram a repensar suas atitudes em relação à justiça, liberdade e fraternidade.
Um exemplo foi o filósofo inglês e idealizador do liberalismo John Locke. Ele percebeu que os animais tinham grande potencial de comunicação, além de condições de expressar emoções e capacidade de sentir dor. Então o humanitarismo foi estendido ao reino animal, considerando que não havia tantas diferenças entre os seres humanos e os animais.
Graças a Locke, ampliou-se a crença de que todos os seres vivos tinham uma forte ligação, sugerindo a ideia de que ser cruel com algum animal significava ser capaz de ser violento com qualquer criatura viva, inclusive humana. Com tais princípios, o vegetarianismo se tornou uma filosofia apropriada que ajudou a fortalecer o humanismo e a compaixão em relação aos animais.
Por meio do trabalho de estudiosos como o naturalista francês Louis Lecrerc, o Conde de Buffon, a sociedade passou a reconhecer a complexidade física, biológica e emocional dos organismos que compõem a natureza. Lecrerc defendia a ideia da ancestralidade comum em relação a humanos e animais, o que curiosamente ia ao encontro do que advogavam os românticos. No século 19, o naturalista britânico Charles Darwin, mais famoso pela autoria de On the Origin of Species, de 1859, foi influenciado por Lecrerc e pelos românticos, constatando que realmente animais e seres humanos estão naturalmente interligados.
Com ideologia enraizada na estética romântica da compaixão e da comunhão com a natureza, os adeptos do romantismo também foram pioneiros em outras linhas de frente. Prova disso foi o papel desempenhado pela escritora vegetariana Mary Shelley, autora do clássico Frankenstein que, incentivada pelo marido Percy Shelley, se tornou ativista dos direitos animais e das mulheres. Outros nomes importantes desse período são os britânicos Alexander Pope e Lord Byron – os maiores poetas do romantismo junto com Percy Shelley.
O trabalho deles culminou na fundação da Vegetarian Society em Londres em 1847, e no uso formal do termo vegetariano em substituição a pitagorianos, muito usado para se referir a quem não se alimentava de animais. Os românticos também tiveram grande influência na criação da Vegan Society, a pioneira do veganismo no Ocidente. “O vegetarianismo é o caminho para que as pessoas voltem a ter uma relação mais respeitosa com a natureza”, dizia Percy Shelley.
As contribuições do vegetarianismo à sociedade moderna
O movimento vegetariano durante o Período Romântico foi marcado pela defesa dos direitos animais e das mulheres. Também teve grande importância sobre os direitos civis no século 19. E seus ideais eram sustentados pelo legado de pensadores gregos. “Não faça aos outros o que não gostaria que fizessem com você”, diziam os românticos, em referência à Regra de Ouro de Pitágoras.
Nenhum ser humano tem mais direito à natureza do que qualquer outro ser vivo. Todos devem ser vistos como iguais, declaravam. Eles rejeitavam a ideia da superioridade humana defendida por quem alegava que o homem era o elo entre a natureza e Deus. “Usurpar autoridade sobre qualquer animal é excesso de orgulho e altivez da alma”, condenou o escritor inglês Robert Morris.
A defesa do vegetarianismo por meio do romantismo reavivou valores morais perdidos pelo homem ao longo dos séculos. Inclusive inspirou religiões baseadas em velhas doutrinas que optaram por rever a relação entre Deus, seres humanos e animais. Nesse período, os cristãos reconheceram que só após o dilúvio foi dada ao homem a permissão para comer carne, não antes, o que endossa a ideia de que a carne não fazia parte da dieta natural humana.
Com isso, religiões que abordam a reencarnação começaram a discutir sobre a alma animal e a reconhecer a importância de outros seres sencientes. “Tenha cuidado, porque quando um verme você esmagar, a alma de um irmão você pode encontrar”, escreveu a poetisa inglesa Anna Laetitia Barbauld, importante nome do romantismo, na obra The Mouse’s Petition, publicada em 1773.
Referências
Shelley, Percy Bysshe. A Vindication of Natural Diet. London. Smith & Davy (1813).
Ritson, Joseph. An Essay on Abstinence from Animal Food, as a Moral Duty, London, 1802. Kessinger Publishing (2009).
Pope, Alexander. Against Barbarity to Animals, The Guardian, No. 61 (1713).
Morton, Timothy. Cultures of Taste/Theories of Appetite: Eating Romanticism; New York: Palgrave Macmillan (2004).
Morton, Timothy. Joseph Ritson, Percy Shelley and the Making of Romantic Vegetarianism, Romanticism. Vol. 12. The University of California (2006).
Preece, Rod. Sins of the Flesh: A History of Ethical Vegetarian Thought; Vancouver; Toronto: UBC Press (2008).
Spencer, Colin. The Heretic’s Feast: A History of Vegetarianism; Great Britain: Hartnolls Ltd, Bodmin (1993).
Oerlemans, Onno. Romanticism and the Materiality of Nature. Toronto; Buffalo: University of Toronto Press (2002).
Ruston, Sharon. Vegetarianism and Vitality in the Work of Thomas Forster, William Lawrence and P.B. Shelley. Keats-Shelley Journal. Vol. 54 (2005).
Perkins, David. Romanticism and Animal Rights. Cambridge, UK; New York: Cambridge University Press (2003).
Stuart, Tristram, The Bloodless Revolution: A Cultural History of Vegetarianism from 1600 to Modern Times; Great Britain. HarperPress (2006).
Kenyon-Jones, Christine. Kindred Brutes: Animals in Romantic-Period Writing; UK: Ashgate Publishing (2001).
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Doente, idosa sonha em construir uma casinha e abandonar o barraco onde vive
Sem fonte de renda, Dona Zu não tinha nem o que comer no dia em que a visitei
Cheguei em frente à residência de Maria Lúcia Gomes Gonçalves, mais conhecida como Dona Azu, bati palmas e ela demorou um pouco para me receber. O motivo é que, vítima de paralisia infantil, osteoporose e artrose, a idosa tem sérias dificuldades para andar. Após os cumprimentos, a simpática senhora me convidou para entrar e caminhamos até um barraquinho no fundo de um terreno repleto de vegetação.
Sem fonte de renda, Dona Zu não tinha nem o que comer no dia em que a visitei. Ainda assim, ela sorria e me abraçava, satisfeita com a minha visita e o meu interesse em conhecer sua história. Mancando, andava se apoiando na mobília para não cair. “Não tenho mais força nas pernas. Se ficar um tempinho em pé, já corro o risco de tombar e me machucar”, relatou e mostrou um pé torto.
A moradia de Dona Zu não pode ser considerada uma casa. São dois cômodos mal construídos, com um teto surpreendentemente baixo. É quase impossível duas pessoas caminharem lado a lado dentro do casebre sem forro, por onde a água entra sempre que chove. Lá, tudo foi feito na base do improviso. Inclusive uma das paredes se resume a pedaços irregulares de madeirite encontrados na rua.
Além da precariedade, o barraco é mal arejado; tem apenas uma janela. No local, a mobília está em péssimas condições, assim como todo o resto. “Não sou aposentada e não recebo nenhum benefício do governo. Tem dia que chego a passar fome. O que me ajuda é que de vez em quando ganho cesta básica de alguém. Estou doente e em uma situação muito difícil”, revela emocionada.
A idosa, que também sofre de depressão, sonha em construir uma casinha de 27 metros quadrados, mas para isso Dona Zu precisa de 40 sacos de cimento, 10 metros de areia lavada, três mil lajotas, 58 metros de ferro, quatro metros de pedra, 20 folhas de fibrocimento de quatro milímetros (Eternit), sete vigas de 5×15 com 3,50, 15 caibros de 5×5 com 3,50, uma janela para o quarto com 1m x 1,50m, uma janela para o banheiro e outra para a sala e cozinha, de acordo com o pedreiro que se dispôs a construir tudo sem cobrar pela mão de obra.
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Dona Zu mora na Rua Hayato Nakamura, Nº 466, no Jardim Vânia, atrás da Igreja São Paulo. Há quatro anos ela tenta se aposentar ou receber algum benefício, mas até hoje não conseguiu. Para ajudá-la, ligue para (44) 9735-9947 (Dona Zu) ou 9970-8150 (Pingo). Ou você também pode entrar em contato comigo – (44) 9909-2513 (David).
Sobre os escritores do passado e o veganismo
Fico surpreso quando escrevo sobre a relação de algum escritor(a) do passado com o vegetarianismo e alguém aparece rebatendo de forma passional; tentando desconsiderar a sua contribuição, alegando que ele(a) não consumia carne simplesmente porque tinha nojo ou porque queria fazer frente a um princípio estético no ambiente burguês.
Então quer dizer que há escritores(as) que não consomem alimentos de origem animal e publicam livros abordando as questões morais e éticas do vegetarianismo simplesmente para aparecer? No mínimo curioso alguém dedicar tanto tempo a algo em que não acredita. E mesmo que fosse verdade, isso não anularia a sua colaboração, caso tenha transformado vidas.
Quando falamos em vegetarianismo e veganismo, penso que o maior cuidado que devemos ter é um só – não desmerecer alguém simplesmente porque é diferente de nós em diversos aspectos. O mais importante é que haja união em torno do que preza o vegetarianismo e o veganismo.
Sei que muitas vezes somos reféns das armadilhas do ego e passamos a querer que os outros tenham os mesmos parâmetros de vida que nós. Porém o mundo não se pauta na nossa vida, nem as outras pessoas. Então devemos aprender a respeitá-las nas suas diferenças, desde que isso não signifique prejuízo a nada ou ninguém.
Na minha opinião, tudo que contribui com o vegetarianismo e o veganismo é bem-vindo. Vejo como um equívoco julgar os vegetarianos do passado com ênfase em conceitos atuais. É muito importante entender que foi a contribuição de cada um desses pensadores, independente de motivação, que ajudou a moldar o vegetarianismo ao longo dos séculos, inclusive culminando no surgimento do veganismo como o conhecemos.
Embora há quem despreze os românticos porque eram burgueses, claro que não todos, é importante reconhecer sim que eles foram determinantes na história do veganismo no mundo ocidental, inclusive estou preparando um artigo que fala exatamente disso. E as pessoas que costumam desqualificá-los são aquelas que têm inclinação política sob viés fundamentalista, e muitas vezes não percebem como isso pode ser nocivo.
Acredito que não devemos julgar a consciência vegetariana de séculos atrás usando como referência o presente. Ademais, penso que já temos pessoas demais trabalhando contra o que o veganismo defende. “Não mais agora, ele mata o cordeiro que o observa e terrivelmente devora sua carne mutilada”, escreveu o escritor romântico Percy Shelley na obra A Vindication of a Natural Diet, publicada em 1813.